Em cartaz nos cinemas brasileiros, o filme “Levante” já conquistou diversos prêmios nacionais e internacionais desde sua estreia na França em dezembro de 2023. Entre eles, o de melhor obra das sessões paralelas do Festival de Cannes, o Troféu Redentor de melhor montagem e melhor direção no Festival do Rio, além de prêmios no Mix Brasil, no Festival de Roterdã e em outros festivais país afora. 

Dirigido por Lillah Halla, que assina o roteiro ao lado de María Elena Morán, o longa acompanha a trajetória de Sofia, uma jovem de 17 anos que descobre uma gravidez indesejada às vésperas de um campeonato de vôlei decisivo para seu futuro como atleta. Ao tentar interromper a gestação, ela se torna alvo de um grupo conservador decidido a impedi-la de fazer o procedimento a qualquer custo.  

A ficção reflete o cenário real em que grupos religiosos fundamentalistas e políticos conservadores tentam impedir a realização do aborto até nos casos previstos na legislação, colocando a vida de meninas e mulheres em risco. Um desses casos é o da menina de Santa Catarina, de 11 anos, denunciado pelo Portal Catarinas. Além de tentar barrar a garantia do direito, eles ainda ameaçaram o trabalho dos jornalistas e de outros profissionais que se posicionaram contra a revitimização da criança. 

“O cinema é uma expressão da nossa sociedade. Ele está ali lutando para abrir janelas de reflexão para possíveis futuros. Mas ele também é esse lugar de registro muito importante de uma realidade. Todo filme é político”, comenta a diretora. 

Cartaz do filme Levante.
Cartaz do filme Levante.

“Levante” é uma co-produção Brasil/França/Uruguai e se junta às produções nacionais e internacionais que desafiam as formas conservadoras de falar sobre aborto, contribuindo para trazer novas perspectivas a respeito do tema. Além disso, tanto o elenco quanto a maioria da equipe é composta por mulheres e pessoas LGBTQIA+. 

As pré-estreias contaram com a presença de organizações que lutam por justiça reprodutiva, como Nem Presa Nem Morta, Gênero e Número e Ong Criola, que compartilharam suas visões sobre o filme e sobre a defesa do direito ao aborto.  

“É um processo muito gratificante porque assim como não se faz cinema sozinha não se faz mudanças sozinha. E esse filme criou uma rede que para a gente é muito importante”, afirma Halla sobre esse que é seu primeiro longa-metragem. 

Fronteira com o Uruguai inspirou a história 

A ideia para o filme surgiu quando Halla e Morán, que estudaram na Escuela Internacional de Cine y Televisión de Cuba e trabalham juntas desde então, estavam na fronteira do Brasil e Uruguai em 2015. De lá para cá, foram oito anos de projeto com muitas pesquisas e entrevistas para entender o que Halla chama de “situação espelho”. 

De um lado, um país com uma política que legalizou a interrupção voluntária da gravidez poucos anos antes, em 2012, e do outro o Brasil onde o aborto só é permitido por lei em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto.

“Essa fronteira é muito peculiar porque desde o Mercosul ela é uma fronteira que não separa. Ela é uma fronteira que une. Os uruguaios vêm para o Brasil comprar na farmácia ou abastecer o carro, por exemplo, enquanto os brasileiros vão para os hospitais uruguaios ou para as bibliotecas. Então, é uma fronteira que traz muito mais essa ideia de encontro. Exceto nesse assunto”, conta a diretora.  

Capa_ Filme Levante mostra como o aborto faz parte do cotidiano
Cena do filme Levante | Crédito: Wilssa Esser.

A dualidade chamou a atenção da dupla que decidiu investigar com ativistas e profissionais de saúde como aconteceu essa “virada de chave” no país vizinho. Halla destaca que antes da descriminalização e do pacote de justiça reprodutiva, os registros de morte no Uruguai em decorrência do aborto eram muito parecidos com os registros do Brasil – o aborto está entre as cinco principais causas de mortalidade materna no Brasil, por exemplo. Com a mudança, os registros de mortes e complicações pelo procedimento diminuíram no país uruguaio. 

“Essa situação espelho é um ponto de partida muito importante para o filme. Isso é 2015 e estávamos ali puxando fios que logo se tornam também a quadra de vôlei. Se você olhar uma quadra de vôlei do alto, ela é essa cartografia política separada por uma fronteira, com o binarismo. Aqui sim, aqui não. Masculino, feminino. Aqui pode, aqui não pode. Aqui ampara, aqui persegue”, completa.   

