Para abrir a série Aquilombar, iniciativa promovida pela Fundação Heinrich Böll, falamos das trajetórias de Gugie e Dandara, artistas jovens que vivem em Santa Catarina, onde fazem sua arte em liberdade – graças às que vieram antes. Hoje, vamos contar a história de uma mulher negra que está na encruzilhada das artes no estado há mais de quatro décadas: Solange Adão.

Se você não mora em Santa Catarina, talvez não saiba, mas o dia 20 de novembro não é feriado estadual por aqui. A lei nacional 10.639, institucionalizada em 2003 para tornar obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas do Brasil, tampouco é conhecida pelas secretarias de educação municipais do estado: apenas 17% afirmam saber da legislação. Aliás, na região Sul do país, somente 22% dos municípios dizem que consideram o fator raça no processo de aprendizagem.

Os dados são da pesquisa Lei 10.639: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, realizada pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra, em parceria com o Instituto Alana, em 2023.

Entre professores, ativistas e artistas que se preocupam em levar a cultura e história afro-brasileira para a juventude manezinha, Solange Adão faz a sua parte há 40 anos, tempo em que atua na rede pública de ensino de Florianópolis. 

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Foto: Tay Nascimento.

Nos anos 1980, ela já enfrentava pais e diretores escandalizados com seus esforços em trazer o legado da cultura afro para as suas aulas de Artes. Depois de anos colecionando atividades de seus alunos, ela lançou, em 2006, o livro “Fazendo e aprendendo”, coletânea que reúne trabalhos desenvolvidos com suas turmas do Ensino Fundamental durante os anos 1990.  

Uma negra em movimento para que todas possam chegar mais rápido

Atriz, multiartista, professora de Artes e empreendedora na Feira Afro, Solange Adão é capricorniana, filha de Iansã e mãe de Lorran. A poucos meses de completar 63 anos, em janeiro, ela acaba de ter uma biografia em sua homenagem lançada.

“Trajetória de Solange Adão: atriz negra da primeira turma de teatro do estado de Santa Catarina” é um livro escrito por Julianna Rosa de Souza, Sarah Motta e Priscila Cristina Freitas, além da própria atriz. O lançamento da obra foi realizado no último 21 de novembro, em Florianópolis, pela editora Cruz e Sousa. O e-book pode ser baixado gratuitamente aqui

Para Solange, o reconhecimento precisa ser feito em vida, pois as homenagens póstumas só reforçam o tamanho do desafio de trabalhar contra o apagamento da produção cultural negra, uma das locomotivas do racismo à brasileira.  E ela tem razão. 

Ao abrir a porta da sua casa, no Rio Vermelho, nordeste da ilha de Florianópolis, a artista recebeu com naturalidade o nosso fascínio diante de sua decoração. 

Nas paredes há retratos de espetáculos da atriz; uma foto de seu ídolo, Grande Otelo; abayomis (bonecas de pano negras); e telas que ela mesma faz, com colagens ou aquarela. Existem também algumas peças de arte em sua homenagem, além de uma foto sua com o filho, a quem é muito agradecida. 

A casa própria que respira arte é um dos maiores orgulhos de uma das lendas vivas do teatro e da arte catarinense. 

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Foto: Tay Nascimento.

Em pouco mais de duas horas de conversa, observamos, entre um assunto e outro, a programação matutina de um sábado na TV aberta de Florianópolis. Solange nos mostrou com orgulho o jornalista e educador Edsoul Amaral, que estava apresentando um programa da NBS durante a hora do almoço.

A artista também contou que ficou admirada ao descobrir que a atriz global Neusa Borges é mané como ela, ou seja, nascida em Florianópolis. “Somos poucos, mas somos muito fortes, entendeu?”, ela disse enquanto via sua conterrânea na TV.

Fizemos um bate-papo sobre representatividade e história, que você confere a seguir.

Agnes Sofia Guimarães: Peço licença para fazer uma pergunta: por que Solange Adão é uma negra em movimento?  

