O primeiro orixá, “a boca que tudo come”, força vital, fragmento encantado da natureza que cuida da rua e das encruzilhadas. Nas religiões de matriz africana, Exu é o orixá da comunicação, anterior ao tempo e ao espaço. 

Tem uma forte ligação com a sexualidade, a fertilidade e a abundância. Por essas características, foi o mais demonizado dos orixás por religiosos judaico-cristãos que chegaram na África Ocidental, sendo associado a divindades de outras mitologias como Fauno, Príapo e Baco e até ao diabo – figura criada por essas mesmas doutrinas. 

Além de demonizá-lo, o pensamento hegemônico patriarcal desses religiosos excluiu outra face de Exu, resgatada no livro “Exu-Mulher e o matriarcado nagô” da escritora Claudia Alexandre. Na obra, ela investiga a interpretação masculina-feminina atribuída ao orixá e como essa interpretação foi apagada como estratégia de dominação.

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Crédito: reprodução.

Alexandre é doutora e mestre em Ciência da Religião (PUC-SP); especialista em sambas, Africanidades Culturais e religiosidades afro-brasileiras e sacerdotisa umbandista e candomblecista. Em entrevista ao Catarinas, ela fala sobre como as lutas contra a opressão de gênero e contra o racismo religioso  se entrelaçam, e aborda a dimensão transgressora de Exu que, além dos conceitos de tempo e espaço, subverte o gênero que lhe foi imposto. Confira. 

O que motivou a escrita de “Exu-Mulher e o matriarcado nagô”? Quais questões o livro levanta e quais se propõe a responder? 

É fruto da minha pesquisa de doutorado e tem a ver com minha trajetória de vida, como uma mulher negra que se desenvolveu numa sociedade racista intolerante que não superou muitas marcas do sistema escravista que a estruturam. Portanto, essa sociedade ainda permite que valores, heranças, sujeitos e sujeitas históricas sejam estereotipados e não conheçam sua verdadeira história, principalmente das consequências do processo de escravização sobre mulheres de terreiros, a formação dos candomblés yorubá-nagô e, especialmente, a demonização de corpos e seus sistemas de crença. 

Encontrei na demonização de Exu um caminho para problematizar todas essas questões, incluindo colocar no centro a constituição de um matriarcado e de um feminino negado e rompido, no momento em que a invasão católico-cristã na África Ocidental (Nigéria, Benim) transforma deliberadamente Exu em um demônio, como uma das estratégias de dominação. 

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Imagem: reprodução.

Por que a masculinização do orixá Exu é considerada um marco da crescente intolerância às tradições religiosas africanas no Brasil?

Minhas pesquisas encontraram esse processo de masculinização como uma das opressões que compõem as estratégias de dominação e desumanização de corpos negro-africanos, a partir do século 18, por isso também é estrutural. Os primeiros viajantes e missionários que fazem as descrições de práticas rituais na região iorubá constroem narrativas que reforçaram a necessidade de salvação de corpos sem alma, bárbaros e primitivos, que inclusive poderiam ser considerados mercadoria.

Aliado ao pensamento hegemônico patriarcal, o olhar para rituais onde se visualizam representações de órgãos genitais masculinos e femininos fez com que ressaltassem os símbolos do falo e excluíssem vaginas, que também eram representadas em rituais à Exu (Eshu, Legba, Elegbara).

Ao ressaltar as representações de órgãos masculinos expostos em práticas rituais, excluindo propositadamente as femininas, construíram narrativas sobre demônios. Quando no sistema de crenças Exu e suas representações em pares inseparáveis – masculina e feminina – tinha como significado a exaltação ao corpo, fecundidade, prosperidade, sexualidade, fertilidade e da energia vital. Não tinha relação com gênero ou diabo, que é um elemento judaico-cristão e nunca negro-africano. Naquela região, Exu sempre foi lido como masculina-feminina, inseparável e complementar. 

Você defende que a persistente intolerância contra as religiões de matrizes africanas se deve a um projeto de demonização de uma sociedade patriarcal cis heteronormativa, oriundo do racismo estrutural e às opressões de gênero, que começaram muito antes da escravidão. Como as questões raciais e de gênero estão ligadas ao racismo religioso no Brasil?

São questões estruturais e estruturantes. O racismo é racismo, mas politicamente demarcamos as formas como ele se manifesta na nossa sociedade que é também misógina, com herança da dominação patriarcal. Olhar o campo religioso e o sub-campo das religiões afro-indígenas é observar como essas opressões e suas desigualdades se manifestam. 

