Em oito de fevereiro de 2018, a estudante secundarista Thamara Luz, de 23 anos, deu entrada na Maternidade Carmela Dutra, preparada para vivenciar o nascimento de sua primeira filha. Mas, o que era para ser uma experiência transformadora se tornou uma lembrança desagradável. Naquele dia, às 3h da tarde, ao ser examinada pelo médico sua bolsa estourou. “Fui levada para a indução, procedimento este que eu não gostaria, ali fiquei durante 14 horas, sofrendo com dores e desespero”, relembra. 

Até o momento do parto sua gestação era considerada sem riscos, porém durante a indução ela sofreu complicações no útero e, por essa razão, a equipe médica optou por realizar a cesariana. O procedimento de indução é feito através de medicamentos com o intuito de provocar contrações no útero para agilizar o parto. Não vi a minha filha nascer às 6h47 da manhã. Eu só consegui abrir os olhos ao meio-dia”, sem acompanhantes, o apoio das enfermeiras foi essencial. “Meu sonho era ter um parto humanizado, mas nas condições em que eu estava não foi possível”, conta.  

Relatos como o de Thamara são comuns no Brasil, já que, a Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que o país possui altos índices de cesarianas e é considerado o segundo lugar no mundo que mais realiza a cirurgia, na maioria das vezes de modo desnecessário. A pesquisa Nascer no Brasil: inquérito nacional sobre o parto e nascimento foi o primeiro estudo nacional sobre o assunto. Coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012, cerca de vinte e quatro mil mulheres foram entrevistas. Os resultados mostraram que apenas 5% das mulheres não tiveram intervenções durante o trabalho de parto. 

Muitas dessas intervenções englobam a violência obstétrica, práticas e condutas abusivas  direcionada à mulher durante o trabalho de parto ou cirurgia. O uso rotineiro de ocitocina, da manobra de kristeller (técnica realizada através de pressão na parte superior do útero para facilitar a saída do bebê), cesariana eletiva sem indicação clínica ou a falta de analgesia quando indicada são alguns dos atos caracterizadores da violência obstétrica, como mostra o dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio, chamado Violência Obstétrica “Parirás com dor”.

Registro do Festival Cultural, organizado em apoio ao CPN, em 24 de agosto, no IFSC/Foto: Odara Cris

Frente a este cenário, há dez anos, enfermeiras, médicas, doulas, trabalhadoras e mães lutam para tornar real a criação de um Centro de Parto Normal (CPN), em Florianópolis, que integre a rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Direcionado a gestantes de risco habitual – situação em que o parto não é considerado de alto risco para a mãe e bebê  -, o modelo surge como mais uma opção para partos e nascimentos com menos intervenções médicas e mais respeito à natureza do parto e, principalmente, à vontade da mulher. 

O Centro de Parto Normal é uma política do Ministério da Saúde. A portaria Nº 11, de 7 de janeiro de 2015 da Rede Cegonha, incentiva a criação desses centros e adverte que a atuação da enfermeira obstetra, respeitando a fisiologia do processo de parto e nascimento, é uma assistência baseada em evidências científicas, assim, dá autonomia de atendimento a elas dentro do centro. Além disso, aponta diretrizes para a implantação e habilitação de Centro de Parto Normal (CPN), no âmbito do SUS

O MS considera “o acesso de mulheres e crianças a tecnologias apropriadas de atenção ao parto e nascimento” um direito fundamental de mulheres e crianças. Esse acesso é feito por meio da “adoção de práticas baseadas em evidências, incluindo-se a privacidade, a liberdade de movimentação e de posições durante o trabalho de parto, o direito a acompanhante de livre escolha e a preservação da sua integridade corporal e psíquica”. 

Já existem muitos estudos mostrando que esse modelo de assistência que é mais periférico, onde a mulher pode ter o parto no lugar mais acolhedor, é favorável para que o parto fisiológico aconteça”,

explica Juliana Monguilhott, presidenta da Associação Brasileira de Enfermeiras Obstetras, Neonatais e Obstetrizes (Abenfo/SC). Além de enfermeira obstétrica e uma das mobilizadoras do projeto, Monguilhott é docente no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) e em 2017 levou a ideia para o grupo de professores do curso de Enfermagem que abraçou a iniciativa. Em conjunto com as outras pessoas do movimento social articularam uma parceria com o IFSC que cedeu o terreno para a construção do CPN ao lado de sua sede, na Avenida Mauro Ramos. Com a coparticipação do Instituto, o centro de parto normal é planejado para ser um espaço escola. A Câmara Municipal de Florianópolis na proposta de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019 aprovou recursos que serão repassados para manter o local no valor de R$60 mil reais. 

