Uma pessoa morreu a cada duas horas em ações policiais civis e militares no Brasil, em 2016, um aumento de 25,8% em relação ao ano anterior, conforme o Anuário da Violência do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Destas mortes, cerca de 90% eram homens, 81,8% tinham entre 12 e 29 anos, e 76,2% eram negros. Essa realidade brasileira denunciada por organizações e ativistas como genocídio da população negra vem à tona com o assassinato político de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro. O crime que vitimou também o motorista Anderson Pedro Gomes, na noite de quarta-feira (14), ocorreu três dias depois da vereadora negra ter denunciado a violência policial contra moradores da comunidade de Acari. A vereadora mais votada em 2016 no Brasil fazia parte do grupo de três relatores de uma comissão, criada em fevereiro, para monitorar os trabalhos da intervenção federal na segurança pública do estado.
O luto e o sentimento de revolta levaram milhares às ruas em cidades de todo o país. Em Florianópolis, a marcha repudiou o racismo cultural, institucional e político, partindo da Esquina Feminista (Largo da Alfândega) até a Escadaria da Igreja de Nossa Senhora Rosário, territórios simbólicos do povo negro. “Não temos medo”, gritaram manifestantes em resposta à tentativa de silenciamento representada na execução da vereadora e do motorista.
“Ela era muitas coisas e todas as coisas que ela era e foi tinham camadas pretas. Debocharam de uma parlamentar preta. Esse país diz todo dia pra gente os não lugares que nós não devemos ocupar. Mataram uma mulher vereadora negra para dizer pra todos os outros negros: não ousem. Mataram uma mulher negra que dizia aquilo que gostaríamos que ela dissesse, e ela disse até o último minuto. E ainda falta o último golpe que é colocar a arma na mão de um jovem negro. Quem dúvida?”, argumenta Jeruse Romão, militante do movimento negro, integrante da Escola de Formação Política Afro-popular Leonor de Barros.
Após a encenação do grupo “Madalenas em Luta”, os protestos continuaram com intervenções e falas engasgadas de dor e indignação. Em silêncio, colunas de manifestantes se formaram com faixas que traziam textos e ilustrações contra o extermínio do povo negro. A linha de frente dava o recado: “Parem de matar a gente, Marielle presente”. Os manifestantes pediram também o fim da intervenção militar no Rio de Janeiro e a saída do presidente ilegítimo Michel Temer. “Esse canto que devia ser um canto de alegria, soa apenas como um soluçar de dor”, cantaram durante a marcha lembrando o clássico “Três raças” da cantora Clara Nunes.
“Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar” foi um dos gritos de ordem mais presentes na manifestação. Nas ruas ouviu-se o lamento que seguiu até o lugar marcado pela história da escravidão, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a primeira do Brasil. Fundada no século 18 por descendentes de africanos escravizados, a igreja separava as pessoas negras das brancas no ambiente católico. “A irmandade do Rosário dos Homens Pretos, junto com a irmandade de outros santos negros, foi criada em vários lugares do Brasil para que a escravaria confessasse a fé católica, obviamente imposta porque o culto dos orixás era proibido. Como forma de conversão foi estimulado que os negros criassem essas irmandades”, explicou Jeruse.
Crime político
O relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2017/2018”, lançado em fevereiro pela Anistia Internacional, revelou que o Brasil liderou em 2017 o número de assassinatos de diversos grupos de pessoas: jovens negros do sexo masculino, pessoas LGBTI, defensoras e defensores de direitos humanos, grupos ligados à defesa da terra, população tradicionais e policiais. Ainda segundo o levantamento, a população carcerária atingiu um novo recorde negativo, chegando a 727 mil pessoas presas, sendo que mais de 60% são negras e 40% estão presas preventivamente.
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Para Jeruse, o assassinato da vereadora é um crime deliberadamente político. “Escolheram uma mulher negra que possuía legitimidade no que falava. Ela falava por muitos, não só pela Maré ou Rio. Os atos do mundo inteiro mostraram que ela tinha legitimidade para falar por todos. A gente trata dela como mulher negra, LGBT, do Rio de Janeiro, enquanto lugar de referência, onde ela se fez sujeito, mas sobretudo, a fala dela é nacional, as mulheres negras se reconhecem nela. Não é um crime local, é contra toda a população negra do Brasil”, defende.
