Requerimento feito pela deputada bolsonarista Ana Campagnolo reúne 21 assinaturas e segue sob análise da procuradoria da Alesc, sem prazo para finalização
Em 28 de junho, após publicarmos, em parceria com o Intercept, a reportagem sobre a criança que teve seu direito de acesso ao aborto legal violado pela justiça catarinense, a deputada bolsonarista Ana Campagnolo (PL) enviou um requerimento ao presidente da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc), deputado Moacir Sopelsa (MDB), pedindo a instauração de uma “CPI do Aborto”. A primeira justificativa para abertura da CPI é apurar se “o aborto foi realizado legalmente ou se houve cometimento de crime”, depois se foi “realizado ilegalmente sob a falsa comunicação de crime”, se a conduta médica praticada foi “tecnicamente correta e legítima”, além de propor uma investigação dos veículos que divulgaram informações sobre o caso que tramita em segredo de justiça.
O questionamento central sobre “falsa comunicação de crime”, apontado pelo requerimento, não se sustenta diante do Código Penal, que em seu artigo 217 tipifica o estupro de vulnerável como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. Ou seja, não há discussão sobre consentimento nessa faixa etária justamente pelo entendimento legal de que toda criança ou adolescente submetido a uma relação sexual não tem maturidade para verdadeiramente consentir — independentemente da idade do autor. No caso concreto, a vítima tinha apenas 10 anos de idade.
O aborto é legalizado no país, ou seja, não é punível e pode ser realizado de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em três situações específicas: gravidez resultante de estupro, risco à vida da pessoa que gesta e gestação de fetos anencéfalos. Quando se trata de crianças, a garantia abarca dois dos permissivos legais: estupro e risco de morte.
“O documento assinado pelos parlamentares favoráveis à abertura da CPI do Aborto demonstra que o intuito é, na verdade, subverter a ordem legal e constitucional, questionando o acesso de meninas e mulheres ao aborto legal, para o qual a legislação não estabelece limite de idade gestacional, produzindo uma nova revitimização da menina e de sua mãe e maculando a imagem de profissionais que cumpriram seus deveres legais.”
Amanda Nunes, advogada e co-coordenadora do projeto Cravinas (Clínica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília).
Para que uma CPI seja instaurada, é necessário colher assinaturas de um terço dos mandatos eleitos, ou seja, 14 seriam suficientes para dar andamento ao processo. A parlamentar recebeu o apoio de mais da metade da Alesc: foram 21 signatários, no total.
Segundo o regimento interno da Assembleia, as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) têm como finalidade apurar os chamados fatos determinados. “É considerado fato determinado o acontecimento de relevante interesse para a vida pública e a ordem constitucional, legal, econômica e social do Estado, e deverá estar devidamente caracterizado no requerimento de constituição da Comissão”, aponta o documento.
Protocolado o pedido, a assessoria da Alesc informou que o presidente deu ciência aos deputados em sessão e encaminhou à procuradoria da casa para que diga se os pressupostos regimentais estão presentes. No momento, o pedido está sob análise, sem prazo determinado para uma devolutiva. “Caso o parecer informe que os pressupostos estão presentes, o presidente dá ciência ao plenário e manda publicar no Diário da Assembleia, dando o prazo de duas sessões ordinárias para que os partidos indiquem seus representantes na CPI, observado o critério da proporcionalidade”, explica o órgão.
Abuso de poder
Em 5 de julho, a defensora pública Anne Teive Auras, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública (Nudem) de Santa Catarina, articulou o envio de um documento assinado por ela em conjunto com coordenadoras de núcleos de outros 15 estados brasileiros ao presidente da Alesc.
“No documento, nós manifestamos apoio às deputadas da bancada feminina que vêm sofrendo ataques desde a publicação de uma nota de repúdio à violação dos direitos da menina, e também nos posicionamos contrárias à instauração da CPI do Aborto”, fala a defensora. “Há incongruências técnicas, pois não é um tema sobre o qual a Alesc tem competência para deliberar. A legislação que trata do aborto é federal, o hospital que realizou o procedimento é federal, e o fez a partir da recomendação de uma autoridade federal.”