Solange Adão: Eu sou uma negra em movimento porque sou uma negra liberta. Eu sempre digo isso porque sou de uma época em que as pessoas também tinham uma necessidade de nicho, de grupos que se dividiam, mesmo sendo negros. E eu vivia circulando entre os grupos, eu me dava com todo mundo. Isso foi um traço de personalidade que herdei do meu pai. Ele era metido a político, a se envolver com as causas, mas não era de partido algum. Ele vinha para lutar por tudo, e eu a mesma coisa.

Fui homenageada, como personalidade, por grupos da direita, da esquerda, dos extremistas, por todos, porque eu circulava. E é isso que me leva sempre a dizer que sou uma negra em movimento. Liberta, faço o que eu quiser, ninguém me prende ou abaixa a minha cabeça.

Bem aquela personagem da Zezé Motta, a Xica da Silva. Bastava me incomodar, eu já mandava ir para aquele lugar, como ela (risos).

Tinha rivalidades entre grupos de teatro? 

É, sempre tinha aquela coisa de grupinhos de teatro que formavam nichos porque faziam “linguagens diferentes”. E a gente não se misturava, até hoje é assim! Eu atuei no SESC durante anos, a gente fazia o que chamavam de “teatro amador”, mas foi com esse teatro amador que a gente ganhou um monte de prêmios. Então eu fui convidada para encenar com o grupo Armação a peça Gota D’Água, e foi um escândalo na época. Era como se eu tivesse saído da Manchete para atuar na Rede Globo (risos). 

“Nossa, como ela conseguiu, ela saiu de um grupo de funcionários”. Mas eu fui porque eu sempre fui em movimento, eu ia assistir à peça deles, conversava, ia tomar cerveja, batia papo e até hoje sou assim. Circulo nos lugares, eu nunca fui de grupo, nunca, nunca, nunca. Eu fui uma solitária acompanhada: eu sempre fui acompanhada, mas sempre sozinha.

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Foto: Tay Nascimento.

E o que te despertou para ter o teatro como sua principal forma de expressão de arte?

Em casa, meu pai era um amostrado: fazia de tudo, mas não fazia nada. Ele fingia que tocava um pandeiro no Cacumbi [estilo de dança afro-brasileira popular no Sul],  mas não era nada. E vivia nas escolas de samba, né? A minha mãe, para dar uma ajuda em casa, sempre costurou para as escolas de samba, porque ela era funcionária de uma escola pública, ela era servente, mas nessa época do ano como agora, por volta de outubro, novembro, dezembro, a casa ficava cheia de tecido. Ela já começava pegando encomendas com as primas, com as amigas, fazia as roupas. 

Eu aprendi nisso, meu irmão era músico e hoje todo mundo é músico, meu sobrinho é baterista, outro é vocalista de banda, eles são ogãs do terreiro e das mulheres eu fui a única que pegou essa veia artística da minha mãe, da minha avó, porque eu costuro, eu pinto, faço bonecas abayomi, eu sempre fui dessa de fazer de tudo um pouco.

Tinha uma época que eu participava do grupo das mulheres negras do Antonieta de Barros, cheguei até a ser vice-presidente, e lá a gente fazia muito artesanato. Toda quarta-feira a gente se encontrava. Com aquela negrada eu aprendi muita coisa. Eu fazia tapete de retalho, aprendi a fazer as minhas abayomis, tranças… Eu acho que os meus saberes se potencializaram na vivência toda com essa negrada.

Quando pensamos em pessoas negras no teatro, pensamos muito no teatro revolucionário de Abdias Nascimento, no Sudeste, com o TEN (1944-1961), e sua ligação forte com o movimento negro político da época. Como foi em Florianópolis? Também havia essa aproximação entre o movimento negro das artes e o movimento negro que fazia política nas ruas?

