Anúncios promovidos nas redes sociais da Meta estão afetando de forma negativa a vida das brasileiras. É o que aponta a primeira etapa do estudo “Observatório da indústria da desinformação e violência de gênero nas plataformas digitais”, que identificou 1.565 anúncios impulsionados, ou seja, pagos, considerados tóxicos, isto é, com indícios de comportamentos misóginos, golpes ou fraudes direcionadas ao público feminino. Além disso, o estudo contabilizou 550 páginas e perfis responsáveis por publicar os anúncios categorizados como tóxicos.

O estudo é conduzido pelo Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e tem o apoio e o financiamento do Ministério das Mulheres, no âmbito da iniciativa Brasil Sem Misoginia.

Acesse o relatório da pesquisa.

Durante um período de 28 dias, entre janeiro e fevereiro deste ano, a coleta de dados ocorreu nas plataformas Facebook, Instagram, Messenger e Audience Network, responsável pela distribuição de anúncios. Utilizando a Biblioteca de Anúncios da Meta como referência, o estudo selecionou posts impulsionados que mencionavam mulheres ou as apresentavam como interlocutoras, coletando apenas aqueles considerados problemáticos ou suspeitos de irregularidades.

Observatório_da_indústria_da_desinformação_e_violência_de_gênero_nas_plataformas_digitais__
Infográfico: Rafaela Coelho.

Ativos por diferentes períodos entre 1 de janeiro e 9 de fevereiro de 2024, alguns desses anúncios já circulavam há algum tempo quando foram coletados. 

Entre os resultados, a pesquisa identificou que o corpo da mulher é alvo de 80% dos anúncios tóxicos, sendo que 51% tratam de estética e beleza, 38% especificamente sobre emagrecimento e 98% promovem risco à saúde pública ou individual. O público-alvo desse tipo de conteúdo são mulheres entre 55 e 64 anos. Por outro lado, quando se trata de impulsionar temas misóginos, o público-alvo são homens acima de 45 anos.

Observatório_da_indústria_da_desinformação_e_violência_de_gênero_nas_plataformas_digitais
Infográfico: Rafaela Coelho.

Conversamos com Luciane Leopoldo Belin, pesquisadora associada do NetLab/UFRJ e uma das autoras da pesquisa. Ela é jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisa comunicação política em redes digitais, desinformação, gênero e direitos reprodutivos. A entrevistada alerta para a disseminação desse tipo e seu impacto na vida das mulheres. 

Confira a conversa:

Catarinas: A pesquisa identificou que o corpo da mulher é o principal alvo da publicidade abusiva online e está presente em 80% dos anúncios problemáticos. Há cerca de 10 anos, muitas adolescentes, como é o meu caso, se aproximaram do feminismo por ter como uma das bandeiras a crítica à ditadura da beleza. Mas, a internet fez praticamente o caminho oposto, exemplo é a trend “as meninas da Sephora”. A pesquisa identificou que o principal público-alvo dessas propagandas são mulheres entre 55 e 64 anos. Como a propagação desses conteúdos com impulsionamento pago está afetando os ideais de beleza e a saúde das mulheres?

Luciane: Antes de entrar nesse ponto é importante explicar como chegamos na questão do corpo. Começamos olhando anúncios na Meta que falam com as mulheres para entender quais narrativas são usadas, como elas falam das mulheres e que tipo de corpo representam. Não tínhamos a temática da saúde como uma prerrogativa da pesquisa.

Mas, a questão do corpo da mulher veio de uma forma orgânica e imediata. Mesmo quando esse não era o assunto principal do anúncio, a beleza aparecia como um pré-requisito. Os anúncios relacionavam beleza a outros aspectos positivos da vida, como sinônimo de empoderamento. Exemplo é a mensagem que pauta a necessidade de ficar mais bonita e emagrecer para salvar o casamento.

Observatório_da_indústria_da_desinformação_e_violência_de_gênero_nas_plataformas_digitais_
Infográfico: Rafaela Coelho.

Depois da primeira busca exploratória, percebemos ser inescapável falar sobre o corpo da mulher. Dos 1565 anúncios analisados, 1253 são sobre o corpo da mulher e metade ofereciam produtos, tratamentos ou serviços de beleza.

Frequentemente associadas a produtos ou tratamentos de beleza, imagens manipuladas de celebridades são impulsionadas para vender produtos  | Crédito: Golpes, fraudes e desinformação na publicidade digital abusiva contra mulheres.

