A Justiça Federal suspendeu a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe médicos de realizarem interrupção de gestação com mais de 22 semanas em caso de estupro. A ação civil pública foi movida pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Sociedade Brasileira de Bioética e pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).
A resolução publicada em 3 deste mês vetava a assistolia fetal sob o argumento de que se trata de um procedimento “profundamente antiético e perigoso em termos profissionais, salvo em situações muito específicas”, contrariando o que recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o próprio Ministério da Saúde.
Para a juíza federal Paula Weber Rosito, da 8ª Vara da Justiça Federal de Porto Alegre (RS), o CFM excedeu seu poder regulamentar já que não há limite de tempo gestacional para que o aborto seja solicitado e realizado nos casos previstos em lei – gravidez decorrente de estupro, anencefalia fetal e quando há risco à vida da mulher.
“A lei que rege o CFM, assim como a lei do ato médico não outorgaram ao Conselho Federal a competência para criar restrição ao aborto em caso de estupro. Assim, não havendo lei de natureza civil acerca do aborto, tampouco restrição na lei penal quanto ao tempo de gestação, não pode o CFM criar, por meio de resolução, proibição não prevista em lei, excedendo o seu poder regulamentar”, afirma a magistrada.
Na decisão, em caráter liminar (sob urgência) ela cita ainda que quatro mulheres e meninas gestantes, decorrentes de estupro, em idade gestacional acima de 22 semanas não puderam efetuar o procedimento em face da edição da resolução. A informação dos casos foi divulgada pela Folha.
Também foi mencionado o pedido de liminar feito pelo Psol, com o suporte técnico da Anis – Instituto de Bioética, de Cravinas – Clínica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília e do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. As organizações levaram a questão ao Supremo Tribunal Federal com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1141), pedindo a declaração de inconstitucionalidade da resolução, assim como a sua suspensão.
O relator da resolução do CFM, Raphael Câmara, conselheiro federal pelo Rio de Janeiro, foi às redes sociais pedir apoio popular à norma ou “bebês de 22 semanas vão morrer”. “É um dia muito triste para todos os pró-vida”. Segundo ele, o conselho pretende recorrer da decisão judicial. Câmara foi secretário de Atenção à Saúde Primária durante o governo Bolsonaro.
Decisão foi recebida com alívio, após manifestações por sua revogação
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Ao Catarinas, a coordenadora do Grupo Curumim, Paula Viana, conta que a decisão foi recebida com alívio já que a resolução gerava muita insegurança nos serviços de saúde, pois, ao invés de proteger o exercício profissional da medicina, os médicos se sentiram constrangidos.
“O Curumim tem uma experiência grande de acompanhamento de mulheres e meninas que têm necessidade de acesso ao aborto legal e o que vimos é que já existe o prejuízo e agora temos que correr atrás desse prejuízo, fazendo com que os médicos voltem ao entendimento de que o direito ao aborto legal não exige uma idade gestacional específica”, afirma.
Desde que a resolução foi publicada, entidades médicas e jurídicas e organizações em defesa da justiça reprodutiva se mobilizaram para que ela fosse revogada. Os argumentos apontaram o potencial da norma de gerar insegurança jurídica; provocar decisões inconsistentes relacionadas ao direito; violações a direitos e deveres ético-profissionais dos profissionais de saúde; além de ampliar vulnerabilidades já existentes a meninas, mulheres e pessoas que gestam.
Uma dessas entidades foi a Rede Médica pelo Direito de Decidir. O ginecologista obstetra e coordenador da organização, Cristião Rosas, também compartilha da sensação de alívio com a notícia da suspensão e o sentimento de que a justiça está sendo feita em prol dos grupos mais vulneráveis da sociedade: “meninas de idade precoce que representam a imensa maioria dos casos de gravidez tardias decorrentes de estupro de vulnerável”.
O médico destaca o caráter de revitimização que a norma impunha às vítimas de estupro de vulnerável que, além da gravidez decorrente da violência, ainda enfrentariam uma barreira a mais no acesso ao direito.
“O CFM com essa infame resolução, sem a mínima empatia com a tragédia de vida destas vítimas, tentou impor uma terceira e inaceitável violência ao proibir os médicos e as médicas de utilizarem o melhor do progresso científico em benefício dessas mulheres e meninas. Esperamos que com esta decisão importante da justiça o acesso e a atenção de qualidade a essas mulheres e meninas voltem o mais rapidamente à normalidade”, afirma.
Com os desdobramentos da resolução, o Ministério da Saúde também foi pressionado para reiterar que não há limite de tempo gestacional para a realização do aborto nos casos previstos em lei, mas, questionada sobre o assunto, a ministra Nísia Trindade disse que não cabe ao Ministério se posicionar sobre decisões do CFM.
Em fevereiro, após críticas da oposição, a pasta suspendeu uma nota técnica que derrubava a recomendação do Governo Bolsonaro para que o aborto fosse realizado apenas até 21 semanas e 6 dias de gestação.
“Qualquer procedimento tem que garantir às meninas, às mulheres e às pessoas que gestam, a qualidade da atenção com práticas que tenham evidência científica e, principalmente, que sejam baseadas nos direitos humanos. Agora vamos aguardar que o Ministério da Saúde se posicione, preencha esse vazio que tem permitido que certas posturas e decisões sejam tomadas com base em moralidade e convicções religiosas”, enfatiza Paula Viana.