Por Manola Vidal.

A definição de feminicídio trata da morte de mulheres em um contexto em que elas ocupam uma posição assimétrica e subalterna mantida por uma lógica de relações desiguais (Fleury, Meneguel; 2015). É o ponto final de um processo de agressões de caráter físico, psicológico, sexual e patrimonial que ocorre em um contínuo e que pode terminar em suicídio ou homicídio. Como conceito foi utilizado pela primeira vez por Diana Russel (1990), na década de 70 perante um Tribunal Internacional sobre crimes contra as mulheres, realizado em Bruxelas. Uma das dimensões do termo refere-se à morte de mulheres por crimes políticos, quando o Estado por complacência ou negligência deixa de intervir no reconhecimento dos direitos humanos das mulheres. Pode-se afirmar que a morte materna é uma forma de feminicídio de Estado, se levarmos em conta que em 92% dos casos poderia ter sido evitada, segundo o Datasus (banco de dados do SUS). Este dado por si só é um indicador de iniquidade não apenas das mulheres, mas da população em geral.

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) morte materna é a morte de uma mulher durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após o término da gestação, independente da duração ou da localização da gravidez, devido a qualquer causa obstétrica.

O desafio para entender a complexidade das dimensões do feminicídio é levar em conta sua definição original com um olhar amplo para as desigualdades forjadas por uma cultura misógina, machista e fruto do patriarcado. Quando tratamos do feminicídio temos de nos posicionar em relação ao novo momento do feminismo, no qual os temas da diversidade e da subjetividade se somam ao ativismo por direitos e noção de irmandade. A opressão neste momento se dá a partir do pensamento e da linguagem. Desta forma, a luta feminista hoje é direcionada ao combate das várias estruturas de consciência colonizada pela opressão, utilizando teorias, práticas e conceitos para mudar o modo dominante de pensamento. Assim, podemos nos aproximar da diversidade de situações em que os feminicídios podem ocorrer, que vão desde as mortes por parceiros íntimos até a mortes de mulheres que trabalham no tráfico de drogas em locais de disputa de território, por exemplo (Scholz, 2007) .

A partir deste ponto de vista no qual será a consciência, as estruturas de cognição e a estruturação de uma forma de pensamento que apontam para uma expansão da compreensão de mortes das mulheres, podemos reconhecer que a medicalização do ciclo reprodutivo feminino se relaciona com as mortes maternas e, portanto, com o fenômeno do feminicídio. Medicalizar significa o processo de transformar aspectos da vida cotidiana em objetos da medicina de forma a assegurar conformidade às normas sociais (Miles, 1991).

A medicalização da condição orgânica do corpo feminino durante o ciclo reprodutivo nos remete à uma forma de apropriação que podemos encontrar na prática iatrogênica da cesariana, ou na forma como a prática do aborto clandestino responde a uma política ideológica de criminalização. Tais situações contribuem para a compreensão da morte materna como uma questão específica dos estudos sobre gênero e, ao mesmo tempo, para a expansão sobre as formas de se pensar o fenômeno do feminicídio.

Assim, a partir do conceito de biopolítica em Foucault (2008 a, 2008b), que trata do controle político do corpo e da vida através do compromisso do Estado em cuidar do corpo e da vida das populações, podemos compreender o feminicídio como uma forma de violência. As mortes maternas no período reprodutivo seriam feminicídio na medida em que são mortes evitáveis e responsabilidade do poder político que se coloca como protetor da vida e da saúde. Por outro lado, o poder biopolítico do Estado de manter e proteger as vidas traz a noção de cidadania, de direitos de reivindicação de que a vida continue viva.

O Estado passa a ter ação biopolítica, cuidar dos corpos e a população e o indivíduo passa a ter direitos de reivindicar estas ações de cuidado. As características biológicas fundamentais vão ser parte de uma estratégia política e de poder ligadas à criação de grandes políticas públicas de saúde. Neste sentido, o poder sobre os corpos, o biopolítico, se organiza para além de uma cultura patriarcal, machista e misógina, para ser expressar uma forma de organização sobre a vida que possui dispositivos representados pelos poderes jurídico, econômicos e sociais para causar a morte ou deixar viver relativos à população em geral.

A questão que se coloca é que em relação a morte materna apesar de existirem políticas públicas específicas para a saúde da mulher a situação da impunidade nos apresenta o corpo feminino como objeto de disputas de poder médico, científico e político, mas também como uma vida precária.

Assim, quando a morte é fruto de uma intervenção ligada ao saber que mantém a vida, esta impunidade possui a característica de ser produzida por uma rede de proteção dos atores responsáveis pela implementação do poder biopolítico (Segato, 2016), o que nos leva a conceber a morte materna como uma forma de feminicídio sendo um crime do Estado que se apropriou de promover, manter e recuperar a saúde do corpo de mulheres no período da gravidez, parto e puerpério tornando-o objeto das políticas (Lagarde, 2016).

A morte materna então passa a acontecer quando a justiça “não faz a sua parte” e trata do fato social, o de ser em 90% dos casos evitável, como um dado que não possui a força de ser epidêmico o bastante para se tornar objeto de políticas públicas. Assim podemos pensar que cada país, cada estado, cada município, decide politicamente seu número de feminicídio por morte materna.

Butler (2016) nos permite pensar a morte materna como um feminicídio ao se aproximar do conceito de vida precária. A morte materna na biopolítica da contemporaneidade nos traz a ação do Estado em relação à violência de gênero que se constitui a partir da seguinte pergunta: o que é uma vida vivível?