Você me perguntou como é que eles reforçam esses ideais. A partir de um cenário amplo de estudos da publicidade e propaganda e gênero, sabemos como o fato de questões da saúde e da estética da mulher serem exploradas é algo cíclico. 

Crescemos vendo muitos anúncios que diziam que você tinha que ser magra, estar com a pele jovem e cuidar da beleza para ser aceita socialmente. Era uma pressão estética intensa com as revistas de beleza. Achávamos que estávamos deixando isso para trás, com a tendência do body positive [positividade corporal, em tradução livre], inclusive abraçada por muitas marcas, e, de repente, de novo volta a ser tendência a magreza, o cuidado com a pele, o rejuvenescimento.

Percebemos na pesquisa o quanto resgatam isso que achavámos que estava ficando para trás, que é atribuir beleza e padrão estético ao bem-estar da mulher. 

Há, por exemplo, um vídeo sobre varizes e celulites para vender um produto que supostamente as combate e “salvaria sua vida”. Tem uma narrativa de que “fulana tinha muita vergonha de sair de casa, não andava com as pernas à mostra em hipótese alguma, mas ela começou a usar esse tratamento e agora é livre”.

Se você tem varizes e celulites, você acredita que deveria sentir vergonha do seu corpo: “será que eu deveria estar preocupada com isso?”

Anuncios_na_Meta_afetam_saude_das_mulheres_e_incentivam_homens_a_serem_misoginos_
Exemplos de anúncios mapeados pelo estudo que reforçam padrões de beleza | Crédito: Golpes, fraudes e desinformação na publicidade digital abusiva contra mulheres.

Eles intensificam muito essa pressão e as pessoas não estão procurando esse tipo de conteúdo. É diferente de educar o meu algoritmo para ser body positive e trazer conteúdo de empoderamento. Esse tipo de anúncio vai aparecer se você consome conteúdos para as mulheres.

Eu queria complementar com outro ponto que você trouxe: a segmentação. É bem complexa a conta para você chegar a esse dado. A meta classifica temas que considera sensíveis. Por questões que envolvem legislação e transparência, essesanúncios , precisam ser tagueados ou rotulados como tal.

Só os anúncios sensíveis têm informação públicas sobre a segmentação: para que tipo de pessoa, gênero, idade e região estão sendo segmentados. E só 1,6% dos anúncios que analisamos têm esse rótulo.

Não sabemos qual é o grupo que estão mirando. Isso pode muito bem ser direcionado para adolescentes ou para idosas. Mas, dos poucos que têm essa segmentação, o predomínio é de mulheres entre 55 e 64 anos. 

Tratando sobre a questão dos “anúncios sensíveis”. No Catarinas, muitos impulsionamentos foram negados pela Meta, apesar de serem produções jornalísticas, de interesse público. Você mencionou que somente 1,6% dos anúncios estão com a tag, ou seja, observaram que há conteúdos considerados sensíveis, mas que não estão com a tag? A política de impulsionamento da Meta está funcionando? Como a publicidade está ajudando conteúdos misóginos na internet?

É quase um paradoxo, porque apontamos o dedo para a Meta, mas, pelo menos, esses dados coletados estão disponíveis. Isso é um problema de absolutamente todas as plataformas. Por exemplo, os anúncios do Google, que também impactam muito as pessoas, não conseguimos acessar. É um problema geral.

Todos os anúncios que entendemos como problemáticos, deveriam ter sido tagueados como temas sensíveis porque tratam de saúde. 

Como colocamos no relatório, anúncios considerados sensíveis pela Meta são aqueles que tratam de política, eleições e do que a plataforma chama de “temas sociais”. Nessa última categoria, há especificamente dois elementos que estão listados pela Meta que entendemos que tem a ver com esses anúncios: saúde e direitos civis e sociais. 

Na descrição de saúde, estão conteúdos que incluem discussão, debate ou defesa da reforma do sistema da saúde e acesso à saúde. Em direitos civis e sociais, estão temas como liberdade religiosa, direitos LGBTQIA+, direitos das mulheres, aborto, entre outros.

Então, por que é necessário rotular um post do Catarinas sobre aborto como um tema social, mas não é exigido o mesmo para um post que promove um suplemento alimentar como uma alternativa superior ao tratamento médico já utilizado? É muito controverso.