A minha plateia nunca foi negra. Então não dá para atrelar o movimento negro, essa correria, essa militância com a arte que eu fazia no palco, porque era outro povo que me via lá. Era o povo branco, elitizado de Florianópolis e que me tratava muito bem, me recebia com flores no camarim. Mas o Núcleo de Estudos Negros [NEN] foi muito potente aqui. O NEN editou e lançou muitos escritores negros que ajudaram nas discussões que a gente vivia. Pelo NEN eu cheguei a dar oficinas de corporeidade africana pelo estado de Santa Catarina. Outro dava oficinas de política, outro de tranças. A gente fazia esses grupos de trabalho, e viajava de Agrolândia a Palhoça oferecendo essas oficinas mais militantes. 

Mas não era um público negro, nem quando fiz Negros em Desterro, que era um espetáculo negro, que a temática era negra, elenco todo negro, mas na plateia a gente só recebia o negro quando fazia parceria com escolas públicas, que aí o público era de maioria preta, mas o meu público, no teatro, nunca foi negro.

E como era conciliar essa formação teatral mais empretecida com o teatro da faculdade que, nós sabemos, acaba sendo nomeado como um “ensino formal” ou “clássico”?

Eu sempre estudei em paralelo porque eu tinha um norte: minha ídola era a Ruth Souza. Eu amava também O Grande Otelo, então eram referências que o NEN ajudava a trazer nas leituras que fazíamos. Era o meu passeio. Eu era muito nova, foi uma vivência anterior à universidade e uma referência para que eu pudesse questionar muitas coisas no espaço acadêmico quando entrei na Udesc. 

A senhora não tinha medo de apontar os erros?

Não é que era uma potência que eu gastava toda para “botar o professor na parede”, não era isso. Mas me incomodava ver certas coisas. E não só a mim. Então apontaram alunos que chamavam a atenção por incomodar o próprio curso, e fizeram um conselho de classe. Os alunos eram eu, a Cláudia, o Moacir Martins e a Maria Manoelina… É, foram quatro, nos colocaram em uma mesa, com os professores que tinham queixas a fazer da gente. 

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Foto: Tay Nascimento.

Então fizeram uma espécie de “conselho dos quatro”? Com qual argumento?

Ah, é que botaram pra reclamar da gente, né? Esses quatro alunos com os professores que reclamaram. Foi uma coisa assim que não me atingiu. Essa parede não me atingia como atinge hoje, meu pai sempre dizia: “Seja a melhor entre as melhores, não traz problema para casa”. A gente resolvia o que achava errado na rua.

E eu resolvi isso. A gente resolveu isso. Uma piada. Até depois a gente fez uma esquete, em que eu e o Moacir ríamos disso. Mas se perguntar o que reclamaram da gente, eu não sei dizer. Nós nunca soubemos exatamente o que tínhamos feito de errado. Deve ter sido alguma batida de porta após discutir com um professor sobre qualquer texto. Porque era muito assim. 

O professor José Ronaldo Faleiro não fez parte desse episódio, mas eu o questionei na produção da peça Tartufo. Sei que o Faleiro veio diretamente da França, pegou a nossa turma, deu aula de direção teatral e montou essa peça. 

Na leitura do texto, eu não me via ali na Dorina, que era empregada do Palácio, e pensei “você quer ver que ele vai me botar de empregada?” E dito e feito. Mas aí, eu fui de dedo, e é uma história que ele ama contar porque ele ama que eu tomei essa iniciativa de questionar. O que é que ele fez? Ele desdobrou a personagem. No texto ele botou eu, Berna Sant’Anna [Dorina] e Margarett Westphal [Elmira] em três formas diferentes de ser a empregada Dorina.

E foi diferente porque a Margarett é um mulherão alemão, pintou o cabelo de vermelho, e nós ganhamos prêmio, eu ganhei o prêmio de melhor artista com essa personagem. 