Argumenta que para uma vida ser considerada perdida ou matável ela precisa ser considerada viva. Se certas vidas não são consideradas vidas, não são qualificadas como vida de acordo com certos enquadramentos do saber, da política e da economia ou de gênero. Essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras. São os enquadramentos que dividem e diferenciam quais são as vidas que podem ser apreendidas no sentido pela palavra, quais vidas são reconhecidas. E quais nunca reunirão condições de serem reconhecidas como tal. Por meio do enquadramento que temos a nossa disposição compreender a precariedade como aspecto do que está vivo.

Outro aspecto definido pelo enquadramento que define uma vida é ela ser considerada como tal na medida em que é digna de ser enlutada. Ou seja, a vida só tem valor quando é digna de luto e todo o luto é atribuído à perda de algo que possui valor ou alguma correspondência afetiva. Do contrário se torna indiferente.

O valor da vida avaliado em relação à dor de sua perda, seu luto, nos apresenta a situação de que certas vidas são vivíveis e outras matáveis. As vidas matáveis não seriam passíveis de luto. Para ser vivível, a vida exige apoio e condições possibilitadoras para que ela possa ser mantida. A precariedade da vida consiste justamente no fato de que de alguma forma as vidas estão nas mãos de representantes da biopolítica. Afirmar que a vida é precária é afirmar que sua manutenção depende fundamentalmente das condições sociais, políticas e não somente do impulso individual para viver. A condição precária é, portanto, politicamente induzida sendo uma condição generalizada de todos que vivem em sociedade. Mas por que algumas vidas são mais precárias que as outras?

Há uma condição de precariedade diferenciada para cada sociedade, pois cada sociedade constitui historicamente um conjunto de ações, práticas, leis e organizações sociais e políticas com o objetivo de maximizar a precariedade e de alguns e minimizar a precariedade de outros. O que equivale a decidir quais e quantas vidas são politicamente relevantes e devem ser preservadas e quantas não importam podendo ser lesadas ou eliminadas.

Aquelas cujas vidas não são consideradas potencialmente lamentáveis, por conseguinte, valiosas, são obrigadas a suportar a carga da fome, do subemprego, da privação de direitos legais e da exposição diferenciada à violência e a morte (Butler, 2004). Isto é a biopolítica contemporânea que nos aproxima da compreensão da morte materna como uma das faces do feminicídio.

A morte das mulheres grávidas e puérperas indica a existência de uma vida precária, vidas matáveis politicamente, não passiveis de luto, uma vez que desprotegidas ou parcialmente protegidas por sistemas jurídicos, redes de assistência e instituições deficientes, estão expostas não somente à violência do patriarcado, mas à violência de um Estado no qual a opressão se produz por uma dessimetria, agora ligada ao conceito de precariedade da vida. Assim, quando na gravidez, parto e puerpério, a vida de uma mulher está em condições de precariedade por depender de outros (instituição hospitalar, relação médico paciente, família, rede de apoio social) a dissimetria – representada aqui enquanto opressão exercida pelo Estado em relação aos direitos do cidadão – se constitui como uma nova categoria de análise para o fato social do feminicídio.

A redução da mortalidade materna é o único dos oito Objetivos do Milênio propostos aos países em desenvolvimento pela Organização das Nações Unidas (ONU), que não foi alcançado pelo Brasil. Pressão alta durante a gravidez, hemorragia após o parto, infecções e aborto são respectivamente as principais causas deste tipo de mortalidade no país. Em 2016, foram registradas 1.484 mortes com causas obstétricas. São 60 mortes para cada 100 mil nascidos, número que pode variar de 44 até 110 mortes conforme região do país.

Foto em destaque: No dia 26 de agosto, Jandira saiu de casa para fazer um aborto e não voltou mais. No dia 27 de agosto seu corpo foi encontrado carbonizado dentro de um carro em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Maria Ângela Magdalena contou que a filha estava com cerca de 12 semanas de gestação e que teria decidido abortar por desespero.

Referências
Butler, J. Vida precária:  El poder del duelo y la violência. ( Buenos Aires: PAIDÓS 2004).

Butler, J. Quadros de guerra- quando a vida é passível de luto? Rio de janeiro: civilização brasileira, 2016.

Russell D..; Vem N. V.. Crimes Against Women: The Proceedings of the International Tribunal of Crimes Against Women. (Berkeley: Russel Publications,1990)

Fleury, E. T., Meneguel, s.n. (organizadoras). Dicionário Feminino da Infâmia. Rio de janeiro: editora fiocruz, 2015.

Michel Foucault, Historia da Sexualidade, vol.1: A vontade de saber. (Rio de Janeiro: Graal, 1976)

___. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1977-1978).(São Paulo: Martins Fontes, 2008a,2008b)

__. Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979).(São Paulo: Martins Fontes, 2008)

MILES, A The medical control of women In: MILES, A Women, Health and Medicine. Philadelphia: Open University Press, Milton Keynes, 1991.

Lagarde, M. “Del femicidio al feminicídio” in  Desde el Jardin de Freud. 6 (1) (2016):216-25.Bogotà:Universidad Nacional de Colombia

Macedo, a.g.; amaral a.l. (org.) Dicionário da crítica feminista. Portugal:edições afrontamento.2015

Scholz L,“ The Rhetorical Power of Testimonio and Ocupación: Creating a Conceptual Framework for Analyzing Subaltern Rhetorical Agency .” Master Dissertation presented at Colorado University (Colorado,2007).

SEGATO, R. L. “ Femigenocidio y feminicidio: una propuesta de tipificación”. Revista Herramienta. 2016. http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-49/femigenocidio-y-feminicidiouna-propuesta-de-tipificacion

Manola Vidal é psicanalista, integrante da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, mestre e doutora em Saúde da Mulher pela Fiocruz, e conselheira Cedim do Rio de Janeiro (Conselho Estadual Direitos da Mulher).

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