Algumas semanas atrás, Lumen Müller Lohn, 43 anos, estampou manchetes de diversos portais Brasil afora. Na maioria, a sua função militar e a sua identidade de gênero estavam justapostas: “policial trans”, “oficial trans”, “major travesti”, “PM travesti”, “PM trans”, “agente trans” são os termos que encontramos na primeira página de busca da seção de notícias, ao pesquisar seu nome. O motivo é o fato de que, após 25 anos de serviços prestados à Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC), a corporação instalou um Conselho de Justificação contra a major, sem motivações explícitas, que pode levá-la ao desligamento da instituição.

Em ato governamental, de 24 de abril, o governador Jorginho Mello publicou no Diário Oficial a determinação de constituição do Conselho. Erroneamente tratando a oficial com pronomes masculinos, o texto normativo instruía a avaliação da sua “capacidade moral e profissional” e “a convivência de sua permanência nas fileiras” da Polícia Militar. Com a sequência do rito, ela foi apresentada aos documentos que deram origem ao processo. Nessa etapa, Lumen teve acesso a um dado: mencionam na justificativa, sem detalhes, o período de mais de 1.325 dias, entre maio de 2019 e janeiro de 2022, em que ela ficou afastada, sob prescrição e acompanhamento médico, para tratar o quadro de bipolaridade com o qual havia sido diagnosticada. Ela não entende como isso poderia se aplicar à situação.

No dia 26 de maio, eu e ela nos encontramos em um café no Kobrasol, em São José (SC). Marcamos à noite, depois do fim do seu expediente. Lumen chegou sem farda, de vestido preto, sapato baixo, com o cabelo solto e uma faixa. Escolhemos uma mesa, nos sentamos, fizemos os pedidos, pedi permissão e comecei a gravar. Na conversa, que se estendeu por uma hora, falamos sobre a ação que ela está enfrentando, sobre militarismo, segurança pública e como o corpo dela, em transição, tem lido os contextos que vivencia.

Joá Bitencourt: Gostaria, primeiramente, de saber se o processo teve alguma atualização nas últimas semanas e como tem sido o seu dia a dia desde a abertura dele, que agora está próxima de completar um mês.

Lumen: Em relação ao dia a dia, não chegou a mudar muita coisa. Obviamente, a gente toma mais cuidado. Tem aquele momento de chegar a ficar meio paranoica, pensando: já que o processo foi iniciado sem ter nenhuma razão, então qualquer coisa pode ser usada como acusação. Mas a minha rotina em si não foi afetada. O meu trabalho está exatamente a mesma coisa. A gente teve uma troca de chefia nesse meio tempo, inclusive, mas não tem uma relação direta com esse fato. O novo diretor também é super atencioso, supersensível ao que está acontecendo e à minha transição. Ele tem sido bem receptivo. A minha postura inicial de ter sido super bem acolhida no meu local de trabalho se mantém. Isso não mudou, recebi apoio, inclusive. Várias pessoas comentaram sobre isso. Acho que é meio unânime entre as pessoas que trabalham junto comigo que esse Conselho é exagerado e, de certa forma, descabido.

A sensação que eu tenho, como eu me sinto em relação a isso, é que estou sendo injustiçada. É muito claro para mim, hoje, que esse questionamento à minha capacidade de permanecer na Polícia e essa clara vontade de um grupo de me excluir é seja ocasionada por preconceito. Eu não consigo não pensar dessa forma. Eu estou lá fazendo o meu trabalho, exatamente o que eu fazia antes, do mesmo jeito, que era adequado, e de repente deixou de ser? Não mudou nada.

Quer dizer, eu mudei a minha apresentação só, mas o tipo de serviço e as habilidades que eu executo, que eu desenvolvo, continuam exatamente iguais. Eu não vejo por que haja um problema para ser questionado. E, assim, neste mês, nós já tivemos a primeira audiência do Conselho de Justificação. Nela, foi feita a instalação e alguns passos burocráticos, e também foi lido o documento que deu origem ao Conselho e não faz sentido, porque não existe nenhuma acusação ali. Então, eu estou sendo submetida a um processo do qual eu tenho que me defender sem acusação.

Assembleia de Usuários do Ambulatório Trans de São José, em outubro do último ano, onde Lumen tem feito acompanhamento médico e psicológico. Foto: arquivo pessoal

O que os documentos falam?

