Renato Freitas (PT) vem se destacando como uma referência da esquerda no Sul do país. Com sua atuação e vivência nas periferias de Curitiba, constrói uma trajetória que desafia os acordos velados da política institucional.

Em sua primeira visita a Florianópolis após assumir o mandato de deputado estadual do Paraná, o jurista foi recebido com muita admiração. Seu discurso conectado com os territórios mobiliza o afeto de pessoas progressistas que anseiam mudanças.

No dia primeiro de dezembro, o deputado participou da roda de conversa “Violência policial e política contra pessoas negras e arte de rua”, organizada pelo mandato da vereadora de Florianópolis, Carla Ayres (PT).

O lugar escolhido para o encontro não poderia ser mais emblemático: aos pés da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e São Benedito. Além de ser um espaço histórico para o movimento negro da capital catarinense, a Igreja do Rosário também está vinculada com um capítulo importante da trajetória do Renato.

Foi na Igreja de mesmo nome no Centro Histórico de Curitiba, que o parlamentar participou de um protesto pela vida dos homens negros, contra o assassinato de Moïse Mugenyi, o congolês espancado num quiosque no Rio em janeiro de 2022. Após o ato, dois vereadores protocolaram uma representação por quebra de decoro contra ele, que resultou em sua cassação.

Este foi somente um dos processos que tentaram impedir a sua atuação, outros seguem em curso. Nesta entrevista exclusiva com o Catarinas, realizada antes da roda de conversa, Freitas comenta estas diferentes tentativas de cerceá-lo como representante do povo dentro das casas legislativas.

Entre os assuntos, focamos também na atuação do Núcleo Periférico, organização que constrói cidadania nas periferias de Curitiba, onde o deputado é uma liderança. A defesa da vida, a crítica à militarização e a luta por uma educação transformadora, a partir de uma perspectiva antirracista, também foram temas desta conversa. Confira a seguir.  

Renato Freitas defende uma política construída a partir de ações de base
Diálogo em lugar território negro de Florianópolis. Foto: Foto: Leidiane Sampaio/Ascom Vereadora Carla Ayres.

Fernanda Pessoa: Renato, ano passado a gente conversou sobre o processo de cassação que o seu mandato sofreu na Câmara de Vereadores de Curitiba. Infelizmente, hoje, como deputado estadual do Paraná, você enfrenta um novo processo. Como você enxerga essas diferentes formas de impedir a sua atuação dentro desse espaço institucional?

Renato Freitas: Eu acredito que a decisão deles já foi tomada no início da minha vida política. Quando eu me posicionei de forma radical contra a conservação de um modus operandi da política, de uma forma de se fazer política, que é essa política de toma lá dá cá, que o prefeito tem a base na Câmara dos Vereadores, porque distribui os cargos, o que garante acesso à Secretaria para pequenas obras. Essas pequenas obras geram uma certa gratidão popular, porque ninguém faz nada.

O pouco que se faz é visto como bom o suficiente para se reeleger. É uma política bem colonialista, patrimonialista, em que o gestor age com o dinheiro como se fosse dele. E não da República, da coisa pública.

Eles já fizeram algumas investidas. A primeira delas no primeiro trimestre de 2021, meu primeiro mandato como vereador. Eu denunciei os pastores charlatões que estavam receitando cloroquina e ivermectina para COVID, encorajando as pessoas a entrar em ônibus lotado para trabalhar em condições insalubres no meio do período mais triste da pandemia, o período mais letal. Fiz essa denúncia que ninguém tinha coragem de fazer ali, de dizer que esses pastores não serviam ao seu rebanho. Pelo contrário, se serviam do rebanho. Eles já tentaram me cassar. Foi o primeiro processo de cassação e, para isso, colocaram ações minhas anteriores após, ou seja, quando eu ainda não era parlamentar.

Como quando manifestei dentro do pátio do Carrefour junto com um monte de gente do movimento negro por conta da morte do Beto Freitas ali em Porto Alegre no dia da Consciência Negra. Foi uma manifestação que nós fizemos que eles falaram ‘vereador pichador, vândalo, depredando patrimônio alheio etc’. Construíram uma imagem de que eu era bandido.

O que eu escrevi em uma muretinha de estacionamento do mercado em uma manifestação super pacífica foi: a injustiça praticada em qualquer lugar no mundo é uma ameaça à justiça em todos os lugares do mundo. Martin Luther King. Nós estávamos querendo dizer que a injustiça praticada em Porto Alegre nos feria em Curitiba também. Uma mensagem de paz, de entendimento daquela realidade, e isso foi o suficiente para eu ser criminalizado, receber um processo.

