A nossa escrevivência não pode ser lida como
histórias para “ninar os da casa grande” e sim
para incomodá-los em seus sonos injustos.
(Conceição Evaristo)

Antonieta de Barros nasceu em 1901, treze anos após a abolição da escravatura. Aos 21 anos, ela fundou uma escola. Com 24, escrevia para jornais sobre educação, criticava o cenário político e a condição das mulheres, fazendo menção ao feminismo, ainda que suas amigas, outras mulheres católicas, fossem avessas ao movimento por ele abrir uma discussão sobre divórcio que contrariava os ideais cristãos de família. Aos 33 anos, ela foi eleita deputada estadual de Santa Catarina – a primeira mulher negra a ocupar esse espaço no Brasil.

A deputada Antonieta de Barros quebrou inúmeras barreiras em um estado oligárquico e racista, e também sofreu racismo, mas não se deixou intimidar. Na Assembleia Legislativa, conseguiu aprovar diversos projetos relacionados à educação e à justiça social, a exemplo das concessões de bolsas de cursos superiores para alunos em situação de vulnerabilidade social.

Os resgates mencionados acima são da professora Jeruse Romão, que assina a biografia de Antonieta de Barros. Na última terça-feira (14), Jeruse e outras mulheres feministas e antirracistas que se sentem profundamente representadas pela história de Antonieta se reuniram na Câmara dos Vereadores de Florianópolis para defender sua memória.

Medalha Antonieta de Barros

Desde 1997, a Câmara entrega, na semana do Dia Internacional das Mulheres, honrarias sob o nome de Antonieta. O texto original da Resolução nº 666/97 diz que a Medalha Antonieta de Barros deve homenagear “mulheres que tenham se destacado nas áreas cultural, política, desportiva, empresarial e de prestação de serviços ou ação social no município de Florianópolis”. O problema é que a universalização da categoria mulher implícita no texto não dialoga com a luta da mulher preta, filha de ex-escravizados, que dá nome à medalha.

Medalha Antonieta de Barros, concedida pela Câmara Municipal de Florianópolis – Foto: Divulgação

Na prática, a mesma honraria entregue em 2019 a uma mulher negra, a professora Joana Célia dos Passos, vice-reitora da Universidade Federal de Santa Catarina, por sua atuação na luta antirracista e na defesa e implantação de cotas raciais no ensino superior; agora será entregue a Ana Campagnolo (PL) e Caroline de Toni (PL), ambas deputadas negacionistas, antifeministas e contrárias às ações afirmativas, entre outras pautas do movimento negro.

A sessão onde os vereadores decidiram pela entrega da medalha às parlamentares foi violenta. Na maior parte do tempo, homens ocuparam a tribuna para falar de si e cometer violência política, a exemplo da fala capacitista de Maikon Costa (PL), que não reproduziremos em respeito à vereadora Cíntia Moura Mendonça (PSOL), alvo do ataque.

Tânia Ramos (PSOL), primeira vereadora negra de Florianópolis, que em 2010 ocupou uma escola fechada pelo município, revitalizando e transformando o espaço em um contraturno escolar com aulas de artes, esportes e cursos profissionalizantes para adultos, subiu à tribuna para representar o povo que a elegeu: a negritude da ilha. “Eu quero dizer que essas duas senhoras que vão receber a medalha Antonieta de Barros não nos representam. Elas não representam a luta da Antonieta de Barros. Elas não representam a luta das mulheres pretas”.

Cíntia, da Mandata Bem Viver, pediu para que o povo fosse ouvido e respeitado, fazendo menção às ativistas que ocuparam a Casa, à família de Antonieta de Barros e à autora de sua biografia, que compartilham da mesma avaliação que faz o Catarinas: a apropriação de um símbolo da luta feminista e antirracista por figuras políticas que combatem essas pautas desrespeita o povo preto e as defensoras dos direitos das meninas e mulheres em sua diversidade. Assim, apaga-se a memória e esvazia-se a luta política de Antonieta de Barros.

Quem tem direito à memória?

Em sua pesquisa, a doutora em direito Gabriela Barretto de Sá defende o direito à memória e ancestralidade enquanto direito fundamental capaz de orientar ações no campo da justiça histórica. Apoiada nas escrevivências de Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Saidiya Hartman, bell hooks, entre outras escritoras negras, ela diz que “uma das maiores manifestações das opressões impostas pelo racismo ao longo dos séculos reside na interdição ao direito de narrar nossas próprias histórias através do nosso repertório ancestral, sendo o direito à memória gerido e controlado como propriedade branca-colonial”.

A sessão de terça, que concedeu a medalha às parlamentares conservadoras, ilustra de que forma a branquitude se articula dentro dos espaços de poder de forma violenta e colonial, apropriando-se de símbolos e distorcendo a história da negritude que resiste em um município cuja população se autodeclara majoritariamente branca: 80%, de acordo com o IBGE.

Outro exemplo da negação do direito à memória à negritude é a decisão de não dar o título de cidadão honorário de Florianópolis a Gilberto Gil, preso no município na época da ditadura, sob o argumento de que o artista não representa os “manezinhos”, ou não teria feito contribuição à cidade, embora tenha homenageado a ilha em músicas como A Novidade e Gaivota. Ambas as pautas foram discutidas na mesma sessão.

Desde 2016, o Catarinas atua em Florianópolis e no Brasil para que o direito à memória não seja privilégio de alguns, mas direito também dos grupos socialmente invisibilizados. Fazemos coro com a pesquisadora Gabriela Barretto de Sá quando ela aponta que o direito à memória reafirma a humanidade de uma população e sua agência no processo de produção de conhecimento sobre si, além de promover reparação face ao epistemicídio e silenciamento que impossibilita ao povo preto o acesso à sua ancestralidade. Assim, repudiamos e consideramos violenta a concessão da Medalha Antonieta de Barros a duas figuras refratárias às pautas que Antonieta defendia, pois entendemos que o ato macula não somente a memória de Antonieta como promove o apagamento da história da negritude brasileira.

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