Falam sobre eu ter ficado afastada mais de mil dias. Do jeito que falam, parece que foi uma coisa absurda, mas foi por problema médico. Foi feito testamento legal, visita da Junta e também não foi só o meu médico que me autorizou. Ou seja, não podem nem questionar esses afastamentos, porque a Junta Médica da Polícia, que é formada por três oficiais médicos, autorizou. E outra coisa é o fato de eu não ter sido promovida. O mesmo órgão que não me promoveu está usando o argumento de não ter me promovido como motivo para me mandar embora.

Na entrevista que deu ao UOL, você relembra que, por ter sido aberto em novembro, o processo administrativo que você está sofrendo vem da última gestão da PMSC e tramitou no final do governo de Carlos Moisés (Republicanos), que não chegou a publicar o ato para que ele se iniciasse, de fato. Ainda assim, o atual governo, de Jorginho Mello (PL), tinha gerência sobre prosseguir ou não com ele, e escolheu dar sequência. Inclusive, usando artigos e pronomes masculinos para se referir a você na publicação feita no Diário Oficial do Estado. Nesse cenário, acredita que a gente consiga discutir sobre uma violência institucional?

Ano passado, quando eu soube que esse processo seria instaurado, pensei que não iria para frente. A competência para a instauração do Conselho é exclusiva do governador, aí, como era final do ano, imaginei que isso não fosse ser instaurado naquele momento e que ia ter essa virada para o ano seguinte. Eu pensei: “Bom, comandante novo, governador novo, imagino que o processo não vá para frente”. O governador poderia ter arquivado. Também não quero imaginar que o governador tomou essa decisão por conta própria, ele deve ter ligado para o comandante, por ser uma decisão que afeta diretamente o comando da Polícia e, ainda assim, foi feito, então eu não consigo ter outra leitura. Trocaram as cabeças, mas os pensamentos continuaram.

É paradoxal. Eu me vejo bem integrada hoje. Eu sei que ainda é novidade, que tem gente que está levando um tempo para se acostumar. Se eu vou em algum evento, ainda chamo atenção. Mas isso, daqui a dois ou três anos, talvez já não seja incomum, porque agora ainda tem esse status de novidade. Deve ter gente ainda torcendo para que eu volte atrás, mas, no âmbito de trabalho, eu não sinto nada assim. Eu trabalho em uma diretoria, faço parte do setor administrativo, então eu preciso ligar para gente o tempo todo, boa parte deles, inclusive, coronéis, e funciona tudo muito bem. Ninguém erra o nome, ninguém fala besteira, ninguém ignora o meu pedido porque sou eu que estou fazendo, sabe? Eu tenho esse retorno. E eu não consigo ver, nominar ou isolar a parte institucional para dizer quem está fazendo esse tipo de coisa. É algo pequeno e invisível.

Mas que, ainda assim, tomou essas proporções gigantes. Você acha que, de alguma forma, a corporação — e quando falo isso não estou falando do setor em que trabalha ou das pessoas que trabalham com você, mas da instituição Polícia Militar — vê a presença de um corpo travesti como uma ameaça?

Sem dúvida. Não internamente, eu vejo externamente comentários a respeito disso. As pessoas não imaginam, mas, nos grupos onde elas acham que estão falando seguras, elas não estão, porque tem sempre alguém que está do meu lado, que tira um print e manda. Eu sei o que acontece nos grupos, eu sei o que acontece a portas fechadas. Tem gente que vê que é importante ter essa diversidade e que não tem por que criar entrave pela minha existência. Outros não têm preconceito por mim, mas eles têm preconceito de serem associados a mim.

“Ah, Polícia é lugar de travesti!” Só tem uma. São dez mil policiais, só tem uma travesti, mas “é lugar de travesti”. Então, quando alguém está falando comigo, tem medo de ser rotulado como “amiga ou amigo de traveco”.

Durante as ações do 8M, Lumen participou de um ato contra a transfobia, no Ticen, em Florianópolis. Foto: arquivo pessoal

Desde o primeiro momento, você não hesitou em falar com jornalistas sobre a situação. Normalmente, entre militares, nós observamos a escolha por uma postura mais reservada, seja por não querer falar em nome da Polícia Militar ou por medo de retaliações, por exemplo. Falar sobre isso foi uma decisão tomada conscientemente?