Na opinião da ativista, o genocídio do povo negro, que se constitui no cotidiano das comunidades pelo Estado brasileiro, também tem caráter político. A repressão típica da ditadura militar de 1964 não cessou para essa população, uma violência que coloca o Brasil nas primeiras colocações do ranking mundial de homicídios. “Escutar ou não escutar determinadas denúncias também é político. Escolher não combater as mortes contra a população negra também é uma decisão política. Nos últimos três anos cresce uma autorização para refutar as políticas de direito à população negra. O conteúdo de quem é contra essas políticas é racista.”
A militante lembrou que Santa Catarina foi o primeiro estado brasileiro a ter uma parlamentar mulher negra com a eleição da deputada Antonieta de Barros, em 1930. “Ela também sofreu uma tentativa de execução de outra forma, enfrentando uma sociedade machista e racista. As pessoas não conseguiram dimensionar o papel dela na política catarinense. Uma mulher fantástica, importantíssima, primeira negra do Brasil, isso não é pouca coisa, e primeira mulher a ocupar a assembleia legislativa de Santa Catarina. Imaginem isso na década de 30? Apartada, ela foi atacada também enquanto esteve na tribuna por alguns parlamentares, homens brancos. Tinha uma resposta de pertencimento étnico, de lugar de negra, quando a chamavam de barata da senzala.”
As celebrações e atos mobilizaram o país e o mundo
No Rio de Janeiro, desde a manhã após o assassinato da vereadora, milhares de pessoas se concentraram na Cinelândia, em frente à Câmara Municipal, onde ocorreu o velório. Os corpos de Marielle e Anderson chegaram no início da tarde. Um cordão de mulheres negras contornaram o acesso à casa legislativa, por onde passaram os caixões, carregados por parlamentares e militantes do PSOL. Ao fim da tarde, o ato seguiu rumo à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e, de lá, seguiu pela Candelária retornando à Cinelândia. Uma multidão lotou a praça que trouxe o grito dos povos das comunidades.
As manifestações ocorreram em pelo menos 20 cidades brasileiras e em vários lugares do mundo. Em Santa Catarina, além de Florianópolis, outras duas cidades fizeram atos em homenagem à Marielle. Dentro da Câmara de Vereadores de Chapecó as mulheres fizeram um ato e colaram os nomes de mulheres assassinadas em Santa Catarina nos últimos anos, em cada degrau da escadaria que dá acesso aos gabinetes dos vereadores. Já em Blumenau dezenas de mulheres caminharam pelas ruas do centro da cidade e fizeram uma vigília na Praça Dr. Blumenau.
O eurodeputado português Francisco Assis evocou a condenação do crime ao Parlamento Europeu. “Assassinaram uma ativista feminista, dos direitos humanos, anticapitalista, assassinada num clima de violência política pré-eleitoral no Brasil”, denunciou, em pronunciamento. Na mesma sessão, mais de 50 deputados pediram a suspensão das negociações sobre acordo comercial entre União Europeia e Mercosul por conta do assassinato. Em Buenos Aires, as Mães da Praça de Maio convocaram uma vigília por Marielle.
Investigações inciais da polícia civil apuraram que a munição utilizada pelos criminosos que mataram a vereadora com tiros de uma pistola calibre 9mm é de lotes vendidos para a Polícia Federal de Brasília em 2006.
Um mandato de mulher
Reconhecida por também defender o direito das mulheres, em seu mandato Marielle propôs a criação do Dossiê Mulher Carioca para consolidar dados estatísticos sobre violência contra a mulher na cidade do Rio de Janeiro. Trabalhou para permitir o acesso das mulheres ao aborto legal e para conter os danos da criminalização àquelas mais pobres. Atuou para ampliar o número de Casas de Parto, locais destinados à realização de partos normais.
A vereadora mais votada no Rio com 46 mil votos foi criada na Favela da Maré, uma das mais violentas do Rio de Janeiro. Foi assessora parlamentar do deputado estadual Marcelo Freixo/PSOL, ao lado de quem participou da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa. Estudou Sociologia na PUC, com o apoio de bolsa integral, e fez mestrado em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense. Sua dissertação teve como tema as Unidades de Polícia Pacificadora. O título foi “UPP: a redução da favela a três letras”. Deixa uma filha de 19 anos.