O projeto segue as recomendações do Ministério da Saúde, assim como, da Organização Mundial da Saúde (OMS), garantindo o direito ao bem-estar da saúde da mulher e de sua família. O objetivo é que o Centro de Parto Normal funcione de forma peri-hospitalar, ou seja, que esteja localizado nas imediações do hospital de referência, a uma distância que possa ser percorrida em menos de vinte minutos. As possíveis necessidades de deslocamento seriam feitas pela ambulância do centro em casos de intercorrência ou risco.  

Diante da recusa das maternidades locais em aceitarem ser referência para o equipamento público, em 29 de agosto, a Defensoria Pública da União (DPU) propôs uma conciliação mediada pela Justiça Federal que resultou na indicação da maternidade Carmela Dutra para receber casos que necessitem de encaminhamento, conforme previsto na portaria Nº 11/2015. 

Ainda que o atendimento padrão do parto seja feito pelo médico nos hospitais, no centro de parto normal quem atua e presta assistência direta à mulher e ao bebê é a enfermeira obstétrica. “Isso é outro fator que faz diminuir a violência obstétrica, consequentemente, o número de cesarianas, pois a enfermeira obstetra possui formação voltada para o cuidado e não para a intervenção”, ressalta Juliana.   

O modelo de Centro de Parto Normal idealizado para a capital será pioneiro no estado, mas não no país. No Brasil já existem 27 centros atuantes, destes 10 são vinculados a instituições de ensino, segundo o MS. São exemplos de modelo: a Casa Angela que funciona como um centro de parto normal peri-hospitalar em São Paulo e a Mansão do Caminho em Salvador. “Modelos como estes possuem excelentes índices de segurança, satisfação e baixa taxas de morbimortalidade materna e neonatal”, afirma Halana Faria, Médica Ginecologista do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.

Agora o objetivo é submeter o projeto para a aprovação no Ministério da Saúde. Caso seja aprovado, o Centro de Parto Normal será financiado e mantido através do programa Rede Cegonha. Assim, funcionará de forma totalmente gratuita pelo SUS. O orçamento prevê que a Rede Cegonha disponibilize R$100 mil mensais para a manutenção do centro, além de R$ 540 mil para a construção do espaço — ou R$ 270 mil no caso de reforma da área física.

Oferecer o centro de Parto Normal é possibilitar que todas as mulheres possam parir de forma humanizada, respeitosa e segura, assinala Mayra Calvette, enfermeira obstétrica. “A ideia é ter um lugar 100% SUS, 100% público para que todas as mulheres tenham essa opção de parir com respeito,  amor e segurança.” 

CENTRO DE PARTO NORMAL PARA QUEM? 

A médica Halana Faria destaca que o Centro de Parto Normal é destinado às gestantes de risco habitual. “Quando a gente pensa em uma mulher que não tem risco nenhum na gestação e nem nenhuma patologia, nenhum problema de saúde e tenha um pré natal que transcorre normalmente a gente considera que essa mulher é uma mulher de risco habitual. Isso significa que parir, que gestar implica por si só alguns riscos, mas se ela tem um risco habitual ela pode sim ser atendida com segurança dentro de um centro de parto normal peri-hospitalar que é a nossa proposta.” 

Mais do que um espaço humanizado para nascimentos, o Centro de Parto Normal é voltado para mulheres das camadas populares, para mulheres negras, que são as mulheres que mais sofrem com a violência obstétrica. “Que seja um centro de parto normal público, no qual a gente possa resolver uma disparidade, uma questão de injustiça social, desigualdade. O fato é que só mulheres das camadas médias, de poder aquisitivo e com capacidade de buscar informação adequada consegue hoje acesso ao parto humanizado – estou falando de parto humanizado como experiência, como ritual, como processo profundamente transformador na vida de uma mulher”, finaliza Faria.

Dezenas de mulheres, muitas acompanhadas de seus filhos, prestigiaram o evento organizado pelo CPN/Foto: Odara Cris

 Pesquisas evidenciam que a incidência de violência no parto é maior entre mulheres negras. Emanuelle Goes, coordenadora do Programa de Saúde das Mulheres Negras e doutora em Saúde Pública, aponta no artigo “Violência Obstétrica e o viés racial” que 60% das mortes maternas atingem as mulheres negras. “São as mulheres negras que mais sofrem violência obstétrica, pois são as que mais peregrinam na hora do parto, ficam mais tempo em espera para serem atendidas, têm menos tempo de consulta, estão submetidas a procedimentos dolorosos sem analgesia, estão em maior risco de morte materna.” 

Para Thamara Luz a falta de informação foi um empecilho para a não realização do parto humanizado que tanto queria.

O Centro de Parto Normal é um sonho coletivo que algumas mulheres anseiam e nem sabem. Podemos levar essa esperança para todas as mulheres pretas, periféricas, LGBT, todas, todas as mulheres. É um sonho coletivo.”

A RESISTÊNCIA POR PARTE DA CATEGORIA MÉDICA

Poucas horas depois da decisão da Justiça Federal na nomeação da Maternidade Carmela Dutra como referência para o CPN, o Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC) tornou pública a Resolução N.º 193/2019 que dispõe sobre a proibição da participação do médico em partos fora do ambiente hospitalar e, ainda, a não aceitação por parte dos profissionais de documentos e planos de parto que restrinjam a autonomia médica. 

