Movimento social “Leonina Leonor é Nossa” denuncia a recente destruição da maternidade, em Belo Horizonte; a estrutura voltada para alívio da dor foi denominada pelo secretário de saúde da cidade, Jackson Machado Pinto, de “culto romântico ao ultrapassado“.

Por Polly do Amaral e Fabiana Guimarães.

Ao longo da história as mulheres sempre foram oprimidas e subestimadas. As lutas dos movimentos sociais por direitos são a mola propulsora para a equidade de gênero. Segundo Maya Angelou “toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres”.

Segundo dados do Data-SUS, em 2018, em Belo Horizonte, morreram, em números absolutos, 17 mulheres por causas ou medidas tomadas em relação à gestação, parto ou pós-parto (OMS-CID 10), o que nos dá uma taxa de 57 mortes maternas a cada 100 mil nascimentos. O Ministério da Saúde diz que 92% da mortalidade materna é evitável, sendo assim, essa taxa seria de 4,6, se o serviço de assistência à saúde das pessoas gestantes estivesse adequado na cidade.

No mesmo ano, 2018, de acordo com o painel de monitoramento do Data-SUS, morreram, em números absolutos, 294 bebês residentes em Belo Horizonte, o que nos dá uma taxa de mortalidade infantil de 9,8 para cada 1000 nascimentos. Desses,169 óbitos, ou seja 57%, poderiam ter sido evitados com uma atenção adequada à gestação, parto e recém-nascido. 

O Brasil possui acesso quase universal ao pré-natal e assistência hospitalar, entretanto, os índices de morbidade e mortalidade materna permanecem altos. Isso acontece porque nossa assistência à gestação, parto e nascimento não está adequada. No nosso país, o parto é assistido em centros hospitalares complexos, protagonizado pela figura do médico, gerando excesso de intervenções e provocando iatrogenias, que, ao invés de salvar vidas, acabam ocasionando diversas complicações.

Foto: Mônica Aguiar

A gestante não está no centro do cuidado e esse sistema acaba por violentar as mulheres, não as respeita, tutela seus corpos e intervém como “acham que deve ser”, sem levar em consideração as melhores evidências científicas, o cuidado integrado, multidisciplinar e o respeito à autonomia da mulher. Isso é o que chamamos de violência obstétrica, ou seja, desrespeito e abuso na atenção à gestação e ao parto. Essa é uma violência de gênero, muito comum nas instituições de saúde.

É sabido que pelo menos uma em cada quatro mulheres relata ter sofrido violência no parto (25%). Se considerarmos o número de nascidos vivos residentes de Belo Horizonte em 2018, 29.813 bebês, podemos dizer que pelo menos 7.453 mulheres sofreram violência na chegada de suas filhas ou filhos.

A vida é um direito, ter uma assistência adequada e respeitosa é um direito, não ser violentada é um direito. Contudo, gestores retrógrados insistem em manter o modelo tradicional de assistência obstétrica por não “concordarem” com as evidências científicas.

Sendo assim, eles “decidem” o futuro das mulheres como se direitos pudessem ser decididos por alguém, como se direitos fossem favores. Nada disso é brincadeira, ou futilidade, exigir uma assistência adequada não é um “culto romântico ao ultrapassado”.

Imagem: Movimento Leonina Leonor é Nossa 

Um exemplo de autoritarismo anticientífico que nega direitos às mulheres é a recente destruição da Maternidade Leonina Leonor em Venda Nova, distrito de Belo Horizonte, uma verdadeira violência obstétrica, extirpando da população a implementação de um equipamento público de alta qualidade, necessário e aguardado há mais de 10 anos.

Idealizada em 2007, pactuada entre município e estado, possui investimentos federais, estaduais e municipais. Foi construída de acordo com a RDC 36/2008 da Anvisa, possui sete suítes privativas de parto, seis delas equipadas com banheiras para alívio da dor, diversas enfermarias, UTI neonatal e capacidade para atender de 300 a 500 partos por mês a depender dos recursos humanos empenhados. Tudo isso pelo SUS, oferecendo privacidade, ambiência adequada, equipe multidisciplinar, presença de apoio familiar e todos os benefícios que as evidências científicas transbordam.

Esse modelo de assistência poupa vidas, promove saúde e impacta positivamente na vida das mulheres, crianças e comunidade. Além de ser incentivado e orientado pela Política Nacional Rede Cegonha e financiado por recursos do Governo Federal.