Foi. Eu sempre digo que, quando a gente se percebe travesti, tem dois caminhos a tomar: o da low profile ou o da ativista. Eu já tinha escolhido o caminho da ativista antes, então não tinha muita opção.

E, assim, embora não apareça na maioria das reportagens, o que causou essa comoção inicial, que fez o caso repercutir, foi uma postagem do deputado Jessé Lopes (PL), onde ele foi… Bom, ele foi o Jessé. Aquilo me deixou muito ofendida, e eu precisava responder. Óbvio que eu não iria responder diretamente para ele, porque ele é assim e ele não vai mudar por isso, mas eu achei importante aproveitar o espaço que eu ia ganhar para poder, pelo menos, mostrar que não é como as pessoas estão falando. Tem várias coisas erradas.

Outro momento em que eu me senti angustiada e até desamparada, sobre a postagem do Jessé inclusive, foi o fato de que ela não tocou só a mim. Ela tocou a Polícia também. A Polícia tem mulheres, e tem que ser macho na Polícia? Ele falou do meu sapato. É o sapato oficial da Polícia, aquela farda e aquele sapato. Do jeito que ele colocou, parece que, um dia, eu resolvi, do nada, aparecer lá de tamanco. E é só o sapato padrão da Polícia, que toda policial usa. Se ele acha tão inadequado assim, ele deveria estar questionando o comando sobre o porquê de as policiais terem que usar esse sapato, que não serve para nada. Machuca para caralho, é bem desconfortável. A Polícia foi atacada e não falou nada porque “não vamos mexer com o deputado”.

Em uma conversa breve com a Rede Nacional de Operadores de Segurança LGBTI+, a Renosp, tive acesso a, pelo menos, outros quatro casos recentes de perseguição ou algum outro tipo de violência a agentes de segurança por sua identidade sexual e/ou de gênero: Felipe Joseph, da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul; Priscila Diana, também da PMSC; Páris Borges Barbosa e Fabrício Rosa, da Polícia Rodoviária Federal. Assim que a situação ocorreu, o movimento se posicionou a seu favor. Como tem sido o contato com a organização e, possivelmente, com outras entidades?

Eu sou membra da Renosp desde o ano passado e, este ano, fui eleita diretora do movimento em Santa Catarina. Toda essa articulação já foi feita comigo acompanhando. Eles fazem parte do Conselho Nacional de Direitos Humanos, então o Conselho fez uma manifestação também. Tiveram várias entidades que fizeram manifestação sem nem entrar em contato comigo. Tudo bem, não estou reclamando, só achei curioso. As que falaram comigo foram a Aliança Nacional LGBTI, o Toni Reis e a Renosp. Mas tiveram várias que fizeram postagem, inclusive a Antra, a Fonatrans. Agora não vou lembrar o nome de todas. Tiveram várias entidades que fizeram pelo menos uma nota ou um post falando sobre o caso e manifestando apoio. Isso é bom para mim, enquanto Lumen, por saber que eu não estou sozinha, que tem alguém que ainda tem disposição. Mas também é bom para a visibilidade porque pressiona o governo.

A gente sabe que agora, no momento em que está, a decisão não é mais judicial, lógica, técnica. Ela é puramente política. Tudo o que eu não quero é ter que judicializar isso. Eu quero que seja resolvido o mais rápido possível, do jeito mais adequado possível.

Eu estou no final de carreira. Em tese, eu já tenho até o tempo de serviço terminado, completo. Se isso for judicializado, vai levar, sei lá, sete, oito, nove, dez anos. Eu já não vou estar mais adequada para voltar ao trabalho. E o fracasso de não ter conseguido permanecer até o final é muito ruim. O que eu quero é, justamente, ficar lá os quatro anos que faltam e ir para casa. Ter que chegar a esse ponto de entrar em uma ação judicial seria muito ruim. Se eu tivesse mais 15 anos pela frente, até valeria.

Também em entrevista recente, ao Terra, você declarou que, antes da transição, nunca havia tido medo de ação policial, mas que agora você tem. E que, em uma situação de violência, gritaria que é da Polícia também. A opinião pública mostra que as Forças Militares têm sido historicamente repressivas com as populações minorizadas, principalmente as pessoas negras e pobres. Durante os seus 25 anos de atuação na corporação, como lidou com essas questões?

