Na manhã do dia 21, Florianópolis recebeu a Marcha Nacional pelo Parto Humanizado, que ocorreu em cerca de 20 cidades pelo país. Realizada no Parque de Coqueiros, o movimento na capital catarinense luta pela construção de um Centro de Parto Normal (CPN) gerido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A motivação da marcha nacional nasceu em outubro de 2023, com a ação civil pública movida pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) contra as enfermeiras obstetras Heloisa Lessa e Halyne Limeira.
O processo buscava impedi-las de executar partos domiciliares e exigia que o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) coibisse a atuação de enfermeiras obstétricas e obstetrizes nesse tipo de procedimento. O movimento para a Marcha Nacional ganhou ainda mais força durante o Congresso Brasileiro de Enfermagem Obstétrica e Neonatal (Cobeon), em fevereiro de 2024.
Atualmente, a proposta de construção do CPN em Florianópolis é acompanhada pelo deputado estadual Marquito e pelas vereadoras Tânia Ramos e Cíntia Mendonça, do coletivo Mandata Bem Viver (todas e todos do PSOL-SC). O estabelecimento está previsto para ser construído em terreno próximo ao Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (HU).
Segundo assessoria do deputado, é necessário que haja um alinhamento entre as Secretaria Municipal (SMS) e Estadual de Saúde (SES), além do Hospital Universitário, para que o CPN entre em funcionamento.
“A proposição é da SMS, mas precisa de estrutura que a SES pode oferecer, então precisa ser ação conjunta. A gestão, até o momento, é justamente o que precisa ser alinhado, em especial sobre os recursos de manutenção”.
O Centro é previsto pelo Ministério da Saúde, na portaria nº 11, de 7 de janeiro de 2015 da Rede Cegonha. A norma destaca “os benefícios à mulher e ao bebê na assistência ao parto de risco habitual pela enfermeira obstetra ou obstetriz”. Além disso, oferece diretrizes a respeito da segurança e a necessidade de haver um hospital de referência próximo em caso de eventuais problemas.
No dia 18 de abril, três dias antes da marcha nacional, a enfermeira obstetra Mayra Calvette publicou um vídeo com a modelo Gisele Bündchen, que demonstrou apoio à causa. Calvette acompanhou os dois partos normais de Bündchen em 2009 e 2011, e os acontecimentos foram narrados pela top model em seu livro “Aprendizados: Minha caminhada para uma vida com mais significado”.
Calvette é fundadora do AmaNascer, um grupo de parto humanizado que reúne enfermeiras obstetras e parteiras tradicionais e também integra o movimento em defesa do CPN. A luta busca oferecer mais opções de parto pela rede pública a fim de atingir todas as pessoas, “não só as que podem pagar particular”, diz.
Campanha pelo Centro de Parto Normal existe há mais de 6 anos
O Centro de Parto Normal em Florianópolis é parte de uma reivindicação por enfermeiras, médicas, doulas, trabalhadoras e mães que já existe há quase duas décadas. A enfermeira obstetra Mayra Calvette explica que, em 2007, quando o movimento começou a nascer, ainda havia muita resistência e preconceito em abordar o parto domiciliar.
Entretanto, segundo a enfermeira obstetra Gabriela Zanella, os encontros mais formais com foco em parto normal na cidade começaram efetivamente por volta de 2012. Cinco anos depois, a campanha em defesa da construção do CPN ganhou mais força, com auxílio de Juliana Monguilhott, presidenta da Associação Brasileira de Enfermeiras Obstetras, Neonatais e Obstetrizes (Abenfo/SC).
Monguilhott, que também é professora do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), levou a proposta ao curso de Enfermagem em 2017. A parceria do movimento social em parceria com a instituição resultou no acordo do IFSC de ceder seu terreno vizinho — na Avenida Mauro Ramos, no centro de Florianópolis — para a construção do CPN.
O objetivo era tornar o espaço um CPN escola, no qual os estudantes de Enfermagem poderiam estagiar. Entretanto, o terreno pertencia à União e estava cedido para o estado de Santa Catarina. Seria necessário que a Secretaria do Patrimônio da União recuperasse o local para então repassá-lo ao IFSC.
Segundo a assessoria do deputado Marquito, em uma das reuniões de 2023, a Secretária Municipal de Saúde Cristina Pires comentou sobre a disponibilidade de um terreno ao lado do Hospital Universitário da UFSC (HU). As negociações estão sendo feitas com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), gestão sob a qual se encontra o local atualmente, e a Secretaria Estadual de Saúde.
Além disso, em 2019 a Câmara Municipal de Florianópolis aprovou R$60 mil em recursos para manutenção do estabelecimento por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Na época, a etapa restante seria submeter o projeto ao Ministério da Saúde e, caso aprovado, teria mais R$100 mil mensais da Rede Cegonha para manutenção e R$540 mil para a construção do espaço.
Apesar disso, mesmo após cinco anos, o Centro ainda não foi inaugurado. Apuramos que os motivos para essa espera envolvem falta de alinhamento entre os órgãos governamentais, além de falta de vontade política para vencer questões burocráticas, entraves nas negociações de terrenos e dificuldades de financiamento.
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Segundo a assessoria do deputado estadual Marquito, neste ano houve movimentações e conversas com o Ministério da Saúde, com a Deputada Federal Ana Paula Lima (PT) e com a Secretária de Saúde do Estado de Santa Catarina. O objetivo era avaliar formas de custear a manutenção do CPN, agora sob a gestão do Ebserh e com custeio da SES/SC. Além disso, há um diálogo em andamento com a Rede Cegonha, que é peça fundamental e estruturante desse projeto.