Mas na pesquisa para a minha biografia, a Juliana, uma das autoras do livro, descobriu que a foto do elenco está exibida na Udesc, mas sem a minha presença. Você vai lá na galeria, vê a foto oficial do elenco, que devem ter tirado quando saí para pegar algo, tomar uma água, não sei. Mas eu não estou ali. 

E hoje a senhora tem alguma aproximação com a Udesc, mesmo com esse apagamento?

Muito pouca, sabe? Porque depois que eu me formei, saí, deu. Tinha mais coisa para fazer do que voltar para trás. Eu nunca volto. Foda-se a Udesc. Não vou ficar chorando pitanga, senão a gente não avança, eu não chegaria aqui com 62 anos e lúcida, porque a gente enlouquece, tem negras aí de militância que estão fora da casinha, enlouquecidas, problema dentário, problema de saúde. Eu consegui não deslumbrar muito, não sofrer muito e tocar pra frente. Eu penso assim, né? Porque a passagem pela Udesc não foi fácil, não, mas eu tirava letra. 

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Foto: Tay Nascimento.

Vamos falar das suas coletividades? Percebemos que é muito forte o fato de que a senhora não gosta de se movimentar sozinha e que ainda transformou esse movimento todo em arte-educação, em projetos que acabam revelando novos talentos dentro e fora da sua experiência em espaços de formação. Quais foram suas construções como arte-educadora?

Bom, já comentei da importância do NEN para minha formação como atriz, mas eu também levei essa formação dos movimentos negros para a minha sala de aula.

Eu fui uma das únicas professoras a falar de negritude naquela época, antes da lei 10639. E antes mesmo da lei ser aprovada, eu fiz e editei um livro, o Fazendo e Aprendendo, que são histórias dos meus alunos, principalmente no Morro do Mocotó, nas minhas aulas de Arte. Eu dava uma folha A4 para cada um transformar no seu livrinho. E eu contava sobre o movimento negro.

Eu cantava em iorubá, eu levava o meu atabaque, eu acendia a vela, cada coisa enlouquecida. Por causa disso me chamaram duas vezes para prestar esclarecimento na Secretaria da Educação. 

Eita, quando foi isso? 

Meu filho nem era nascido, então foi nos anos 1980. E foi porque eu pedi para cada um levar uma toalha de banho, porque eu era professora de Arte, trabalhava corporeidade, e aí eu fiz um trabalho que comecei a cantar em iorubá, coisas do terreiro sem ser de umbanda, porque eu entrei para o terreiro muito tarde, mas eu tinha isso em mim, por andar com aquela negrada do NEN que era tudo macumbeiro (risos). E aí eu fui chamada, tive que levar o meu planejamento, explicar e eles entenderam, mas não gostaram. Aí eu fazia de novo, era chamada de novo até fazer um festival de hip hop na escola, que é onde o Edsoul surgiu, e ele era meu aluno. E foram coisas que não foi a escola que me ensinou, não foi a academia. Foi o estar em movimento que me levou a isso.

E esses trabalhos que conseguia desenvolver em sala de aula eram interdisciplinares? Pergunto porque estamos falando de um momento bem anterior à lei 10.639, que 20 anos depois mal é cumprida pelo país afora, e imagino que tenha sido difícil trazer tanta densidade cultural e histórica nas suas aulas sem mobilizar professores de outras disciplinas…

Ah, eu trabalho com o interdisciplinar mesmo antes da lei, mas eu e nenhuma outra professora que resolve trabalhar africanidade no espaço da escola conseguimos mobilizar outros amigos de outras disciplinas. Eu nunca consegui. Eles adoravam desfrutar porque a gente fazia feijoada, eu levava mestre-sala e porta-bandeira, era uma festa, aquela escola parava. Mas depois do recreio tudo voltava ao normal.  

Sempre foi estratégico ter uma carreira paralela de professora para além da dança e do teatro?

