Na última semana, a primeira mulher trans integrante da Polícia Militar do Estado de Santa Catarina, a sargenta* Priscila Diana Braz e Silva, 43 anos, foi notícia em razão de sua luta pelo reconhecimento do direito à mudança de nome social em todos os seus documentos. Após meses de espera, o sistema militar finalmente foi atualizado, e agora, ela está reconhecida formalmente.

Em entrevista ao Portal Catarinas a sargenta da PM, Priscila Diana, relata sobre situações em que foi flagrada pela mãe quando se vestia com roupas femininas, destaca o acolhimento de parte da família e dos colegas de trabalho, e enfatiza a importância de se compreender que a diversidade é parte da sociedade em que vivemos.

Em transição de gênero há dez anos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), encontrou o seu nome e a sua identidade. Está realizada como mulher e como profissional. Priscila espera que as mulheres trans possam ter oportunidades de trabalho e renda para viverem com dignidade, assim como ela.

Sargenta Priscila Diana da PM de SC / Foto: arquivo pessoal

PORTAL CATARINAS- Como foi a sua decisão de entrar para a Polícia Militar? Nos conte a sua trajetória.
PRISCILA DIANA – Quando decidi entrar para a polícia foi por dois motivos. Primeiro, eu tinha muitas pessoas na família que já eram do meio e sempre me incentivaram a entrar. Segundo, eu tinha 19 anos e era revoltada com o fato de não poder ser quem eu me sentia ser. Aí fui fazer o concurso e acabei passando. Como estava revoltada eu passei a fazer tudo que fosse mais perigoso, sabe. Cursos difíceis, trabalhos mais perigosos. Era como se eu quisesse que desse errado um dia e tudo aquilo acabasse. Mas com o passar do tempo fui aprendendo a gostar do que fazia e ver que tinha algo muito bonito e bom que eu podia fazer pelas pessoas. Passado alguns anos eu descobri que existiam procedimentos cirúrgicos e medicamentos que podiam me ajudar a ser quem eu realmente era. Aí eu comecei a minha transição. Isso já faz uns dez anos. Porém me assumi em dezembro de 2019. Foi ali que comuniquei à polícia que ia transicionar.

Gostaríamos de saber sobre o seu processo de transição. Como foi essa decisão para você? Houve uma relação de descoberta já na infância? Quando você se autodenominou Priscila? Os atendimentos foram pelo Sistema Único de Saúde (SUS)? Como foi a relação com a sua família e no trabalho?
Eu já me sentia mulher desde meus 6 ou 7 anos de idade. Porém naquela época não se tinha informação. Eu não entendia por que meu corpo era de um jeito e eu de outro. Aí eu passei a tentar esconder quem eu era, porque meus pais eram muito rígidos. Mesmo muito criança eu sabia que era, entre aspas, errado. Eu fui crescendo, pegando roupas da mãe escondida e fantasiando um mundo que achava que nunca seria meu. Minha mãe, às vezes, me dava o flagra. Mas não contava para meu pai.

Eu passei a me autodenominar Priscila quando comecei a frequentar um ambulatório do SUS para pessoas transgêneras, em Curitiba. Meu nome social no SUS passou a ser Priscila.

Quando alterei meus documentos oficialmente passei a ser Priscila Diana.

Em conversa com uma amiga, ela falou: ‘já que vai brigar com o mundo, por que não muda para Diana como a mulher maravilha?’. Eu ri e falei: ‘está bem, vou colocar como segundo nome’.

Mas foi tudo uma brincadeira mesmo. Na polícia meu nome de guerra passou a ser sargento Diana. Mas meu nome completo é Priscila Diana.

Meus pais aceitaram bem. Não por conhecimento, mas por amor mesmo. Já meu irmão não aceita até hoje por questões de religião. Meus amigos antigos, fora os do trabalho e parentes, a maioria se afastou. Sobrou poucos. E gente próxima que sempre acolhi de coração. Mas entendo também que há falta de informação.

No meu trabalho foi melhor do que pensei. Recebi muitas mensagens de apoio de colegas e meu comando me tratou com muito respeito. Tenho um ambiente de trabalho muito bom. Até porque já tinha um histórico de boa relação com meus colegas que me ajudou muito. Como sargento sempre fui a pessoa que brigava pelos direitos da tropa.

Você está há mais de 20 anos na polícia. Enfrentou situações hostis? Como você lidou com isso?
Não posso dizer que tive uma situação hostil ou sofri preconceito. Nem no trabalho ou na rua. Talvez fui uma pessoa de sorte. Meu único problema foi quando precisei retificar meus documentos, que foi completo. Complicado. Aí a coisa não andou. Agora está tudo certo, mas porque houve uma pressão muito grande da mídia. 

Foto: arquivo pessoal

Como é o seu trabalho como comandante de policiamento ostensivo? Como foi trabalhar no serviço administrativo por esse período?
Atualmente não realizo meu trabalho mais nas ruas. Trabalho em uma seção administrativa. Então ainda não estou em contato direto com as pessoas. Eu gosto do trabalho administrativo que faço. Eu trabalho hoje com planejamento e instruções. Então é algo que gosto de fazer também. Gosto de mexer com o cérebro.

Aos 43 anos, você é a primeira mulher trans da PM no estado. Vemos que você superou barreiras e é exemplo de determinação para outras pessoas. Como você vê essa situação?
O fato de ser a primeira mulher trans para mim é motivo de orgulho, mas também uma responsabilidade muito grande. A forma como conduzo meu trabalho e a forma como vivo é que vai dizer se podemos ou não ser bem vistas. Sempre dou o meu melhor como profissional e ser humano, justamente porque sei da minha responsabilidade e do que isso representa.

O fato de eu estar inserida no mercado de trabalho e na sociedade é importante e uma esperança para outras pessoas que não veem a chance de ter uma vida digna. A sociedade criou um estereótipo da gente e isso é muito prejudicial a nós. Muitas ainda vivem na prostituição e a ideia é abrir portas às pessoas.

A busca de meus direitos é também muito importante, porque quando não tenho meus direitos reconhecidos toda a sociedade corre risco também. Hoje, sou eu por ser trans, amanhã é você ou qualquer outra pessoa por qualquer outro motivo. Lutar por direitos é dever de toda a sociedade. Independente do que cada pessoa busca, deveria ser uma luta de todos.

Foto: arquivo pessoal

Hoje nossa relação social mudou tanto e ainda está mudando. E a diversidade deve ser reconhecida como uma forma normal de existência. Hoje em dia muitas empresas já estão investindo em grupos de trabalho mais diversificados, porque foi comprovado que a produtividade é maior.

Como você lidou com a questão masculinista da polícia?
Na verdade não é uma instituição tão masculinizada, pelo menos em Santa Catarina, porque a gente já tem um efetivo de policiais femininas bem expressivo. Com relação a essa parte machista, eu até acredito que não tenha tanto, porque no meu trabalho não tive nenhuma situação assim de gravidade. A nossa tropa é bem instruída na questão de direitos humanos, Santa Catarina é bem evoluída nessa parte. O nosso estado é pequeno, um povo mais simples, mais ordeiro. A nossa polícia não se caracteriza por ser uma polícia tão violenta, os nossos problemas não são tão grandes como nos outros estados.

*Existe na Língua Portuguesa a forma “sargenta” que não foi adotada pelas Forças Armadas no Brasil.


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  • Vandreza Amante

    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

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