Movimento de mulheres pelas maternidades e infâncias no 8M 2020 em Belo Horizonte, contra a violência obstétrica, em defesa do modelo de assistência ao parto pautado pelas melhores evidências científicas/Foto: Cadu Passos

Evidências robustas demonstram que o modelo obstétrico centrado no cuidado liderado pela enfermagem obstétrica reduz morbidade e mortalidade materna e neonatal, reduz óbito fetal e prematuridade, ademais reduz o número de intervenções desnecessárias (The Lancet, 2014). Esse modelo é colaborativo, formado por equipe multidisciplinar com profissional médico, enfermeira obstétrica e outros profissionais, como a doula. Uma revisão sistemática Cochrane (2016), envolvendo 17 mil mulheres, mostrou que quando comparado a outros modelos, reduz intervenções obstétricas, aumenta a satisfação das mulheres com os cuidados recebidos, sem, entretanto, aumentar os resultados adversos.

Essas mulheres também tiveram maior chance de parto natural espontâneo, com maior sensação de controle sobre a experiência do parto e maior chance de serem atendidas pela mesma enfermeira obstétrica ou obstetriz que conheciam anteriormente (Fiocruz, 2020).

Apesar de toda a necessidade de se implantar um novo modelo de assistência, o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), em uma atitude negacionista e covarde, marretou seis banheiras instaladas nas suítes privativas de parto da Maternidade Leonina. Desde 1985, a OMS orienta o banho de imersão para o alívio da dor no parto, evitando assim intervenções desnecessárias e trazendo conforto à parturiente, no entanto, nossos gestores, esses sim ultrapassados, insistem em fingir que as banheiras são fruto de romantismo, encarando-as como desnecessárias, não implementaram até hoje, uma recomendação feita há 36 anos.

Nos leitos tradicionais de BH, as mulheres ficam em trabalho de parto em salas chamadas pré-parto, ambientes esses que acolhem vários casais separados por cortinas, compartilhando um mesmo banheiro. Em uma assistência desse tipo, como as mulheres terão direito à privacidade, ao banheiro, ao chuveiro, ao alívio da dor? Como terão espaço para movimentar-se, agachar ou ficar na posição que mais lhes parecer confortável? Como poderão usufruir do direito à doula? Como terão uma assistência integral? Poderão dar voz à dor? Ou ouvirão: “na hora de fazer, não gritou”, “fica quietinha para acabar mais rápido”, “não grita ou não venho te atender”, “faz força mãe, se acontecer algo com o neném a culpa é sua”, “fica quieta, tá atrapalhando a pessoa ao lado”?

“Já está decidido”, para alguns homens respeitar os direitos das mulheres é também um culto romântico ao que já deveria estar ultrapassado. A luta dos movimentos de mulheres por direitos é descartada sob a falsa alegação de que na cidade há leitos suficientes. No entanto, o último dado disponível (2016) demonstra que quase todas as maternidades de BH têm ocupação maior que 95%, sendo as maternidades do Hospital Risoleta Tolentino Neves e a do Hospital Odilon Behrens com cerca de 110%. Segundo a literatura, a ocupação ideal é de 85%.

Esses mesmos homens se esqueceram que o SUS foi sonhado nos anos 70 por organizações sociais, o movimento sanitarista brasileiro fez nascer, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, os princípios do SUS, que foram incorporados à Constituição de 1988 e a saúde passou a ser um Direito de todos e dever do Estado. Entre os princípios do nosso sistema universal de saúde estão a universalidade do acesso, a equidade da assistência, a integralidade das ações e o controle social.

A Maternidade Leonina foi pactuada para garantir a universalidade de acesso às gestantes do populoso vetor norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte, território com elevado índice de mortalidade infantil, bem como atender a todas que queiram uma assistência baseada em evidências científicas.

Atualmente, devido à falta de vagas, 70% das mulheres de Venda Nova precisam ter seus filhos em outras regiões, essa prática gera peregrinação e insegurança na assistência.

O direito à privacidade, respeito no parto e assistência oportuna, adequada e próxima à residência precisa ser garantido para todas, não apenas às mulheres das regiões centrais, onde se concentram os maiores recursos. A implementação da Maternidade Leonina foi proposta prioritária em inúmeras conferências municipais de saúde. Na Conferência Municipal de 2017, que envolveu 12 mil delegadas e delegados, foi a segunda proposta mais bem votada, integrando o Plano Municipal de Saúde 2018-2021, que estabelecia sua abertura em 2018.