Tomo como exemplo a formação dos candomblés porque temos sabidamente uma atuação central de mulheres africanas e suas descendentes que no Brasil rompem a barreira do sistema e organizam um sistema que resistiu e ainda resiste. Mas está ainda cercado de histórias que têm origem em narrativas eurocêntricas, escrita por uma maioria de homens brancos, onde nunca se produziu biografias sobre essas mulheres que, ao longo do tempo, foram invisibilizadas ou totalmente apagadas. 

Mulheres negras de terreiro não foram valorizadas por suas lutas e resistências, colocaram em dúvida inclusive a existência de um matriarcado de terreiro.

Há uma relação importante entre os altos índices de denúncias de racismo religioso e gênero, já que sabemos que mulheres são maioria na liderança de comunidades de terreiro, portanto as mais atingidas. 

Como a dimensão de gênero é abordada nos terreiros? E de que maneira a violência de gênero é discutida nesses espaços?

As relações de gênero nos terreiros, em especial de tradições nagô e angola, ainda seguem antigas organizações, onde estão definidos papéis e funções para homens e mulheres. A senioridade iniciática ainda define títulos, cargos e poder nos terreiros. Existem muitas denominações nas religiões afro-brasileiras e em relação à hierarquia varia muito. 

Cada vez mais esses temas como identidade de gênero, orientação sexual tem atravessado essas hierarquias, mas ainda há certa resistência em se adequar às novas pautas, embora sejam as religiões que mais acolhem e sempre acolheram as diferenças, o que nem sempre tem a ver com alteração de funções. Exemplo: mulheres no candomblé não tocam atabaque em cerimônias públicas, mas na Umbanda são bem aceitas.

A transmissão de conhecimentos e diálogo também se diferenciam, o Candomblé respeita a ordem do segredo e silêncio, onde alguns assuntos não são pra todos, dependem do tempo e do nível de iniciação. A Umbanda é mais aberta, tem cursos, escolas e uma tipologia bem variada de práticas. Porém, a presença majoritária de mulheres tem inserido campanhas de conscientização e acolhimento a pautas sociais nos terreiros. 

Qual o impacto do assassinato de lideranças como mãe Bernadete na luta contra o racismo religioso e as opressões de gênero? O que esse tipo de crime escancara sobre a nossa sociedade?

A crescente violência contra seguidores e patrimônios de religiões de matrizes africanas é uma urgência no campo religioso brasileiro. É importante a recente criminalização e o reconhecimento da categoria racismo religioso como crime de racismo, imprescritível e inafiançável, isso já demonstra a gravidade do que estamos vivendo, mas toda lei tem que estar apoiada em políticas públicas eficazes e os números ainda mostram um descompasso. 

Os números de ataques e denúncias ainda são crescentes. A morte de mãe Bernadete tem a questão da misoginia, do sexismo, das violências de disputa de territórios tradicionais, racismo ambiental e religioso, mas acima de tudo de vulnerabilidade.

Uma autoridade religiosa, mulher negra, é perseguida, ameaçada e morta com mais de 12 tiros, dentro do seu terreiro, após várias denúncias e pedido de ajuda, inclusive o filho já havia sido morto em 2017, e não é salva. Isso diz muito sobre como o Estado e a sociedade falharam e que estamos diante de uma urgência social. 

Quais estratégias podem ser desenvolvidas pelas organizações e movimentos que defendem os direitos humanos para que o enfrentamento a intolerância e ao racismo religioso esteja associado à luta contra o racismo patriarcal cis heteronormativo? 

O debate público sobre a questão da intolerância religiosa e o racismo religioso já está atravessado por todas as pautas sobre as relações humanas e a justiça social. Os movimentos sociais têm um papel fundamental para diálogos e ações que reduzam danos e conscientizem a sociedade. Os avanços estão vindo deste lugar e a articulação política de representantes das religiões afro-brasileiras. Porém, o Estado precisa atuar com campanhas nacionais educacionais mais efetivas que combatam os discursos de ódio e falsas narrativas sobre as religiões de matrizes africanas, quase todas demonizantes. Campanhas que envolvam mídia, instituições de educação e de serviços públicos. 

Serviço:

Exu-Mulher e o matriarcado nagô

Claudia Alexandre; Editora Aruanda

464 páginas

Onde comprar: www.editoraaruanda.com.br

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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