As plataformas devem rotular para termos acesso. Transparência é essencial para que possamos analisar e entender e para que as plataformas possam ter algum controle. Precisaria ter algum tipo de cobrança e regulamentação para as plataformas serem, de fato, obrigadas a fazer isso. Porque é tudo muito opaco, a plataforma se desresponsabiliza. Por outro lado, tem todo esse shadowban (quando a plataforma diminui a entrega de postagens) em torno de quem é progressista com algumas pautas. 

Ao contrário de questões de saúde, quando se trata de postagens que prometem ensinar desde técnicas de sedução até como não cair em supostas armadilhas femininas, o principal público-alvo são homens acima de 45 anos. A blogueira Lola Aronovich escreve sobre esses grupos masculinistas há anos e vocês identificaram, em parte, como esta rede se organiza. Pode explicar para quem está lendo, o que está representado no gráfico 1 do relatório?

Antes de eu entrar na parte dos masculinistas, é importante explicar que nem todos os anúncios são fraudulentos. Organizamos uma gradação de toxicidade. Temos os anúncios que são suspeitos, os que são irregulares e os que são golpe ou fraude.

Anuncios_na_Meta_afetam_saude_das_mulheres_e_incentivam_homens_a_serem_misoginos_pesquisa
Categorias de classificação dos anúncios mapeados pelo estudo | Crédito: Golpes, fraudes e desinformação na publicidade digital abusiva contra mulheres.

Anúncio problemático é aquele que entendemos que existe um problema que não pode ser criminalizado, mas contribui para a construção de um ecossistema misógino ou para explorar a vulnerabilidade das mulheres. Os anúncios irregulares são aqueles que têm alguma irregularidade porque não seguem as normas setoriais, como do Conselho Federal de Medicina. E o nível das fraudes e golpes são os produtos que podem ser considerados crime. 

O nosso desafio com a questão da misoginia é porque a misoginia não é crime.

Não estamos dizendo todos os anúncios que identificamos são criminosos, mas todos contribuem para a construção de um contexto que favorece a proliferação da misoginia. Existem diversas pesquisas nacionais e internacionais que mostram como a internet facilita a proliferação da misoginia por meio de chans, de fóruns, do Telegram, do WhatsApp e do YouTube.

Buscamos entender que tipo de conteúdo sobre mulheres era direcionado aos homens chegamos a 35 manuais de “desenvolvimento masculino”. Não é autoajuda ou crescimento profissional e de carreira. Em geral, os canais falam sobre tudo ao mesmo tempo, como carreira, ganhar dinheiro, investimento e também sobre como ter autoridade em relação às mulheres. 

Anuncios_na_Meta_afetam_saude_das_mulheres_e_incentivam_homens_a_serem_misoginos__
Exemplos de conteúdos masculinistas mapeados pelo estudo | Crédito: Golpes, fraudes e desinformação na publicidade digital abusiva contra mulheres.

Basicamente o que esses manuais fazem é usar o desenvolvimento masculino como escudo no sentido de “veja isso não é um crime, eu estou ajudando os homens a se empoderarem para que eles não estejam sujeitos à exploração das mulheres”. Só que esse próprio raciocínio parte do princípio de que as mulheres são exploradoras, oportunistas, querem roubar dinheiro.

O gráfico dos manuais mostra como é que eles estão se relacionando e que, de fato, existe todo o universo de desenvolvimento masculino. Eles têm vocabulários parecidos, usam as mesmas palavras para se referir às mulheres, têm narrativas muito próximas: não deixa ela explorar, vamos ensinar você a deixar de ser otário ou deixar de ser o cara legal.

_Anúncios_na_Meta_afetam_saúde_das_mulheres_e_incentivam_homens_a_serem_misóginos
Gráfico explica como funciona o ecossistema da misoginia na internet | Crédito: Golpes, fraudes e desinformação na publicidade digital abusiva contra mulheres.

Uma coisa bem interessante, que chamou nossa atenção, é que há posts sobre o manual mais leves, como “vamos ajudar você a ser um homem de valor” e outros que falam “pare de ser explorado, deixe de cair no golpe dessas mulheres aproveitadoras”. O discurso vai escalando, alguns são mais ponderados, outros são mais agressivos, e todos levam para o mesmo manual. 

Sabemos que os manuais se amparam em conteúdos muito machistas. Não é crime, mas são extremamente problemáticos e podemos dizer com muita tranquilidade que contribuem para combater a igualdade de gênero e tem uma agenda totalmente antifeminista. Inclusive isto aparece muito: de que tipo de mulher eu devo fugir? Feminista em primeiro lugar.