Depois foi a questão da Igreja, novamente na luta pela vida, denunciando a morte de homens negros. E eles me tiraram para bandido como se tivesse cometido um ato muito pior do que quem matou o Moïse. Quem matou Moïse não recebeu a reprovação dos bolsonaristas, do Silas Malafaia, do Marcos Feliciano, do governador Ratinho Júnior, do Padre Fábio de Melo e de tantas e tantos outros formadores de opinião. 

Carla Ayres dialoga com Renato Freitas. Foto: Leidiane Sampaio/Ascom Vereadora Carla Ayres.

Fernanda Pessoa: Você falou na pauta da defesa da vida. E um tema de saúde pública que afeta a vida e a saúde, principalmente das mulheres e meninas, é o aborto. O processo mais recente teve início a partir de uma discussão sobre o aborto legal, que é muito cara para nós do Catarinas, por considerarmos uma pauta de direitos humanos e fundamentais. Quais estratégias seriam interessantes para ampliar o debate sobre essa pauta a partir da perspectiva de saúde pública?

Renato Freitas: Olha, saúde, vida, liberdade das mulheres nesse caso em especial, isso tem que ser discutido no território, na base. Ninguém melhor para levar adiante uma discussão como essa como as donas Marias das comunidades, educadoras, que criam seus filhos e criam um pouco também os filhos da comunidade. E, principalmente, se deparam com a realidade da sexualidade precoce, das doenças sexualmente transmissíveis em níveis pandêmicos por conta de uma falta de educação sexual, uma falta de conversa, porque é tido ainda como tabu.

A religião traz também seu obscurantismo sobre a questão. Esse falso entendimento de uma religião hipócrita que se utiliza da religião para julgar as outras pessoas. Eu acredito muito na criação de agentes comunitários de saúde, como já teve um dia, e a grande maioria são mulheres, que tenha como finalidade debater na base, territorialmente, questões como essa. Enquanto não for ganhada a base, não houver luta na base, não adianta ficar jogando peso em quem está tomando a decisão. A gente tem que ir à raiz, na solução de fato.

Fernanda Pessoa: Falando em trabalho de base, queria saber mais da atuação do Núcleo Periférico em Curitiba. Uma crítica frequente aos partidos, inclusive aos de esquerda, é a desconexão deles com a realidade do nosso povo, uma desconexão que impacta diretamente na atuação de parlamentares e no formato da política institucional. Como esse trabalho na periferia de Curitiba pode impactar essa relação com a política?

Renato Freitas: Todas as palavras, por mais revolucionárias que sejam, não têm a capacidade de alimentar um ser humano no seu estômago, que é a realidade primária, a primeira e fundamental de qualquer ser vivo. Então, você tem que alimentar o espírito, a mente, a conscientização, a direção, mas tem que manter o corpo firme. Esse é o primeiro ponto. Nós decidimos iniciar sempre com a cozinha comunitária, a padaria comunitária, ofertar o pão, o almoço, a comida. A partir daí compreender as outras demandas e reivindicações, e procurar soluções coletivas. Unir, organizar e mobilizar. Nós conseguimos fazer isso no Núcleo Periférico. 

Hoje, a gente atende de 400 a 600 pessoas por dia. Pessoas em situação de rua, egressos do sistema carcerário, mulheres em situação de violência, de abusos, de abandono e outras pessoas que acabam por algum motivo na rua. E a pessoa entra lá e tem uma lavanderia, tem uma ducha, tem café da manhã, ganha uma roupa, tem assistência jurídica, assistência social, acompanhamento psicológico, tem computadores para acessar a rede, fazer algum curso, imprimir currículo, falar com a família. Tem um pessoal nosso que lida ali só com naturalização de migrantes. Só com a retirada de segunda via de documentos.

Nós temos vagas de profissionalização. A gente profissionaliza e depois remunera as pessoas, que estavam em situações de rua, na padaria, no corte e costura e na serigrafia, onde a gente tem uma linha de produção de roupas. A gente tem capoeira, tem artes marciais, curso de desenho, formação política, escola de lideranças. Vamos abrir agora um pré-vestibular, tem o curso de criminologia, que eu mesmo dou. 

A gente faz a pessoa que acabou de sair do sistema carcerário, está de tornozeleira, virar um militante pela luta da liberdade a partir do conhecimento da criminologia. A gente faz a pessoa que está em situação de rua virar um militante de direitos humanos, do direito à moradia. E isso vem sendo multiplicado, criando união, família, é um exemplo de uma trincheira forte, que não é qualquer bomba que explode. A nossa trincheira é altamente blindada. Se tem um posto avançado na luta no centro de uma cidade como Curitiba, outros lugares também podem ter.

A gente está construindo um caminho. A gente não construiu escrevendo num papel ou aprendendo numa universidade. A gente chegou ali, alugou o espaço e não tinha ideia de nada, não tinha dinheiro. Fomos construindo conforme foi caminhando, conforme foi chegando, conforme fomos percebendo. O bagulho andou legal. 