Só com o teatro eu não ia conseguir sobreviver, eu não teria minha casa própria. Muitos amigos meus vivem de aluguel até hoje, vivem com o pai, dividem com alguém. Dividir coisa com alguém não dá. Eu gosto de ficar sozinha e já me acostumei – quando eu quero gente, eu trago. Eu criei um filho sozinha. Eu digo que criei um império sozinha, mas com o dinheiro do magistério, né, não do teatro. O teatro veio para eu tomar uma cerveja a mais, uma cerveja diferente, trocar de carro, celular, me cuidar um pouco. 

E fora dos muros da escola? Como é viver a cultura afro-brasileira em disputa com tantos espaços “açorianos” de Santa Catarina? 

Olha, nós somos poucos, mas nós somos fortes, entendeu? Nós somos poucos e fortes e os poucos são muito potentes. Eu choro quando vejo as rainhas negras dos blocos, me emociono, eu choro. Eu bato cabeça, aí vem o bloco Cores de Aidê com essa Dandara Manoela que é um escândalo de tão linda e talentosa. Tenho visto o pessoal da Lagoa, que também é forte, tem um Baque Mulher que é forte, agora temos a escola Olodum Sul, que vai nos levar daqui para outras regiões, é a primeira escola do Olodum fora de Salvador. 

Nós do Pegada Nagô temos uma sala lá no Olodum Sul e temos uma parceria que, quando eles precisam, a gente vai, se apresenta, então está se criando um nicho preto bem forte ali. A gente sabe que a cultura açoriana é forte, né? Mas nós somos também e é uma briga de cachorro grande, porque eles fazem, a gente faz melhor e assim a gente vai. E há uma parceria até, eu acho, educada nessas misturas de culturas. Há uma parceria delicada, mas a gente vai se harmonizando, eles nos respeitam e assim vai. Eles sabem que o boi de mamão é africano, mas eles dançam com a gente. E na hora de potencializar toda essa essa cultura negra, eles nos chamam, a gente troca figurinha, não vejo muito estresse histórico-cultural em relação a essa mistura, eles fazem os deles, nós fazemos os nossos, entendeu? 

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Foto: Tay Nascimento.

E a sua relação com o cenário teatral fora da Ilha?

Tem até o mito que nós temos uma cabeça enterrada aqui nessa ilha, que os artistas da ilha não saem da ilha. Eu não consegui sair de Santa Catarina. Eu sou conhecida, eu sei que as pessoas amam minha caminhada, consomem as minhas coisas, me respeitam, mas eu eu não saí de Biguaçu [cidade catarinense] para frente.

Tem algum motivo específico que a senhora consegue reconhecer? 

Não. É algo meio que histórico isso. Faltou uma boa produtora, talvez. Eu sei que amigas minhas da época foram até o Rio, São Paulo fazer teatro. Eu fui convidada para ir à Globo fazer um teste. Eu não fui. Eu não fui nem tive vontade de ir, não, não fui. E elas foram e voltaram, entendeu? Brilharam aqui, continuam brilhando daqui, são estrelas nossas, daqui de Florianópolis, Santa Catarina, mas não conseguiram plantar lá a nossa arte. Essa atriz na TV [aponta para a televisão], é Neusa Borges o nome dela, e ela é aqui da Prainha [região de Florianópolis]. Acho que é a única que ficou famosa.

E como é produzir outras artes além do teatro? Esse momento surge antes ou depois da zona de atriz?

Tudo junto. Eu sou atacada, filha de Iansã. Eu tinha necessidade de ocupar, fazer coisa. Guria, tem uma época que eu boto a minha máquina aqui. Eu costuro, eu faço, eu aconteço. Mas eu sempre lutei mesmo para ser atriz. 

Valdir Dutra é o maior produtor de peças infantis de Santa Catarina. Ele já montou tudo, mais um pouco e na história que ele conta, ele diz que já trabalhou com todas as atrizes de Florianópolis, menos com Solange Adão, aí pergunta para ele: por quê? Porque eu queria ser a princesa.