Claramente não está a serviço do melhor interesse das mulheres e suas famílias. Colocar-se contrário ao aumento de vagas para assistência ao parto dentro de um modelo comprovadamente eficaz e seguro, e privar as mulheres do acesso à escolha informada durante seu processo de parto através de uma resolução que visa punir profissionais que apoiam esse modelo é uma perseguição com a clara tentativa de inviabilizar uma política pública que vem sendo construída democraticamente”, posicionou o Coletivo de Apoio ao Centro de Parto Normal na Nota “Cremesc: a serviço de quem?”, publicada em 5 de setembro. A petição criada pelo coletivo no Avaaz “Pelo direito de escolher onde parir: Não à Resolução 193/2019 do Cremesc” está recebendo assinaturas de apoio.

Também em resposta à resolução, a Abenfo lançou nota de repúdio: “Infelizmente, tal resolução, demonstra o completo desconhecimento por parte da categoria médica em relação ao atendimento da gestante de risco obstétrico habitual e das políticas públicas relacionadas ao ciclo gravídico puerperal vigentes em nosso País, bem como às recomendações da OMS – Organização Mundial de Saúde, baseadas nas melhores evidências científicas disponíveis acerca da gestação, parto, puerpério e atendimento ao recém nascido”, ressalta um trecho da nota. 

A Associação de Doulas de Santa Catarina (Adosc) emitiu nota como entidade representante do Movimento pela Humanização do Parto e Nascimento no estado. A determinação afeta, mesmo que indiretamente, o trabalho das doulas que atendem fora do ambiente hospitalar. “A coisa que ‘afeta’ de alguma forma é do plano de parto. Que é um documento que existe há décadas a fim de respeitar os desejos da mulher para esse momento, seja da forma que irão lidar com o corpo dela como com o filho que acabou de nascer”, ressalta Jurema Gabbi Franco, Doula e representante da ADOSC. 

Andrea Caldeira de Andrada Ferreira, primeira secretária do CRM, explica que a resolução foi planejada desde 2018 e estava prevista para aprovação ainda para o primeiro semestre deste ano, o que não ocorreu devido à complexidade do assunto. O conselho esclarece que a determinação consiste em uma proteção para a sociedade e para a mãe e a/o bebê. “Sabemos que os partos domiciliares infelizmente continuarão acontecendo, até porque a grande maioria deles não é atendida por médicos. Queremos evitar que o médico seja conivente com a atenção ao parto programado em ambiente não seguro. Não há como negarmos os riscos que as pacientes e sobretudo os bebês podem correr. Embora não sejam tão frequentes, se existe o mínimo risco de mau desfecho, o CRM não pode se calar. É função do CRM regulamentar o profissão médica”, aponta Ferreira.

Com a resolução, o conselho reafirma a necessidade do parto dentro do ambiente hospitalar como único capaz de oferecer segurança. “Ofertando assistência ao parto da maneira que elas quiserem, da forma mais humanizada possível, para que as mulheres possam continuar atuando como protagonistas, com participação ativa das enfermeiras obstetrizes e mínima intervenção necessária, mas tudo isso dentro de um ambiente seguro – o ambiente hospitalar”, afirma a conselheira.

CPN é parte de uma política pública que assegura o acesso das mulheres à escolha informada/Foto: Ivan Pigozzo

Da cultura da intervenção para o cuidado

As taxas de mortalidade e morbimortalidade materna e neonatal seguem em patamares elevados no Brasil. Longe de estar ligada ao surgimento de centros de parto ou dos partos domiciliares, essa realidade ocorre porque a atenção à gestação, parto e nascimento está historicamente associada a um uso intensivo de tecnologias pesadas sobre as mulheres e bebês de risco habitual, como defende o Coletivo de Apoio ao CPN. Muitas mulheres ainda acreditam que a via de parto mais segura é somente dentro de ambientes hospitalares com o protagonismo do médico. Diante da necessidade de mudança cultural da intervenção para o cuidado, o equipamento de assistência humanizada ao parto é parte de uma política pública que assegura o acesso das mulheres à escolha informada e ao nascimento saudável.

A redução da mortalidade materna é o único dos oito Objetivos do Milênio propostos aos países em desenvolvimento pela Organização das Nações Unidas (ONU), que não foi alcançado pelo Brasil em 2015. Com um índice de mortalidade de 64,5 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, o país precisa reduzir essa taxa em 50% até 2030 para desta vez atingir a meta de 30 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, conforme os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Essas mortes são consideradas evitáveis e, em sua grande maioria, ocorrem nos hospitais.

*Este material foi desenvolvido pela estagiária Emily Leão com supervisão da jornalista Paula Guimarães.

Atualizado às 16h52 de 11 de setembro.

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