Você trouxe a questão da misoginia não ser criminalizado no Brasil, mas há a Lei Lola Aronovich contra a Misoginia na Internet de 2018, que determina que “quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres” sejam investigados pela Polícia Federal. A partir da pesquisa, você diria que esta lei é seguida? Ou quais desafios você acredita que existam para sua efetivação? 

É bem contraditório porque a lei fala sobre misoginia na internet e só. Mas a misoginia como uma prática social não é criminalizada. Eu diria que a lei não é seguida por dois motivos principais.

Primeiro, é muito difícil fiscalizar, descrever o que é misoginia e há um desconhecimento geral sobre o tema. Os homens que fazem esses manuais, muitos deles viram a nossa pesquisa quando saiu no Jornal Nacional, se reconheceram e fizeram conteúdo se defendendo.

Eles negam que um anúncio é misógino, enquanto exibem algo extremamente misógino. Isso porque o conteúdo promove a desvalorização e o ódio contra mulheres, que é precisamente o conceito de misoginia: um ódio estrutural.

É muito difícil cravar que o discurso deles é misógino, porque as pessoas não têm conhecimento sobre o que é problemático ou não, muitos deles legitimamente acreditam que estão apenas se defendendo de mulheres predadoras. Como lidar com isso? Como é que eu vou provar que esse homem está sendo misógino?

Eu não sei as estatísticas da Lei Lola, mas eu imagino que um dos entraves sejam as dificuldades de comprovação. O segundo é a liberdade que as plataformas dão para esses conteúdos circularem livremente, sem nenhum tipo de tagueamento pelas plataformas. Quem denuncia? 

Está acontecendo o contrário do que a lei busca combater. Esses discursos estão saindo do armário. Principalmente a partir do governo de Jair Bolsonaro, as pessoas passaram a se sentir muito mais à vontade a se posicionar de maneira misógina fora dos chans [fóruns anônimos da deep web].

A própria Lola fala muito que esse tipo de discurso dos masculinistas se propaga nos espaços mais obscuros, mas isso mudou. Hoje em dia, qualquer grupo ou o próprio YouTube tem muito conteúdo masculinista. Não só no nível mais pesado, de dizer que vai matar a mulher, mas observamos muitos adolescentes, por exemplo, usando em conversas do dia a dia, termos que vêm desse vocabulário masculinista. Como é que isso está chegando lá? 

Sobre a questão de propagandas voltadas para renda extra e vagas de empregos. O relatório aponta que “se pautam em narrativas de empoderamento e sugerem que mulheres que aderem a essas oportunidades, podem finalmente se libertar de restrições financeiras”. A “narrativa de empoderamento” tem sido utilizada nessas propagandas como apropriação de ideias feministas?

Percebemos que as propagandas exploram muitas questões do discurso feminista. Por exemplo, em postagens sobre soroterapia, tratamento sem comprovação científica, há anúncios que sugerem “sabemos que você está cansada e sobrecarregada com a jornada tripla, você é uma mulher empoderada, mas não é a Mulher Maravilha, você precisa de recursos que te ajudem a lidar”. E, aí, entra a soroterapia para dar energia.

A palavra empoderamento, sem dúvida nenhuma, é a que mais aparece. Na questão da autonomia, temos anúncios de joguinhos online dizendo que uma dona de casa descobriu um joguinho e agora ela se empoderou e cuida da família inteira, por exemplo.

Parece que os anunciantes estão muito antenados com a agenda feminista e com os problemas contemporâneos das mulheres.

Mas, mais do que termos, eu diria que é o próprio discurso feminista que está sendo apropriado.

Quais as próximas etapas da pesquisa? 

Na próxima etapa, vamos olhar para o YouTube. Para conteúdos voltados aos homens misóginos, machistas e masculinistas. Vamos tentar entender essa gradação do discurso, que começa no desenvolvimento masculino e vai para o lado da misoginia, como que esse vocabulário masculinista aparece e como que se refere às mulheres. 

A ideia é fazer um mapeamento de canais e vídeos que têm essa linguagem machista e entender como estão construindo as estratégias de monetização. Não só olhar para o conteúdo, mas como é que esses homens estão ganhando dinheiro com base no discurso machista e misógino. 

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

Últimas