A professora Ibriela Bianca Berlanda Sevilla, de 44 anos, sofre processo administrativo disciplinar após uma atividade de literatura no 1º ano do Ensino Médio, na Escola Estadual Professora Angela Lourdes Lago, em Chapecó, Santa Catarina. Embora tenha sido escolhido pelos próprios alunos, o livro “Não alimente a escritora”, da autora Telma Scherer, foi posteriormente questionado — inicialmente por alunas, que depois levaram a reclamação aos pais —  por abordar temas como gênero, sexualidade e a prisão da autora. 

“Hoje a educação é um campo de disputa, porque tem uma classe conservadora que não quer que os seus filhos leiam, vejam e conversem sobre questões urgentes da sociedade”, diz Sevilla em entrevista ao Catarinas.

Com mais de 25 anos de carreira na educação e doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), essa é a primeira vez que Sevilla sofre um processo administrativo disciplinar. As possíveis consequências dessa ação consistem em advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão.

O processo, publicado no Diário Oficial do Estado em 2 de maio, descreve que se baseia na Lei Estadual nº 6.844/1986 — o Estatuto do Magistério Público de Santa Catarina. Um comitê de três professoras foi designado para avaliar a conduta de Sevilla “por agir de forma inadequada no exercício de suas funções de docência”. 

“Qual é a conduta correta para uma professora de literatura na escola, trabalhar poeminha de ‘batatinha, quando nasce’?”, questionou a professora.

Após a instalação da comissão, há um prazo de 60 dias para sua conclusão. A equipe recolherá provas e por fim fará o julgamento da acusação. Os próximos passos podem envolver as diversas sanções já citadas, que dependem da avaliação geral do processo.

A docente ministra a disciplina eletiva Práticas de Letramento Literário, com ênfase em Literatura Local, além da obrigatória de Língua Portuguesa. A proposta da disciplina eletiva consistia em apresentar diversas obras literárias, com os alunos organizados em grupos para selecionar uma delas e debater suas impressões com a turma.

Todos os livros utilizados no projeto foram previamente lidos pela professora e descritos aos alunos para que pudessem escolher. A obra em questão consiste em uma única poesia, que se estende por 94 páginas. Alguns versos utilizam metáforas com as palavras “pintos”, “putas”, “vagina” e “boceta”. No entanto, o grupo que escolheu “Não alimente a escritora” apresentou queixas aos pais, que levaram o caso à diretoria e pediram a demissão de Sevilla. 

Segundo o professor e membro do setor de Literatura do Conselho Estadual de Cultura, Cristiano Moreira, a situação reflete a onda conservadora que cresceu no Brasil nos últimos anos e demonstra falta de leitura aprofundada da obra.

“Ela não levou um dildo para a sala de aula, ela levou um livro de poemas. E aí eles sacam 3, 4 fragmentos do poema da Telma — que possui vocabulários ligados ao corpo — e isso causa um estranhamento”, explica o conselheiro ao Catarinas.

Moreira abordou a questão na reunião do Conselho desta quarta-feira (10). O objetivo, segundo ele, é combater a ação e propor moções de repúdio. A reunião, entretanto, se estendeu por mais de duas horas sem definir uma ação definitiva. O assunto deve voltar à pauta apenas em maio.

Metáforas e a falta de entendimento

A autora do livro, Telma Scherer, é artista e professora de Literatura Brasileira na UFSC. Em entrevista ao Catarinas, explica que a obra vai além dos termos mencionados e compara sua situação à do livro “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório. A obra, que aborda racismo e violência policial, foi recolhida pelas Secretarias de Educação do Paraná e de Goiás após a denúncia de uma diretora do Rio Grande do Sul. Segundo alegou a diretora, o livro seria inadequado. No início deste mês, entretanto, voltou a ser distribuído.

Para Scherer, como na obra de Tenório, seu livro possui palavras que podem incomodar leitores desatentos. “A abordagem da violência não é feita com termos delicados, como seria de se supor caso meu poema ou o romance de Tenório não fossem obras cujo campo temático é a violência contra a mulher e o racismo”.