Mas ele me convidou pra fazer um lobo, e na época eu ainda era uma menina, tinha uns 19 anos. E já naquela época eu disse: “Eu quero ser a princesa que eu li no texto, se eu não for a princesa, não quero fazer nada”. Aí ele disse não. Então por isso que não tivesse o privilégio de trabalhar comigo, né? Tu que perdeu, não fui eu.

Agora que nós estamos tendo o privilégio de ver uma Ariel negra. Imagina naquela época. Não saímos rindo, eu dei nas costas dele. Eu não vou fazer isso porque esse personagem não me pertence. Eu, naquela época, ganhava todos os prêmios de melhor atriz, melhor atriz coadjuvante. Eles me convidaram pra fazer as coisas. Ele quem perdia e até hoje quando ele me encontra no teatro, ele diz: “Aí a minha princesa”. Porque hoje ele tem uma noção de que poderia ter quebrado a bola lá atrás.

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Foto: Tay Nascimento.

Teve alguma peça que a senhora sente que foi um tipo de ruptura? De não necessariamente ter sido uma “Ariel negra”, mas que assumiu um papel que podemos avaliar como de grande representatividade ou enfrentamento?  

“A mais forte”, texto de Strindberg. Eram duas mulheres lutando pelo amor de um homem e foi maravilhoso, maravilhoso. Ganhou vários prêmios. A gente foi convidado para muita coisa depois disso. E aí no Armação eles me queriam em Gota D’água, um espetáculo vívido, da favela, do amor. Mas me chamaram para ser o Chulé. Um homem do bar. Eu era uma mulher travestida de homem e eu ganhei o meu prêmio de melhor atriz nesse espetáculo, no meio dos homens.

A senhora já fez peças teatrais declamando poemas de Cruz e Sousa, mencionou que gosta de trazer textos poéticos de autores negros, mas e a dramaturgia negra? Sente falta de um texto teatral voltado para pessoas negras, e por isso vai para a poesia?

Eu acho que o poema não tem cor, sexo, idade definidos, e você pode encenar do jeito que você quer. Eu, como negra retinta, me calcei com os poemas. 

Uma vez me chamaram para fazer a leitura para um grupo, e eu fui. Todo mundo foi para fazer essa leitura desse texto. Não lembro que texto era, mas foi legal arrumar um personagem para mim, né? Porque eu sou negra retinta, então deve ter um personagem para mim, para me chamarem. Aí eu fui, chega lá, um idiota disse: “Olha só, você está aqui para fazer o quê?”. “Vim fazer compras, idiota”, eu respondi. Estava numa mesa para leitura. Quer dizer, ele não me viu ali, naquele lugar de leitura. Eu fiquei um pouquinho e fui embora. Depois eu liguei para a pessoa que me convidou, e disse que não iria. Não vou, eu não tenho mais saúde para isso. Eu vivia por aí declamando Cruz e Sousa. Depois eu passei a declamar poemas meus e depois eu fiz Simplesmente João, um espetáculo que era falando sobre o Cruz e Sousa. Nós tínhamos três Cruz e Sousa diferentes e uma mulher, e assim fomos fazendo.

E como tem sido a Solange produtora, principalmente com o coletivo Pegada Nagô?

Bom, Pegada Nagô surgiu a partir de uma necessidade. Eu estava em casa, na pandemia, deitada, e vi uma apresentação na televisão aqui de Florianópolis, um monte de mulher branca vestida de preto, de turbante, dançando e cantando e tudo.

Eu não tenho problema nenhum com isso, mas aquilo me incomodou. Pensei: o que eu estou fazendo em casa? O que esse povo está fazendo aí? Nós vamos ter que fazer também. Aí na mesma hora eu liguei para a Giselle Corrêa e falei: “Nega. Vocês estão vendo isso aí? Vamos ter que fazer uma coisa, uma pegada diferente, uma pegada nossa, uma pegada nagô.”