Eu nunca tinha feito associação, assim. O preconceito estrutural existe e existe o preconceito que acaba sendo institucional também. Então, de alguma forma, no processo de formação ou nos processos de ação da Polícia, ela cria esse fantasma do criminoso. Ela cria um alvo, alguém a ser perseguido, uma figura que ela precisa perseguir, uma definida. E os alvos acabam sendo as pessoas negras, as pessoas LGBT, as pessoas que já são, por outros motivos, marginalizadas, como a população de rua.

Já estive em uma atuação, por exemplo, em que vi o policial chutando um mendigo. O cara não tem nem onde morar, tu vais chutá-lo por quê? A nossa função é fazer com que as pessoas se sintam mais seguras, o mendigo em questão inclusive. Ele também é uma pessoa, ele também tem que se sentir mais seguro.

Eu sempre tive esse posicionamento. Sempre! Acho que eu sempre fui meio divergente do processo. Eu fiz Direito na Federal e eu tinha uma professora de Criminologia que dizia que eu era a primeira policial que ela conhecia que não enxergava um alvo nas costas do negro. Não tem por quê.

Hoje, eu tenho uma perspectiva ainda mais clara, mais transparente, mais definida, porque eu vivi a fase de não sofrer preconceito. Estava em uma situação de puro privilégio e entrei na parte de sofrer preconceito o tempo todo. Então, eu consigo perceber como é estar dos dois lados.

Como eu posso explicar? Gente que sofre preconceito desde sempre nem sempre percebe que está sofrendo algum tipo de preconceito. Eu comento com a minha noiva bastante sobre isso. Ela foi mulher a vida toda, então ela sofreu violências por ser mulher. E boa parte dessas violências ela nem percebe que está sofrendo. Para ela, isso é tão comum. E como eu nunca sofri, comecei a sofrer algumas violências novas agora, fica muito marcado.

Você tem um pai militar, hoje aposentado, e uma mãe professora, e já afirmou também que o desejo de ter entrado na carreira, e agora permanecer, vem de um sonho seu. Enquanto para algumas pessoas as forças de segurança representam repressão, para você, suponho que tenha sido diferente. De que forma você enxerga a segurança pública?

Eu sempre tive essa fascinação pelo militarismo. Pode ser minha, natural, ou pelo ambiente em que eu convivi. O meu pai era militar, eu fui meio que criada do lado do quartel, que ficava do lado da nossa casa. Fiz o segundo grau em colégio militar, sempre muito próxima disso. E aí eu passei para a Academia da Força Aérea. Eu fiquei um ano lá em Pirassununga, em São Paulo, no curso de piloto. Acabei não me adaptando, eu tinha só 16 anos na época, voltei e fui tentar entrar na Polícia, já que é pertinho, não fica tão longe e, aparentemente, o trabalho é mais suave.

Eu tinha a convicção de que o que eu aprendesse na Academia da Polícia Militar, eu usaria no mundo real, o que não aconteceria na Força Aérea, porque eles são treinados para guerra. Não estamos em guerra. E deu certo. Óbvio que essa visão de opressão eu fui perceber depois que eu estava lá dentro. Eu cheguei a pensar em desistir durante o curso, mas eu tinha duas opções, que eram correr ou tentar mudar. Falhei miseravelmente em tentar mudar, mas estamos aí ainda.

 Aulão do Projeto de Educação Comunitária Integrar, onde a policial assume como professora voluntária de Matemática. Foto: arquivo pessoal

Nos últimos anos, os setores progressistas têm feito a autoanálise de que abandonaram essa pauta, a da segurança pública, deixando que o conservadorismo a puxasse para si. Agora, você falou que entrou querendo mudar a Polícia Militar, mas que falhou miseravelmente. O que acha que deveria mudar em relação à formulação de políticas públicas nessa área?

Acho que, hoje, a gente consegue muita coisa mexendo na formação. É que, pela Polícia, eu fui ter contato com algum tipo de criminologia crítica ou algo do gênero quando eu já era capitã. Todo mundo que estava comigo já tinha todo aquele vício de trabalho. Eles já estão, não vou dizer quebrados, mas limitados na capacidade de assimilar. Mas se chegar lá com o cara que está entrando agora e tentar transmitir alguma coisa desse pensamento, é possível.