“Eles não gostaram do que eles leram porque provavelmente não leram todo o conjunto da obra. O que aconteceu foi uma “discriminação de palavras”, explica a docente. Ela ainda conta que algumas das alunas lhe pediram desculpas. 

Os pais não chegaram a conversar com ela, mas levaram a situação ao vereador do PL Fernando Cordeiro — que divulgou o ocorrido em suas redes sociais. A professora optou por suspender o livro do projeto, mas continua ministrando suas aulas normalmente.

Procurado pelo Portal Catarinas, o vereador não se manifestou até a finalização desta matéria. Ainda assim, o espaço segue aberto.

Censura de livros pelo Brasil

Telma Scherer, autora do livro em questão, explica que o escreveu em um momento delicado, após a morte de um de seus poetas preferidos. Durante a Feira do Livro de Porto Alegre, em 2010, Scherer se apresentou amarrada a uma casinha de cachorro com boletos em seu nome. Mas foi presa pela Brigada Militar, acusada de “atrapalhar o evento”.

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Ibriela Bianca Berlanda Sevilla | Crédito: arquivo pessoal.

A performance, que terminou com a escolta de dez policiais, motivou a escrita do livro. “Quem quer que leia o poema encontrará ali a expressão da dor e da revolta, como é de se esperar de qualquer obra de ficção que aborde temas relativos à exclusão, ao preconceito e à violência”, conta a autora.

Sevilla explica que sua intenção ao incluir a obra nas aulas era mesclar a literatura clássica com a contemporânea. “Eu me sinto muito injustiçada por isso. Eu fiz um doutorado em teoria da literatura, eu conheço muito a literatura catarinense e acredito que a literatura contemporânea seja mais possível de ser trabalhada na escola”.

Segundo o conselheiro de Cultura, a principal responsabilidade dos professores de literatura é ampliar o repertório dos alunos, e pode-se buscar isso por meio de obras que fujam da linha tradicional. Para ele, observa-se, entretanto, uma tendência de “falta de capacidade de leitura”. 

“A palavra pênis aparece na página 20 como uma metáfora de virilidade, de uma sociedade patriarcal, da força empreendida por 10 policiais sobre um corpo de uma mulher numa praça. Então o pênis enquanto marca falocêntrica ali não é o objeto sexual”, explica Moreira. 

“Fizeram um recorte grotesco do livro, tiraram completamente do contexto. É uma realidade que não se quer discutir na escola”, explica a professora denunciada.

Segundo ela, os casos são uma tentativa de retrocesso para a educação no Brasil.

Conservadorismo na educação no país

O caso da professora não é isolado. No fim de 2023, uma lista com nove títulos proibidos circulou entre os docentes de Santa Catarina. O documento foi assinado pelo Supervisor Regional da Educação, Waldemar Ronssen Júnior, e pela Integradora Regional de Educação, Anelise dos Santos de Medeiros. A recomendação era de que as obras fossem “retiradas de circulação e armazenadas em local não acessível à comunidade escolar”.

O vereador Fernando Cordeiro e a deputada Ana Campagnolo (ambos do PL) criticaram o teor do livro, alegando “teor sexual, político e palavras de baixo calão”. Além de divulgar o caso em suas redes sociais, Cordeiro também fez uma denúncia junto ao Ministério Público de Santa Catarina. Entretanto, segundo a professora, ela ainda não recebeu a notificação do processo. 

O professor Cristiano Moreira criticou as ações do vereador e o acusou de não estar efetivamente preocupado com a formação dos alunos.

“Ele subtrai o poder de fala de uma escritora e de uma professora; ambas mulheres. O que ele faz é contra a educação”, comentou o professor, referindo-se à denúncia contra a docente realizada pelo vereador. 

Ao saber do caso, Sevilla procurou o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina (Sinte), que deixou sua equipe jurídica à disposição. Ela também entrou com uma ação contra o vereador, acusando-o de perseguição e difamação. Em 2022, o Portal Catarinas divulgou uma cartilha com orientações para que os professores se defendam de denúncias após debates de gênero, sexualidade e raça no Brasil. Acesse aqui.

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  • Iraci Falavina

    Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina, Iraci já atuou como colaboradora dos veículos Folha de S...

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