O Catarinas procurou a Secretaria Municipal e a Secretaria de Estado da Saúde a respeito da continuidade do projeto e dos recursos pré-aprovados. Em nota, a Prefeitura de Florianópolis, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, informou que recebeu solicitação da Comissão da Mulher da Câmara de Vereadores em 2023 para discutir a implantação de uma Casa de Parto Normal (CPN) na cidade.
“Para a instalação de uma CPN, é necessário contar com unidades de saúde de maior complexidade (como maternidades). Apesar de Florianópolis ser potencial parceiro para a estratégia, não dispõe de maternidades sob a gestão municipal. Neste sentido, a Secretaria Municipal de Saúde segue em articulação com as esferas estadual e federal, a fim de buscar diálogo para a viabilidade do projeto”, diz trecho da nota.
Já a Secretaria Estadual de Saúde respondeu que o projeto pertence à Secretaria Municipal de Saúde em parceria com o IFSC.
Enfermeiras obstetras e doulas lutam pelo reconhecimento de sua profissão
Para a enfermeira obstetra Gabriela Zanella, o fato da resolução a respeito dos CPNs terem como princípio que a assistência seja feita por enfermeiros obstétricos é uma ruptura com um sistema que se concentra ao redor de médicos. “É uma disputa de espaço, de mercado de trabalho e de poder”.
“Isso é perigosíssimo para um sistema que quer as mulheres bem caladas, porque a partir do momento que você tem autonomia sobre várias coisas do teu corpo também pode decidir sobre coisas perigosas para o sistema. [Falando sobre] parto a gente vai acabar escorregando para falar sobre aborto, métodos contraceptivos e sexualidade livre”, segundo Zanella.
Alyssa Grigório, presidente da Associação de Doulas de Santa Catarina (Adosc), acredita que o CPN possa enfrentar obstáculos devido à proposta de atuação centrada em enfermeiras obstetras. “Os médicos não têm espaço nesse ambiente, então é sim é muito claro que eles entravam o processo”.
Já Mayra Calvette discorda que o foco seja a disputa de classe. “Eu não vejo que essa é a briga principal. A gente tá brigando mesmo pelo direito da mulher de ter mais opções, de ter mais uma opção segura, onde a mulher possa ser acolhida, possa ser respeitada e ter intervenções só se realmente for necessário. Que bom que a gente tem a cesariana, mas quando ela passa dessa porcentagem que é acima do recomendado o risco é maior do que o benefício”.
O Brasil possui o segundo maior número de cirurgias cesarianas no mundo. As recomendações da Organização Mundial de Saúde são de que no máximo 15% dos partos sejam não-normais, devido a custos de operação e riscos. No País, esse número foi de 57,6% de janeiro a outubro de 2023. Os dados são do Ministério da Saúde.
Parto com foco na mãe e pessoas que gestam é ponto principal do movimento
“Minha trajetória toda começou com meu parto”, conta Gabriela Zanella. Ela enfrentou violência obstétrica há 19 anos. Os problemas apareceram desde o acompanhamento pré-natal de seu primeiro filho, quando a médica que a acompanhava dizia que, se o parto fosse normal, realizaria uma episiotomia. A episiotomia é uma cirurgia que efetua um corte cirúrgico no períneo para facilitar a passagem do bebê, mas apenas deve ser aplicada em casos específicos.
Ao mudar de médico, Zanella sentiu-se mais confortável. No momento do parto, entretanto, a profissional de plantão a mandava ficar quieta e realizava exames de toque dolorosos. O médico que a acompanhava no pré-natal também estava de plantão no dia, e quando enfim a atendeu, aplicou uma analgesia que acalmou Zanella e a possibilitou parir em meia hora.
“Eu fiquei muito impactada com essa experiência, ao mesmo tempo que eu fiquei super feliz que eu tinha parido, eu fiquei ‘gente, mas não era para ser assim’”, conta.
Foi então que Zanella começou a estudar mais sobre o assunto.
Formada em fisioterapia, também realizou um curso de doula e começou a acompanhar partos em 2007. Antes da aprovação da Lei das Doulas, que permite o acompanhamento de doulas em hospitais públicos, ela era obrigada a deixar as mulheres na porta do hospital e ir embora. Mais tarde, em 2016, entrou na faculdade de enfermagem e se formou em 2019.
Mayra Calvette conta que o foco principal deve ser em quem está trazendo uma nova vida ao mundo. Em uma de suas experiências mais recentes, acompanhou uma mulher estrangeira que inicialmente pediu apenas contato visual. “A cada contração que vinha eu tinha que estar na frente dela, olhando nos olhos, ‘vamos lá, você consegue, vai trazendo teu bebê’”.
“Na hora de parir ela agarrou, veio para cima de mim, eu tava parindo junto com ela, tava sentindo a cabecinha do bebê e ela meio que pariu no meu colo”, conta Calvette. A nova mãe encarou a criança e só então se deu conta do momento que vivia. “É um bebê!”, exclamou.
“Só cai a ficha mesmo quando nasce. Muito maravilhoso poder presenciar esse milagre da vida. A gente tem que amar o que faz, né? Quem escolhe isso tem que realmente fazer isso porque ama e não deveria estar fazendo outra coisa”, diz Calvette.