A major Lumen Müller Lohn, primeira oficial trans da Polícia Militar de Santa Catarina, teve sua promoção para tenente-coronel negada pela oitava vez. A militar é alvo de um processo do Conselho de Justificação da PMSC aberto em novembro de 2022 — alguns meses após o início de sua transição de gênero. 

A decisão do Conselho, assinada em 5 de março deste ano, determina que Lumen seja impedida de ser promovida. De acordo com o artigo 12 da Lei Estadual nº 5.277/1976, as consequências dessa decisão agora ficam a critério do governador Jorginho Mello. 

Seriam elas o arquivamento do processo, pena disciplinar, transferência para a reserva (aposentadoria compulsória), encaminhamento à Justiça Militar (caso o motivo da ação seja considerado crime) ou ao Tribunal de Justiça. No caso do processo ser transferido para o Tribunal de Justiça, haverá a consideração sobre a permanência da oficial na ativa ou não.

A major afirma que, embora, até o momento, o parecer do Conselho seja apenas de que ela está impedida de ser promovida, esse seria um “eufemismo” para sua aposentadoria compulsória. “Uma das razões para aposentadoria compulsória é não poder compor o quadro de acessos, eles só não escreveram essas palavras”.

Três dos oito processos de habilitação para promoção ocorreram entre maio e novembro de 2022. O relatório do Conselho de Justificação — que avaliará a permanência ou não da oficial no cargo atual — afirma que Lumen não foi habilitada para as promoções “em razão do conceito moral desfavorável”. Além disso, o nome designado no nascimento da major foi citado no processo. 

“Para mim fica muito claro que o problema é a minha transição de gênero, embora eles não possam falar sobre isso. Eles sabem que isso seria muito ilegal, então ficam arrumando outras coisas”, afirma a major ao Catarinas. 

Lumen se descobriu uma mulher trans em agosto de 2022, e iniciou sua transição no mesmo ano. Em setembro, iniciou o processo de retificação dos documentos e terapia hormonal. Com isso, a comunicação oficial da mudança à PM ocorreu em janeiro de 2023. 

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Lumen em encontro do Movimento População de Rua | Crédito: arquivo pessoal.

Policial não chegou à segunda etapa da promoção

O processo interno de promoção da PM envolve algumas etapas. Primeiro, a habilitação: o profissional tem seu tempo de carreira e notas ao longo do curso de capacitação avaliados. Nessa fase, mais objetiva, Lumen afirma ser a primeira colocada, “com vantagem considerável sobre o segundo”.

As três primeiras habilitações de Lumen para a promoção ocorreram em 5 de maio, 25 de agosto e 15 de novembro de 2022. Todas foram negadas. Durante o período entre setembro de 2022 e janeiro de 2023, a major já estava realizando os trâmites legais de sua transição, incluindo retificação dos documentos e a já citada comunicação à PM.

Em seguida à habilitação, há uma votação, em que os membros da Comissão de Promoção de Oficiais PM (CPOPM) concedem uma nota de 0 a 6 aos candidatos. A policial, entretanto, não foi classificada para essa segunda fase, por acusação de não cumprir “o requisito moral”.

Entretanto, Lohn nunca sofreu qualquer punição grave nesse sentido. Suas únicas punições administrativas — não relacionadas ao caso atual — se referem a erros de preenchimento em documentações e atrasos na conclusão de procedimentos disciplinares.

Condição mental da major foi citada em parecer do Conselho

Além de tudo isso, o processo cita “inúmeros afastamentos médicos” desde 2017, que somariam 1.044 dias. A oficial, que possui o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH) e Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), tentou suicídio naquele ano. 

Após tratamento com medicações e acompanhamento psiquiátrico, conseguiu voltar a trabalhar com aval da Junta Médica da PMSC. Ela já vem trabalhando ininterruptamente há mais de 2 anos.

O parecer do Conselho citou como justificativa para o processo não apenas os transtornos mentais da major, mas também sua tentativa de suicídio. O psicólogo e tenente-coronel da PMSC, Diego Remor Moreira Francisco, testemunhou que o quadro de saúde da major pode ter recaída ou recorrência, o que Lumen contesta.  

“O meu retorno não foi porque minha licença médica terminou, o meu retorno ocorreu porque eu passei pela Junta e ela confirmou que eu podia trabalhar. E desde então eu estou trabalhando sem nenhum tipo de incidente”.

Segundo a advogada Larissa Cugnier, especialista em Direito Militar, Lumen pode recorrer da decisão. “Se é uma ausência por motivo médico, mas é algo que é insignificante para o posto que ela está hoje ou que ela quer ocupar, não justifica e cabe recurso”. 

Lumen habilitou-se para ser promovida (ou seja, cumpria oficialmente os requisitos) ao cargo de tenente-coronel em maio de 2022. O então Comandante-Geral da PMSC, coronel Marcelo Pontes, pediu, em dezembro, a abertura de um Conselho de Justificação. 

Processo aguarda decisão do governador de Santa Catarina

O passo seguinte é encaminhar o processo ao governador de Santa Catarina. Essa etapa foi iniciada em março de 2023, quando Jorginho Mello (PL) instaurou a abertura do Conselho. Uma vez que receba os autos do processo, o que ainda não ocorreu, o governador terá um prazo de 20 dias para se manifestar — favorável ou não — à decisão. 

“É doloroso ver que quem está ali do meu lado o tempo todo, vendo o que eu estou fazendo é favorável a que eu seja promovida […]. E alguém que não está vendo o que está acontecendo, está enxergando de longe, cria toda uma situação que não condiz com a realidade”.

Procurada, a Polícia Militar de Santa Catarina declarou, através da assessoria, que não pode se manifestar sobre o caso até sua finalização. Confira o posicionamento na nota a seguir, reproduzida na íntegra.

“A PMSC só poderá se manifestar após o término do processo. Cabe ressaltar que não há, até o momento, nenhuma decisão no processo, muito menos, a aplicação de qualquer penalidade, e, também por questões legais, inclusive, de proteção dos dados da própria oficial, ainda não se pode fornecer informações mais detalhadas sobre o feito”.

A história de Lumen se assemelha à de Bruna Benevides, a primeira mulher trans da Marinha brasileira. Em 2017, a Segundo-Sargento Bruna sofreu um processo de reforma compulsória por ser considerada “incapaz” — uma espécie de aposentadoria por invalidez — de continuar exercendo suas atividades. No mesmo ano, ela entrou com um processo judicial e foi autorizada a continuar trabalhando.  

Na época, a transgeneridade de Bruna era tratada como uma doença. Apenas em junho de 2018 a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou o termo “transexualismo” da Classificação Internacional de Doenças (CID).

Em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pelo reconhecimento de atos de homofobia e transfobia como crime de injúria racial. Essa medida complementou a decisão de 2019, quando a Corte já havia equiparado esse tipo de discriminação ao crime de racismo.

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  • Iraci Falavina

    Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina, Iraci já atuou como colaboradora dos veículos Folha de S...

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