O critério da verdade é a prática. O critério daquilo que se diz é aquilo que se faz. Senão fica como os hipócritas, da direita e da esquerda, que são como monstros que têm a língua de gigantes, falam aos montes, mas têm passos muito pequenos que não condizem com o que se diz, com o que se fala. Então, a pessoa não acompanha a própria palavra e cai na hipocrisia, na contradição, na vaidade própria da academia. 

É preciso fazer. Entre os partidos também é preciso fazer. É preciso que os partidos façam, enquanto os partidos não montarem sequer uma cozinha comunitária em alguma quebrada, enquanto os partidos não tiverem um centro cultural nas quebradas, um centro de formação política de liderança, o partido vai ser um agente externo. Não vai conseguir a transformação e o apoio e, por isso, vai ter que fazer o pragmatismo por cima.

Quem não tem aliança com o povo tem que se curvar ao pior tipo de aliança com os poderosos. Isso ocorre hoje na esquerda. Por isso quem monopoliza o discurso antissistêmico é a direita fascista. A esquerda perdeu essa capacidade. A esquerda já não tem amplitude no horizonte. Ela já deixou de sonhar, deixou de reivindicar e passou a se adaptar.

Bruno Barbi presenteia Renato com um retrato. Foto: Leidiane Sampaio/Ascom Vereadora Carla Ayres.

Fernanda Pessoa: A região Sul é frequentemente pauta no noticiário, principalmente relacionadas a extrema-direita, ao neonazismo, ao trabalho análogo à escravidão. E você como pessoa pública acaba trazendo um contraponto e uma esperança frente a tanto retrocesso. Quais pautas e iniciativas do Sul você quer ver reverberando, através da sua atuação pelo país? 

Renato Freitas: Uma das pautas é a própria reforma agrária. Sem a reforma agrária não haverá um alívio na condição existencial do povo preto brasileiro, que foi relegado à rua, a não ter o direito de propriedade, porque teve a lei de terras de 1850, que proibiu a população negra de ter terra basicamente, porque impôs que fosse só por cartório, por título, por documento e não por posse. Primeiro ponto.

Grande parte das mulheres, eu digo isso por testemunho da vida da minha própria mãe e de outras mulheres da comunidade que eu conheci, muitas vezes estão num relacionamento abusivo, violento, indigno, porque não adquiriram autonomia financeira, não têm uma casa própria, tem filhos e está sujeita a tudo para não cair com os filhos na rua, porque a rua é ainda mais violenta. E vai engolindo, vai engolindo. Vai perdendo espaço. A reforma agrária resolveria muito isso, daria essa autonomia para as mulheres também. São a maior parte das pessoas na pobreza. 

Hoje, mais da metade da renda do trabalhador, da família pobre, vai no pagamento de aluguel. É o principal custo. Só que para você nascer e sobreviver, você precisa se abrigar do frio, da chuva, das intempéries da natureza. Não só eu, não só você, todos os seres humanos.

Todos os seres humanos têm um direito fundamental à moradia. Você não pode nascer devendo, nascer no prejuízo, precisando correr atrás de um dinheiro para sobreviver aquele dia. Se você estiver destinado a esse futuro, você não tem futuro, porque você só vai ter um presente cada vez mais urgente. Você nunca vai conseguir pensar, planejar, visualizar. Então, a reforma agrária. 

Segundo ponto: a educação crítica, educação transformadora, a educação que é aliada da verdade, que busca a verdade, que serve a verdade, questionadora, portanto. Sempre desconfiada, principalmente dos grandes poderes. Essa educação aí tem a capacidade de animar as pessoas para a luta. 

Em terceiro lugar, é preciso uma política de desmilitarização da sociedade como um todo, escolas e, principalmente, polícias.

É preciso discutir a segurança pública sobre a ótica da vida humana, tem que haver essa virada de Copernicus em que o patrimônio deixe de ser o centro do universo e as pessoas passem a ser o centro da ordem jurídica. O que não ocorre hoje. O direito é todo construído para defender o patrimônio dos ricos e assegurar as relações de dominação, de produção e reprodução dessa desigualdade, dessas riquezas, dessas pobrezas. São três pontos que a gente sempre está na luta. 

Envolve a luta contra o racismo também. Eu sou presidente da Comissão de Igualdade Racial, então todos esses pontos que eu te falei sempre faço uma leitura a partir da racialização das relações. No país, país absolutamente racializado, onde as pessoas racializam a todo o tempo. Todos os que não são brancos são racializados a todo momento. Eu coloco isso como pressuposto das outras questões. Essas são as centralidades do nosso mandato. Além da arte, da cultura, do cinema. Estamos atacando vários flancos.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

Últimas