Nesse papo surgiu o nome Pegada Nagô, e não demorou muito a gente já estava reunida, sentada em uma roda com um monte de mulheres pretas para ver o que é que a gente ia fazer. “Vamos fazer alguma coisa, se a gente não faz, eles fazem, queridas, entendeu? Não deixem uma brecha, porque senão eles vão invadir.”

A gente começou a fazer e foi uma construção coletiva do posto. A princípio, eu peguei um texto da Bruna Barreto, que eu me apaixonei por ela, e fomos fazendo um compilado de coisas dela, da Dandara Manoela. Eu sentei aqui em casa e comecei a trabalhar o texto, e a gente montou o espetáculo Caminho.

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Foto: Tay Nascimento.

Vamos falar da Feira Afro: como foi tirá-la do papel? 

A ideia não foi minha, foi do professor Marcos de Souza, nosso primeiro violeiro negro de Florianópolis. Um dia, ele observou a escadaria do Rosário, a nossa única igreja preta, dos homens pretos, né, que na época em que o nosso povo era escravizado, era o único local em que os pretos podiam ir. Ele então nos propôs pensar em uma nova forma de ocupação desse espaço e começamos em 2017, no aniversário de Antonieta de Barros, que tinha caído em uma terça-feira. Desde então, mantemos nas duas primeiras terças do mês, em que temos pessoas negras que vendem tecidos, abayomis e outras peças de arte do povo preto. Hoje nós estamos em 16, dois homens e as demais, mulheres negras. 

O que a senhora deixa de mensagem para as pessoas que leem o Portal Catarinas?

Seja forte, mas às vezes chorar baixinho faz bem e te escancara muito da necessidade de sentir. Eu sempre agradeço ao universo, aos meus orixás, por terem mandado o meu filho, Lorran, para mim, que diz na nossa história, a espiritual, que são as crianças que escolhem as suas mães, não é? E ele me escolheu. Então eu também deixo um agradecimento aos meus orixás, de terem trazido ele para mim.

Referências mencionadas durante a conversa: 

Edsoul Amaral: repórter, rapper e educador catarinense. 

Núcleo de Estudos Negros (NEN): Organização nascida dentro do Movimento Negro catarinense, e reuniu estudantes universitários e militantes negros na luta contra o racismo.

Negros em Desterro: peça teatral que ficou famosa por trazer a história de Florianópolis a partir de uma perspectiva negra.

Grande Otelo (1915-1993): foi um ator, comediante, cantor, produtor e compositor brasileiro, considerado um dos primeiros atores negros a ter destaque no cinema e na televisão no exterior. 

Neusa Borges (1942-): atriz catarinense. Conhecida por seus trabalhos na televisão, em telenovelas. 

Gota D’água: peça teatral de Chico Buarque e Paulo Pontes, encenada por diversas companhias teatrais, que retrata a realidade dos subúrbios brasileiros durante a época da ditadura militar. 

Loba Barreto: Bruna Barreto, conhecida mais pelo seu nome artístico, é escritora, cantora, compositora, poeta, animadora, xilogravurista e artista visual. Trabalha com a afirmação da mulher negra e lésbica nas artes, e com a busca pela representação da cultura afro-brasileira. Seu primeiro livro, Nossa Poesia, foi publicado em 2019 pela Editora Insular. 

Pegada Nagô: coletivo catarinense fundado por Solange Adão, que busca resgatar africanidades por meio do canto, da dança e do teatro. 

Tartufo: peça escrita pelo dramaturgo francês Molière (1622-1673), foi a primeira apresentação da primeira turma de Artes Cênicas da Udesc. 

José Reinaldo Faleiro: professor e pesquisador de direção teatral da Udesc.

Dandara Manoela: cantora e compositora, uma das organizadoras do bloco Cores de Aidê, e uma das entrevistadas de nossa série. 

Olodum Sul: primeiro projeto da famosa escola Olodum fora de Salvador, localizado em Florianópolis.

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  • Agnes Sofia Guimarães

    Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Apl...

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