O direito ao aborto legal nos é garantido pela legislação brasileira há mais de 80 anos, sem deixar margem para discussões eleitoreiras de cunho fundamentalista.

Desde que publicamos a reportagem sobre a criança que teve seu direito de acesso ao aborto legal violado pela justiça catarinense, não passamos uma semana sequer sem tocar no assunto – não porque gostaríamos de estender a exposição do suplício dessa família, que já passou por tanto sofrimento e agora estuda mudar de cidade para se distanciar das revitimizações, mas porque as injustiças em torno do caso não param de acontecer.

Na última semana, falamos do requerimento enviado ao presidente da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) pela deputada bolsonarista Ana Campagnolo (PL). Assinado por outros 20 parlamentares, o documento pede a instauração de uma “CPI do Aborto” para apurar se o procedimento “foi realizado legalmente ou se houve cometimento de crime”, se foi “realizado ilegalmente sob a falsa comunicação de crime”, se a conduta médica praticada foi “tecnicamente correta e legítima”, além de propor uma investigação dos jornais que tornaram público o abuso de poder cometido por agentes do sistema de justiça. 

Em outras palavras, eles querem utilizar dinheiro público para investigar um caso que não é da competência da Alesc, sem qualquer indício de crime, expondo a família a uma nova sessão de revitimizações e perseguindo os profissionais que ajudaram a garantir que a menina tivesse acesso a direitos. A resposta está na lei, mas cumprimos o nosso papel de ouvir as especialistas. Todas fizeram oposição ao negacionismo. 

Infelizmente, essa não foi a única investida dos moralistas ávidos por votos no período pré-eleitoral. Na última quinta-feira (14), fomos informadas de que, a mando do presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, da ministra Cristiane Britto, pediu que o Ministério Público investigue os médicos que realizaram a interrupção da gravidez e os veículos que denunciaram o caso – ou seja, nós e o The Intercept Brasil.

Reprodução/Twitter

São tempos difíceis para meninas, mulheres, jornalistas e defensores dos direitos humanos brasileiros. Querem nos fazer sentir medo de trabalhar, mas não pretendemos recuar. Como bem colocou o Intercept, a intimidação da imprensa é uma característica de governos autoritários que atentam contra a democracia. Porém, a liberdade de imprensa, de expressão e o direito de informação, bem como o sigilo da fonte, continuam sendo garantias constitucionais no Brasil. Estamos amparadas pela lei.

O Ministério da Mulher que desdenha das mulheres

Em dezembro do ano passado, publicamos uma reportagem especial apontando o apagão de dados públicos articulado pelo governo Bolsonaro. Na ocasião, levantamos números do Ministério da Mulher que precisavam ser expostos ao escrutínio público.

“A pasta deixou de executar 38,7% do orçamento autorizado para 2020. Ela chegou a ter R$582,5 milhões de orçamento disponível, mas não executou nem 50% do gasto efetivo. Do que estava disponível para políticas para mulheres, empenhou R$117,4 milhões, mas só executou R$35,4 milhões. Dentro desse valor existe um montante de quase R$6 milhões que era de restos de pagamentos dos anos anteriores. Ou seja: o percentual de aplicação real é ainda menor”, disse a pesquisadora Ana Gabriela Ferreira, da Artigo 19.

Casos como o da criança de Santa Catarina refletem o desinvestimento em políticas públicas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres brasileiras – problema digno de CPI.

Por que não relembrar também a saga da menina que foi estuprada pelo tio no Espírito Santo e teve de encarar o assédio da comitiva enviada pela então ministra Damares Alves, que lhe ofereceu serviços para que mantivesse a gravidez? A família precisou viajar até o Recife para seguir com o aborto legal em segurança, e se deparou com religiosos fazendo vigília na porta de um hospital público administrado por um Estado que deveria ser laico. A vida de crianças nascidas parece não importar aos que arbitrariamente se dizem “pró-vida”.

Quando indicou Cristiane Britto para assumir a pasta, Damares Alves a enalteceu por sua “ideologia”, e ao se aproveitar da dor da criança de Santa Catarina para fazer seu próprio espetáculo ideológico, a nova ministra mostrou que sua mestra estava certa. Embora seja advogada e conheça a letra da lei, ela discursou pelo salvamento de “duas vidas”, fechando os olhos para os riscos que uma menina de 11 anos, vítima de estupro e forçada a manter uma gravidez indesejada, corria. Sobre os crimes cometidos pela juíza Joana Ribeiro Zimmer e pela promotora Mirela Dutra Alberton, ela não emitiu sequer uma palavra, nem mandou investigá-las, mas deu a canetada que autoriza a perseguição de médicos e jornalistas.

Considerando o histórico de atrocidades, não nos surpreende que o Ministério da Mulher siga atentando contra os direitos das mulheres e espalhando desinformação, mas não nos cansaremos de reafirmar que o direito ao aborto legal nos é garantido pela legislação brasileira há mais de 80 anos, sem deixar margem para discussões eleitoreiras de cunho fundamentalista. 

A inquisição acabou há mais de 200 anos, ministra. Que a lei seja cumprida.

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