Organizações em defesa da justiça reprodutiva e o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) protocolaram nesta quarta-feira (10/4), no Supremo Tribunal Federal, um pedido de liminar contra a resolução nº 2.378/24 do Conselho Federal de Medicina (CFM). A norma proíbe que médicos de todo o país realizem interrupção da gestação com mais de 22 semanas em caso de estupro. 

Nesse período gestacional, o procedimento envolve a assistolia fetal, uma prática recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para abortos legais acima de 20 semanas. Ela consiste na injeção de produtos químicos para interromper os batimentos cardíacos do feto, assegurando que seja retirado do útero sem sinais vitais, e ainda busca prevenir o desgaste emocional e psicológico tanto das pacientes quanto das equipes médicas envolvidas.

Já a resolução alega que o “procedimento de assistolia fetal previamente ao aborto permitido em lei é profundamente antiético e perigoso em  termos  profissionais,  salvo  em  situações  muito  específicas”. O texto vai, portanto, na contramão das recomendações de entidades internacionais de ginecologia e obstetrícia, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do próprio Ministério da Saúde.

Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1141) as organizações, pedem, em caráter de urgência, a declaração de inconstitucionalidade da resolução, assim como a sua suspensão. O pedido conta com o suporte técnico da Anis – Instituto de Bioética, de Cravinas – Clínica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília e do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. 

A ação sustenta que a assistolia fetal é essencial para o acesso ao aborto legal, especialmente para mulheres e meninas que buscam o serviço tardiamente, conforme demonstram todas as evidências científicas. Restringir esse procedimento apenas para vítimas de estupro é inconstitucional e configura discriminação de gênero.

“A ADPF 1141 entende que seria importante um pronunciamento da corte tendo em vista os efeitos gerais e permanentes de violação aos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas, pois a resolução tem o potencial de gerar insegurança jurídica e decisões inconsistentes relacionadas ao direito ao aborto legal. Além de violações a direitos e deveres ético-profissionais dos profissionais de saúde”, afirma Amanda Nunes, advogada da Anis e co-coordenadora do Cravinas. 

Na última sexta-feira (5/4), o Ministério Público Federal (MPF) deu um prazo de cinco dias úteis para o CFM apresentar a fundamentação técnica e legal utilizada para elaborar a resolução, já que a legislação brasileira — o Código Penal de 1940 — não fixa nenhum prazo de gravidez para que mulheres solicitem o procedimento.  Além disso, o MPF também entrou com uma ação civil pública contra o órgão junto à Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).

A Defensoria Pública da União, junto com os Núcleos de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudems) das Defensorias Públicas dos Estados da Bahia, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo, publicou uma nota se posicionando contra a norma. Enquanto a Justiça Federal, em Porto Alegre, deu um prazo de 72 horas para que o CFM se manifeste.

Impactos na negação do direito

Os efeitos da resolução já estão impactando na negação do direito. Desde a sua publicação em 3 de abril, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) têm sido comunicada de casos de mulheres e crianças estupradas, com gestações avançadas, nos quais os médicos estavam temerosos em interromper a gravidez devido o veto à assistolia fetal. 

“É normal que médicos fiquem temerosos de realizar um procedimento cuja resolução do CFM proibiu. Embora, por óbvio, ela esteja ilegal e inconstitucional. Soubemos de alguns casos que foram relatados pelos membros da nossa Comissão”, afirma Rosires Pereira, presidente da Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo. 

A comissão se manifestou contra a resolução e encaminhou o posicionamento aos médicos e a diversas instâncias jurídicas. O documento reforça que a norma não atende ao propósito alegado de “proteção à vida” e vai pelo caminho contrário, pois “amplia vulnerabilidades já existentes e expõe justamente as mulheres mais carentes e mais necessitadas do apoio e da assistência médica”.

“Nos pautamos única e estritamente do ponto de vista científico, sem qualquer interferência religiosa e/ou ideológica. E de acordo com os organismos internacionais, como OMS, FIGO e outras instituições de direitos humanos, que dão o respaldo a tudo o que defendemos. Obviamente, também respaldados pelas nossas leis e Constituição”, completa Pereira.

Ainda segundo o presidente da Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista, a Febrasgo aguarda as decisões da justiça, após as movimentações das Defensorias Públicas e do Ministério Público Federal. 

Veto tem viés machista

Segundo a advogada Amanda Nunes, as mulheres que acessam o direito ao aborto legal após terem sido vítimas estupro fogem do padrão da “mulher ideal”, aquela que cumpre com os estereótipos e as expectativas de gênero e que deseja a gravidez. 

Ela analisa que nos casos de risco à vida e de anencefalia, geralmente, as gravidezes são desejadas pelas mulheres. Nos casos de estupro, não. “Entende-se que essas mulheres teriam uma certa obrigação em evitar o aborto. No contexto de uma sociedade extremamente machista, é mais fácil justificar a negativa do direito ao aborto legal nos casos de estupro do que nos casos de risco à vida e de anencefalia”, explica. 