Mudança de narrativa no cinema

A captação para a realização do filme aconteceu aos poucos e nesse processo a diretora conta que ouviu muito a frase “ah, mais um filme de aborto?” ou então “ah, não seria bom que a Sofia hesitasse e em algum momento ela resolvesse ter?”. Ela comenta que o lançamento de filmes que tratam sobre o assunto, como “O Acontecimento” e “Nunca, raramente, às vezes, sempre” fizeram as perguntas aumentarem ainda mais. Como se só um filme esgotasse tudo o que há para ser contado sobre aborto. 

Para Halla, essa é uma das armadilhas do cinema, pois é complicado ter que defender algo que sequer está em questão. A personagem Sofia não está em um “dilema” no filme, mas a diretora se deparou com questionamentos do tipo e atribui essa perspectiva a um olhar masculino hegemônico, já que quem ocupa a maioria dos cargos de poder de decisão no cinema são homens. 

Questionada se a maior presença de diversidade reflete imediatamente na maneira como narrativas sobre cinema são contadas no cinema, a diretora concorda que há uma mudança em curso, de uma maneira ainda muito pequena, e destaca que essa mudança ainda é protagonizada por mulheres cis e brancas já que o número de diretoras negras e diretoras trans em ficção ainda é muito baixo. 

“O fazer do cinema é muito patriarcal. Há muita coisa para mudar, mas, sim, houve um passinho. Quanto mais pessoas com útero contam histórias, mais essas realidades distintas relacionadas à gravidez indesejada vão se tornando plurais.”

Já Ayomi Domenica destaca o cinema como uma potente ferramenta para sensibilizar o público e humanizar histórias como a de sua personagem. Segundo ela, o cinema possibilita a identificação com histórias distintas da vida de quem está assistindo e aprofunda questões complexas ao mesmo tempo em que emociona. 

Trecho do filme Levante | Crédito: Wilssa Esser.
Cena do filme Levante | Crédito: Wilssa Esser.

“O Levante faz muito isso. Ele traz tanta profundidade, tanta camada, que até pessoas que já simpatizavam com o tema, já acreditam no mesmo que a gente, agregam mais motivos para lutar por isso. Agregam mais argumentos e se sensibilizam ainda mais na discussão. O cinema tem essa potência de dar força para uma narrativa, para uma luta, justamente por humanizar uma estatística”, afirma Domenica.

Naturalizar o que já natural 

Com relação a expectativa de como gostaria que o público saia da sala de cinema, Domenica afirma que seu desejo é que as pessoas saiam falando sobre o tema. Debatendo, trocando experiências, relatos e vivências para naturalizar o que já é natural de fato. 

“É uma coisa que já tem acontecido. As pessoas têm saído muito inspiradas a trocar suas experiências, a conversar. Porque muita gente vive histórias parecidas com a da personagem. E o simples fato de ter vontade de falar, sentir a vontade para falar sobre uma história que viveu, que ouviu, já é muito significativo. Ajuda a tirar essas histórias do porão e humanizá-las”, acrescenta. 

Enquanto Halla também afirma que o filme é sobre a importância do trabalho de equipe e gostaria que essa mensagem reverbere no público, pois acredita que nenhuma mudança se faz sem organização coletiva. 

Além disso, ela ressalta a alegria e a potência do Celeste, time do qual Sofia faz parte, como meio de não cair na armadilha de reiterar a tristeza da protagonista. Algo que a diretora atribui como resultado das reflexões e acontecimentos que permearam o filme enquanto ele era construído, como o golpe de 2016, os ataques aos direitos reprodutivos e as incertezas com as eleições de 2022.

trecho do filme Levante
Cena do filme Levante | Crédito: Wilssa Esser.

“Entender que essa política de medo e de ameaça é uma estratégia do fascismo, esse lugar do medo que isola e paralisa. Então, a gente também foi entendendo que a nossa estratégia era, assim como no vôlei, uma estratégia de equipe e que esse filme tinha que vir com uma pulsão de vida muito grande”, pontua.

Domenica corrobora e completa que a coletividade como força política e de transformação é um dos grandes motores do filme. 

“É um dos grandes caminhos que o filme apresenta como oportunidade de futuro. Como forma de luta, como forma de lidar com as injustiças. E a alegria que a gente tem, apesar de todos esses contextos. A alegria como força política, como ferramenta, como combustível, como estratégia” finaliza.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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