A visão que a Polícia tem, não enquanto instituição, mas enquanto pensamento coletivo, é que tudo que for tentar tirar do confronto é “levar flor para o bandido”. Não é. Primeiro, tu não rotulares ele como bandido já é meio caminho andado. Tu pegas, sei lá, o cara andando no Chevettinho velho, arrastando um pedaço da lataria no chão, e aí tu vais fazer uma abordagem nesse carro? É possível que tenha alguma coisa dentro, mas é possível que sejam só quatro pessoas voltando para casa depois de um dia de trabalho, virando massa o dia inteiro. Tu não tens como saber. E tu já chegas chutando a porta, dizendo: “Desce do carro, vagabundo”, mas por que ele é vagabundo?

Não criar alvos já é meio caminho andado. Porque, aí, ele já não enxerga o outro como inimigo e o outro já não enxerga ele como inimigo também. Se olhar essa população marginalizada, ela tem raiva e/ou medo da Polícia justamente por isso. Ela é oprimida por todo um sistema em cima dela e a Polícia, que era para ser a grande protetora, para que ela conseguisse sair sem ser assaltada ou algo do gênero, se torna algo que vai gerar mais violência em cima dela.

Então, esse mecanismo de formação tem que começar a prever isso. Se a gente conseguir, daqui a cinco anos, uma Polícia que não xingue as pessoas quando está abordando, eu já vou ser uma pessoa muito, muito feliz. Vou dizer que consegui plantar sementes, daí para frente começa a melhorar.

Foi naturalizada a imagem de que a Polícia é dessa forma e você falou algo que é interessante: que a instituição é formada para ser assim. Para quem é civil, gostaria que descrevesse um pouco sobre essa formação, dentro do que conseguir falar.

Primeiro, esquece a formação do Bope, do Tropa de Elite, que aparece no filme, porque não é daquele jeito. É salinha de aula, pessoal entra em forma, sai de forma, um troço super organizado. Tem uma ou outra aula que é de campo, aula de tiro, que a gente faz no estande, aula de abordagem, que é feita na rua, no pátio, mas em geral é sala de aula.

A questão é os mecanismos da formação, os detalhes. Não tem uma aula dizendo: “Ah, vocês vão lá e vão atirar nos negros”. Eles não falam isso, óbvio que eles não falam isso. “Ah, mas esse pessoal que mora no morro é mais difícil de trabalhar”, é nessas coisinhas pequenas, sabe? Na aula de Direito Penal, de Processo Penal, tem sempre um comentário nesse sentido. E tinha que ser no sentido inverso, falando sobre todos serem cidadãos. Nós temos um coronel que usa o termo “cidadão em conflito com a lei”. É um dos termos da criminologia, justamente para não botar o rótulo de criminoso em cima da pessoa, porque “criminoso” já é uma coisa muito ruim.

A gente fez uma vez um exercício de autodenúncia. Pega um papel, sem colocar nome nem nada, e começa a escrever os crimes que tu achas que cometeste. Todo mundo é criminoso. Todo mundo cometeu crime. O Código Penal é feito para não ser cumprido, não tem como cumprir aquilo. Essa parte de lidar, não lidar, ter bom senso ou não ter bom senso, não tem como atribuir, tu tens que começar a definir quais são os limites. Por exemplo, o Supremo está definindo agora os limites do que é posse e o que é porte, porque não existe bom senso.

As opressões não foram inventadas pela Polícia, necessariamente, mas ela perpetua essas violências, como outras instituições. Então, como falou, se não houver uma formação propositiva e crítica com relação a elas, é impossível que se chegue a outro lugar.

Exatamente. Se a Polícia for extinta de uma hora para outra, todas as opressões continuam. Não vão sumir as opressões. Eu sou idealista, é notório, mas eu não tenho nenhuma visão muito romântica de que a Polícia um dia vai ser perfeita. Não, a Polícia é um órgão de repressão, ela sempre vai ser um órgão de repressão. Ela sempre vai ter esse caráter de imposição. Enquanto a gente não chegar em uma sociedade ideal, que não precise de um órgão de repressão, vai existir a Polícia. Só que a gente precisa visualizá-la não como o braço torturador do Estado, e sim, simplesmente, o braço de manutenção da ordem do Estado.