Anne Teive Auras, defensora pública e coordenadora do Nudem de Santa Catarina corrobora e acrescenta que isso demonstra a fragilidade da resolução, pois o procedimento é seguro. Ela reitera que se trata de violação a um direito previsto em lei pelo menos desde 1940, que afeta principalmente meninas violentadas sexualmente. 

A defensora lembra que, de acordo com o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o ano de 2022 registrou o maior número de registros de estupros da história, sendo que 61,4% dos casos foram praticados contra pessoas vulneráveis (crianças de zero a 13 anos). “Em 64,4% dos casos, a violência é praticada por familiares”, pontua.  

Auras também destaca os dados da Vigilância Epidemiológica de Santa Catarina que mostram que, de 2018 a 2022, houve notificação de 6.313 casos de violência sexual no estado entre crianças e adolescentes, sendo que a maior taxa ocorre na faixa etária de 10 a 14 anos. 

“São essas meninas vítimas de abusos sexuais que terão seus direitos violados: são elas que não terão acesso à técnica mais adequada e segura para interrupção da gestação, ao arrepio das evidências científicas. Isso é muito grave”, afirma a defensora. 

Insegurança jurídica para profissionais e risco a vítimas de estupro

Ainda de acordo com Nunes, a Anis tem acompanhado as condutas do CFM e contribuído para elaborar estratégias visando enfrentar as inconstitucionalidades e ilegalidades por parte do órgão médico, principalmente quando se trata dos direitos sexuais e reprodutivos. 

“Essa não é a primeira vez que isso acontece e não é a primeira vez que nos articulamos com outras organizações para construir iniciativas para tentar impugnar resoluções como essa”. 

Ela acrescenta que, sem saber o que fazer, muitos serviços têm procurado amparo judicial das instituições do Estado, de outras organizações, para entender como agir. Há, inclusive, indicativos de que meninas que estão tendo direito a aborto legal negado com base na resolução tenham seus casos judicializados.

“Ela já está gerando impactos concretos para os serviços de saúde. Meninas e mulheres já estão tendo o direito ao aborto legal negado. Embora seja uma resolução ilegal, os profissionais se pautam pelas normas do Conselho. E por mais que essas resoluções não tenham força de lei, elas são instrumentos que eles consideram na prática do dia a dia, inclusive com medo de consequências administrativas no âmbito dos conselhos regionais”, afirma.

Ministério da Saúde é cobrado para que reafirme posicionamento

O Ministério da Saúde também tem sido cobrado para que volte a reiterar que não há limite de tempo gestacional para a realização do aborto nos casos previstos em lei. Em fevereiro, após críticas da oposição, a pasta suspendeu uma nota técnica que derrubava a recomendação do Governo Bolsonaro para que o aborto fosse realizado apenas até 21 semanas e 6 dias de gestação.

A representante da Anis lembra que o ministério já havia se posicionado sobre a questão do tempo gestacional por meio de nota técnica, respondendo a um pedido do Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADPF 989 sobre providências para assegurar o direito ao aborto nas hipóteses previstas em lei. A arguição tramita na corte desde de 2022. 

No documento, de agosto de 2023, o ministério ressalta que a legislação brasileira não estabelece um limite de tempo gestacional para o aborto legal; destaca que a indução de assistolia fetal é recomendada por trazer benefícios emocionais, legais e éticos relacionados ao impedimento da expulsão fetal com sinais transitórios de vida; e corrige e atualiza informações enviadas ao STF pela pasta no governo anterior. 

“Estabelecer um limite de tempo gestacional ausente na legislação brasileira impedindo o acesso ao aborto legal, produziu casos como o da menina capixaba de 10 anos em 2020, amplamente divulgado na imprensa, que foi perseguida e teve o acesso ao aborto legal negado nos serviços de saúde de referência de seu estado”, diz o ofício. 

Em outro trecho, o órgão define a negação do procedimento como violação de direitos. “A OMS também reforça que negar às meninas e mulheres aspectos essenciais dos cuidados médicos nos casos de aborto, como acolhimento, gestão da dor ou gestão de aborto incompleto como punição é uma violação dos direitos humanos”.

Na sexta-feira​ (05/04), a ministra ​Nísia Trindade disse que não​ cabe ao Ministério se posicionar sobre decisões do CFM. ​A ​declaração foi dada no Rio de Janeiro (RJ) no lançamento da 6ª Caderneta de Saúde da Criança, na sede do Instituto Nacional da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF), ligado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

 “Agora é ainda mais necessário que o Ministério da Saúde se posicione perante essa norma e reitere seu posicionamento conforme já colocado na ADPF 989”, ressalta Amanda Nunes.

Entramos em contato com o Conselho Federal de Medicina para saber quais os argumentos legais e científicos respaldam a resolução e porque ela se restringe às vítimas de estupro, mas até o fechamento desta reportagem não tivemos retorno. 

Além disso, procuramos a Justiça Federal em Porto Alegre para saber se o prazo de 72 horas para que o CFM se manifeste já está valendo. Fomos informadas que o prazo começa a contar a partir do dia seguinte do recebimento da intimação, mas ainda não há confirmação de recebimento.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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