Ela ainda pontua que o requerimento é fruto de um discurso que deslegitima os direitos das meninas e mulheres. “Ele visa perseguir as autoridades e profissionais que atuaram para fazer valer direitos previstos em lei desde 1940, na Constituição e nas convenções internacionais de promoção dos direitos das mulheres que o Brasil assinou”, completa. Até a publicação desta reportagem, as defensoras não haviam sido respondidas por Sopelsa.
Nunes acrescenta que a CPI tem poderes próprios de autoridades judiciais, ao mesmo tempo em que é um instrumento político que implica em menos garantias para as pessoas investigadas, além de ser alvo de grande visibilidade e escrutínio públicos. Por isso, só pode ser aberta de forma excepcional, mediante justa causa, para apurar ilegalidades concretas. No caso concreto, não houve ilegalidade.
“A menina apenas acessou um direito previsto em lei; os profissionais apenas cumpriram seu dever legal de garantir o acesso a esse procedimento; as informações divulgadas pela imprensa foram voltadas à denúncia das arbitrariedades cometidas por agentes do sistema de justiça, fatos que devem ser objeto de controle social da população e não são acobertados pelo segredo de justiça, que tem como objetivo proteger os interesses da criança e viabilizar a execução da justiça.”
Amanda Nunes, advogada.
Logo, caso seja aberta, a profissional alerta para o fato de que a CPI do Aborto ficará passível de impugnação pelo Poder Judiciário, por ser “flagrantemente ilegal”.
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Ambas as avaliações se assemelham à do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim) de Santa Catarina. “Somos contra a CPI do Aborto por entendermos que o Legislativo não tem competência para julgar o Judiciário e sim para fiscalizar o Executivo. Desses 21 que assinam, uma é mulher e os demais são homens héteros e brancos. É cruel. Às vésperas das eleições, eles estão explorando o sofrimento de uma criança para conquistar votos da bancada evangélica, trazendo o mote ideológico fundamentalista contra os direitos das mulheres”, afirma a médica ginecologista Rosaura Rodrigues, presidenta do Cedim.
Perseguição
Para a advogada Amanda Nunes, a CPI do Aborto não busca investigar nada, uma vez que não há nada a ser investigado. Por que, então, mais da metade da Alesc se uniu para requerer uma investigação onerosa aos cofres públicos, sem indício de crime?
“Isso pode ser compreendido como uma tentativa de expor, perseguir e criminalizar a menina e profissionais de saúde que cumpriram com seu dever legal”, ela responde. “A atitude abusiva implicará na exposição da própria criança e na perseguição de profissionais de saúde, que certamente se verão ameaçados ao exercerem seu dever de cuidar.”
Vale ressaltar uma contradição implícita no requerimento: Campagnolo diz que houve vazamento de um processo sigiloso, mas agora quer expor os detalhes do caso no plenário.
Se o pedido de CPI fosse pautado pela ordem legal e constitucional, ele poderia apurar, por exemplo, as barreiras que meninas e mulheres têm enfrentado para ter acesso ao aborto legal em Santa Catarina, estado de competência da Alesc. “Contudo, o interesse não é proteger direitos, e sim criminalizar meninas e mulheres”, aponta a especialista.
Pensando nisso, 17 organizações brasileiras ligadas aos direitos das mulheres lançaram, na última sexta-feira (8), uma campanha intitulada “CPI Não é Inquisição” para pressionar o presidente da Assembleia a não aceitar o pedido de instauração da CPI. Até o fechamento, mais de 3,7 mil pessoas já haviam participado da mobilização. Participe clicando aqui.
Violência institucional
Não é a primeira vez que Campagnolo usa de seu cargo para buscar dificultar o acesso de mulheres vítimas de estupro a direitos. Em 2019, ela propôs o PL nº 0201.8, que tinha como objetivo criar um “Termo de Compromisso de Denúncia” a ser assinado por vítimas de estupro nas delegacias de Santa Catarina, visando inibir denunciações caluniosas.
Um ponto sensível é que o documento trazia previsões de detenção ou multa, penas que são aplicadas em qualquer tipo de denunciação caluniosa e/ou falsa comunicação de crime, mas a parlamentar propôs implementar o termo apenas em casos de estupro.