O prefeito destrói a maternidade ou desconstrói sua necessidade, usando de subterfúgios simplistas e de inverdades, passando por cima das deliberações do Conselho Municipal de Saúde e das proposições prioritárias elencadas nas Conferências Municipais de Saúde. Ele desconsidera o Plano Municipal de Saúde, desrespeita entidades, trabalhadoras/es e gestoras/es do SUS comprometidas com a saúde materna e infantil, desprezando mais de 10 anos de lutas das mulheres por sua abertura. Trata-se de uma visão machista e racista, uma vez que tanto a violência obstétrica, quanto a mortalidade materna atingem em sua maioria, mulheres negras e vulnerabilizadas.

O movimento social “Leonina Leonor é Nossa” composto por mulheres da região de Venda Nova, tem como fundadora a ativista Mônica Aguiar, jornalista, escritora do Blog Mulher Negra, coordenadora geral do Centro de Referência da Cultura Negra de Venda Nova, que, tendo longa trajetória no movimento negro, traz uma importante mensagem: “São mulheres negras e pobres que mais sofrem com a falta da Leonina, ela poderia atender não só a região, mas Belo Horizonte como um todo”. Para o movimento, a abertura da maternidade Leonina é essencial e representa equidade, respeito e reparação para as mulheres da região de Venda Nova, sendo sua implantação inquestionável. 

Outros muitos movimentos sociais lutam pela mudança do modelo de assistência ao parto e nascimento em Belo Horizonte com vistas a acabar com a violência obstétrica e reduzir a mortalidade materna e infantil.

A maternidade Leonina Leonor Ribeiro é DIREITO, não é FAVOR, é ciência, não é romantismo, é uma dívida histórica da gestão com a região, quem não entende isso é que está ultrapassado!

#LeoninaLeonoréNossa #NasceLeonina

Entenda:

A Maternidade Leonina Leonor está sendo destruída pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) desde final de janeiro. O que constitui crime de improbidade administrativa, ao desconsiderar o prejuízo ao erário público (mais de 4 milhões de reais) e desvio de finalidade sem a deliberação do Conselho Municipal de Saúde como define a legislação do SUS. Ao ser questionado em entrevista coletiva sobre a Maternidade, o secretário de saúde Jackson Machado respondeu que a questão já estava “decidida” “que a maternidade não seria aberta” e que o “modelo que eles querem lá é um culto romântico ao ultrapassado.”

Diante de uma gestão autoritária, corporativista, machista, racista e desleal os movimentos sociais judicializaram a questão no dia 23 de fevereiro de 2021. #leoninaleonorénossa

Foram ajuizadas uma ação popular e uma ação civil pública por improbidade administrativa propostas pelo Conselho Municipal de Saúde e pela Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa), respectivamente.

No final da tarde do dia 25 de fevereiro, a Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte estabeleceu em despacho que a PBH deve prestar explicações sobre a realização de obra não sinalizada nas instalações da Maternidade no prazo de 72 horas. Isso demonstra que o juiz considerou o caso importante e urgente, já que em casos similares o prazo costuma ser de 15 dias.

Você pode apoiar a abertura e funcionamento da Maternidade Leonina Leonor e seu modelo de assistência humanizada participando do abaixo assinado aqui.

*Polly do Amaral é doula, fundadora do Ishtar BH (grupo de apoio a gestantes e mães), fundadora da Minas de Doulas – Associação de Doulas de Minas Gerais, integrante da Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa, articuladora da #partidA MG. É mãe de três filhas, formada em Ciência da Computação pela UFMG e ativista desde 2007 contra a violência obstétrica, pelos direitos de mulheres, mães e crianças, por justiça social, saúde e educação públicas.

**Fabiana Guimarães é cirurgiã-dentista com especialização em Cuidado Materno e Infantil e Aleitamento Materno, Mestranda em Promoção da Saúde e Prevenção de Violência, atua como Consultora de Amamentação e Doula. É Ativista pelos Direitos das Mulheres, Colaboradora do Ishtar-BH, grupo apoiado pela Rede de Mulheres Parto do Princípio, idealizadora do Alumiar Cuidado Materno e Infantil, Mãe do Bento e do Roque.

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