Pessoas trans não precisam ser encarregadas de mudarem tudo ao seu redor. Porém, existe um impulso transformador por parte da nossa população, uma vez que nos entendemos no mundo. Qual o papel que você acredita que um corpo travesti possa desempenhar estando em uma corporação como a Polícia Militar?

Eu acho que muda mais o mundo em volta do que a Polícia. Eu vejo a história de várias outras oficiais trans, como tudo é difícil, como é difícil ficar. Várias delas, como a capitã Bianca, da Marinha, que foi excluída. Bruna Benevides também sofreu com isso. É um ambiente muito cis. Não é mais masculino, nós já temos mulheres há 40 anos, mas ainda é muito cis. Ele não consegue aceitar a diferença, embora ele vá aceitá-la, mais cedo ou mais tarde. A minha permanência lá, assim como todas que me antecederam e que não conseguiram permanecer, vai mostrar que o caminho está aberto, que é possível. Eu recebi mensagem de várias moças trans dizendo que o sonho delas é entrar na Polícia.

Sei que tem uma companheira e filhos e que, como já falou a outros portais, essas pessoas, assim como as que trabalham com você, foram acolhedoras com o seu processo de transição. Essa não é a realidade da maioria das pessoas trans, mas é importante que as nossas histórias não se resumam à não aceitação. Apesar de tudo que tem acontecido profissionalmente, se você quiser, acredito que contar sobre essa parte também seja importante.

Eu fui casada duas vezes. Tudo antes da transição. Tive uma filha no primeiro casamento, que tem 20 anos. Quando eu comentei para a minha filha, ela respondeu que já sabia, então não teria como ter sido melhor que isso. Super apoiadora, super gente boa. A mãe dela também me aceitou superbem, ela me chama de “a outra mãe”. Super tranquilo. Ela mora em Imbituba, a gente não se vê com tanta frequência, porque ela está fazendo faculdade, em outra vibe.

Aí, me casei pela segunda vez e tive mais um filho, que está com 11 anos agora. Também aceitou superbem, me abraçou, disse que me ama de qualquer jeito. Claro, tive que fazer uma explicação mais lúdica para uma criança que tinha dez anos na época. Não entrei em detalhes mais complexos, mas ele entendeu o que estava acontecendo e aceitou superbem.

Depois que eu me divorciei da segunda esposa, eu tive mais uma filha com uma namorada na época. Hoje, ela está com sete. Essa eu convivo direto. Eu fico com ela final de semana sim, final de semana não, a gente se fala por vídeo o tempo todo, super próxima. Ela é mais curiosa nesse processo. Além de ter assimilado muito rápido que não é mais pai, é mãe, ela me defende. Não me defende só no reconhecimento do gênero, me defende como sendo mãe dela. Ela já discutiu com um colega na escola por isso, porque o caso é famoso agora, todo mundo na escola dela sabe. Então, estou superbem.

Lumen e sua filha mais nova em evento escolar de Dia das Mães, este ano. Foto: arquivo pessoal

A minha quase-esposa — “quase” porque nos casaremos dia 12 de junho — eu conheço há seis anos, mas, desde o começo, parecia que a gente se conhecia há muito mais tempo. Parece aquela coisa de cinema, de ter encontrado o amor da minha vida. Ela sabe tudo sobre mim, eu sei tudo sobre ela. Bateu muito o santo.

Foi a primeira pessoa para quem eu contei. Na verdade, a gente meio que estava discutindo sobre isso e eu entendi, fez todo sentido para mim, já contei para ela. É difícil explicar para as pessoas como é esse processo de se entender. Não é uma coisa, pelo menos comigo não foi assim, que “talvez, quem sabe”. Não, vem em uma lambada e tu pensas: “Meu Deus, tudo aquilo que eu senti a minha vida inteira, tudo aquilo que não fazia sentido, tudo aquilo que parecia que estava errado era só isso? Poxa, poderia ter resolvido antes.”

Ela ficou chocada nos primeiros dias. Era complexo, porque ela não tinha com quem conversar sobre isso. Tudo viraria exposição a partir dali e ela é bem ética nessa coisa de não tirar as pessoas do armário. Mas aí ela acabou achando os caminhos dela para conseguir se resolver, com psicólogos, toda uma estrutura. E estamos aí! Em março, eu pedi ela em casamento, ela aceitou. Está tudo bem.

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    Joá Bitencourt é estudante de Jornalismo, pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e faz estágio obrigatório no Por...

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