Na época, em seu parecer, o ex-deputado e delegado Maurício Eskudlark (PR), que atuava como presidente da Comissão de Constituição e Justiça, disse que cabe à polícia orientar a comunicante sobre os crimes de denunciação caluniosa e falsa comunicação de crime com o “zelo necessário” para que “não se corra o risco de inibir as comunicações de crimes”. A matéria segue em tramitação, sem novas atualizações desde o ano de sua proposição.
“É algo não só perverso, como totalmente desconectado da realidade que as mulheres enfrentam ao fazerem uma denúncia de estupro”, sinaliza Nunes. “Essas mulheres já são submetidas a um regime de suspeição a todo momento. Contam e recontam sua história para diferentes pessoas e assinam uma série de documentos. Tornar esse processo ainda mais burocrático, com a inserção de um novo termo, que impõe ao servidor o dever de perguntar se aquela mulher não está mentindo, é uma forma de violência institucional.”
Segundo a advogada, a denunciação caluniosa tem sido uma estratégia da qual os agressores se utilizam no curso do processo como forma de retaliação e para fazer as mulheres desistirem de seus direitos. “Temos de lembrar que não há dados sobre denúncias de estupro falsas que justifiquem essa proposta. Políticas públicas devem ser baseadas em dados e os dados que temos hoje indicam que na verdade as mulheres estão deixando de comunicar o crime. É preciso pensar em formas de aproximar as mulheres do sistema de justiça, e não afastá-las, como pretende o PL.”
Silêncio
Subscrevem o requerimento os parlamentares Ricardo Alba (União Brasil), João Amin (PP), Jessé Lopes (PL), Iván Naatz (PV), Sérgio Motta (PRB), Marcius Machado (PR), Sargento Lima (PL), Ismael dos Santos (PSD), Kennedy Nunes (PTB), Coronel Mocellin (Republicanos), Jair Minotto (PDT), Nilso Berlanda (PL), Bruno De Souza (Novo), Osmar Vicentini (União Brasil), Maurício Eskudlark (PR), Fernando Krelling (MDB), Luiz Fernando Cardoso (MDB), Romildo Titon (MDB), Mauro de Nadal (MDB) e Jerry Comper (MDB).
Enviamos uma solicitação de posicionamento aos deputados, mas a maioria não nos respondeu. Apenas o deputado João Amin se manifestou dizendo que “a assinatura nesta e em outras CPIs é sempre com a intenção de dar ao parlamento independência para tratar dos temas”. Seu desejo seria “exclusivamente de esclarecimentos dos fatos”. O presidente Moacir Sopelsa também recebeu nossos questionamentos e se manteve em silêncio.
À deputada Ana Campagnolo, fizemos as seguintes perguntas, enviadas por e-mail:
– Qual seria o objetivo da CPI do Aborto?
– Por que a senhora acredita que a interrupção da gravidez de uma menina de 11 anos, vítima de estupro e amparada pela legislação brasileira, foi um crime?
– Que fatos apoiariam a suspeita de uma “falsa comunicação de crime” no caso?
– A Alesc tem competência para a instauração da CPI do Aborto, visto que o hospital que realizou o procedimento é federal?
– Com base em que argumentação legal a senhora contesta a decisão do MPF que recomendou que o hospital fizesse o aborto legal?
– O sigilo em processos como esse serve para preservar a vítima, que teve seu direito violado antes mesmo de o caso se tornar público. Os veículos jornalísticos não citaram quaisquer dados pessoais da família ou da vítima e ajudaram a garantir que ela tivesse acesso a um direito previsto em lei, ouvindo especialistas e órgãos competentes. O que a CPI do Aborto pretende apurar nesse sentido e com qual finalidade?
– Por que a senhora considera importante a abertura da CPI do Aborto, uma vez que ela demandaria um tempo considerável das atividades da Alesc para investigar a interrupção de uma gravidez respaldada pela lei, sendo esse trabalho financiado com dinheiro público?
Ela também não nos respondeu. Antes da publicação desta reportagem, ligamos para seu gabinete e fomos informadas de que o silêncio seria a resposta.