Jeruse Romão é autora do livro “Antonieta de Barros: Professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil” que será lançado nesta quinta-feira (20) em evento online
Apresentar uma Antonieta mais humanizada. Essa é a intenção da autora Jeruse Romão ao escrever o livro biográfico Antonieta de Barros: Professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil. Com o selo da Editora Cais, a obra desvenda o histórico familiar e vai além da trajetória política de Antonieta. O lançamento ocorre nesta quinta-feira (20), às 19h30, em evento online.
Aos 60 anos de idade, Jeruse mantinha no imaginário apenas a imagem de Antonieta como a primeira deputada negra do Brasil e decidiu conhecer outras facetas daquela mulher que tanto fez pela educação no Brasil e no estado. “Eu escrevi um artigo com informações desconstruídas sobre a Antonieta, uma Antonieta coletivizada, diferente das que sempre falam dela, sozinha, com registros e imagens da cintura para cima, muito oficial, muito brancocêntrica, muito masculina com a ideia só de busto… Eu sempre imaginava como eram as pernas, o corpo dessa mulher…do artigo surgiu o livro”, relata a autora.
Durante a produção da obra, que durou cerca de dois anos, Jeruse teve acesso a informações valiosas e pouco conhecidas pela sociedade. Inspirada pelo termo ‘afrografias da memória’ criado pela escritora negra Leda Martins, a edição é dotada de imagens raras da época de Antonieta. Um dos destaques é a descoberta da identidade do pai de Antonieta que até então era cercada de especulações. Outra revelação interessante é sobre o ativismo dos irmãos da deputada que participaram das primeiras organizações negras na década de 1920.
Com uma herança escravocrata, identificar os antepassados dos negros é desafiador. As identidades dos povos escravizados no Brasil se perderam no caminho e no tempo e muitas destas famílias foram separadas e espalhadas por todo Brasil. No caso de Antonieta, a mãe Catarina Waltrich era uma mulher escravizada liberta. Para montar a linha dos descendentes da deputada, Jeruse visitou bancos de escrituras da escravidão no estado, mas segundo a autora, esses documentos não estão sendo devidamente conservados em Santa Catarina. Mesmo assim, após muitas pesquisas, foi possível traçar a árvore genealógica das duas gerações de Antonieta disponíveis no livro.
“São dois troncos de descendentes, um tronco branco da irmã Maria, e outro tronco do irmão Cristalino que é dos negros. Só esse aspecto étnico já confere diferentes estilos de vida dessas famílias”, conta.
A espinha dorsal nos sete capítulos do livro é Antonieta de Barros, mas a todo momento a autora faz atravessamentos em que contextualiza o momento vivido no estado e no Brasil. “Um capítulo é exclusivo sobre os negros de SC nos tempos de Antonieta, esse período que ela viveu entre 1920 e 1940 formaram-se as primeiras organizações do movimento negro no estado, e ver isso acontecer muito próximo dela é interessante. Eu costumo dizer que Antonieta viveu no mesmo tempo que foi criado o primeiro terreiro de umbanda de Florianópolis, isso dá contexto pra ela”, comenta.
O livro passeia também pelo legado na educação deixado por Antonieta. A jovem então com 21 anos fundou uma escola, aos 24 escrevia em jornais sobre educação, criticava o cenário político e a condição das mulheres, aos 33 foi eleita deputada estadual de Santa Catarina pelo Partido Liberal Catarinense e foi na atuação política que conseguiu ter todos seus projetos aprovados, a maioria ligados à educação, como as concessões de bolsas de cursos superiores para alunos carentes e concursos para o magistério. Antonieta quebrou diversas barreiras em um estado oligárquico e racista, mas isso não a livrou dos preconceitos. O livro traz dois episódios de racismo sofridos pela deputada.
Como Antonieta, Jeruse é mulher, negra, professora, ativista, atuante política e escritora. Muitas coincidências que parecem até coisa do destino. As semelhanças entre as duas são tantas que a professora e filha da autora, Azânia Nogueira, escreve sobre a aproximação entre a mãe e Antonieta na apresentação do livro. O sangue revolucionário também parece ser uma afinidade entre as duas mulheres. Jeruse é uma grande conhecedora do poder dos livros e da educação. Por isso, montou um esquema diferente do que é visto no mercado editorial. O livro sobre Antonieta de Barros estará à venda em comércios em que os proprietários são negros, são os afroempreendedores e empreendedoras.
“A população negra foi muito mais afetada pela pandemia, quem precisa manter a porta aberta pra funcionar sofreu muito impacto, então saí perguntando para algumas pessoas e escolhemos de imediato cinco comércios, mas estamos vendo mais dois. Têm barbearia, café, salão afro e talvez um sebo. Queremos desconstruir a ideia de que livro vende só em livraria. Vender livros em outros lugares a gente atinge outras pessoas”, conta.
Leia a entrevista na íntegra:
Como surgiu a ideia de escrever o livro sobre Antonieta?
Eu escrevi um artigo e dei pra minha filha ler as informações desconstruídas que eu trazia da Antonieta, uma Antonieta coletivizada porque sempre falam dela sozinha, registros e imagens da cintura pra cima, muito oficial, muito brancocêntrica, muito masculina com a ideia só de busto… Eu sempre imaginava como eram as pernas, o corpo dessa mulher. Então comecei a escrever sobre a família dela, o que era pra ser 20 páginas se tornou o maior capítulo do livro e é onde eu apresento o pai dela, que no imaginário das pessoas ele não existia e quando consegui achá-lo, consegui ampliar esse olhar. O pai, Rodolfo, e a mãe, Catarina, eram separados e descobri que os irmãos da Antonieta eram ativistas. A irmã, Leonor de Barros, foi uma das professoras mais expressivas em Santa Catarina. A forma como a Antonieta e a Leonor educaram as elites catarinenses, nas escolas que elas lecionaram frequentaram muita gente que hoje é nome de rua, elas foram professoras de ex-governadores. E aí o livro foi crescendo, ele nunca foi pra falar só da deputada Antonieta, eu quis fugir desse lugar. O fato de ela ser a primeira negra deputada do Brasil deu visibilidade mundial a ela, óbvio que esse é o lugar dela e ninguém tira, mas eu quis mostrar a qualificação dela para se tornar deputada.
Como foi o processo de escrita e quanto tempo durou?
Demorei dois anos e 5 meses para finalizar o livro. Comecei a escrevê-lo em primeira pessoa e depois passei para terceira pessoa. O livro é meu, eu escrevi sozinha em casa, na primeira pessoa e aí agora em 2021 começaram outros processos, começamos os debates e mudamos para terceira pessoa, embora o leitor atento pode encontrar momentos em que eu estou falando. Eu gosto muito do termo “afrografias da memória” criado pela escritora negra Leda Maria Martins. Eu me inspirei muito na Leda para escrever esse livro e ele não é um livro pra academia. Eu informo todas as fontes, com bastante notas de rodapé. Esse livro pode incentivar inúmeras pesquisas sobre a Antonieta, a Antonieta na educação precisa ser mais estudada.
Tem sete capítulos, um é exclusivo sobre os negros de SC nos tempos de Antonieta, esse período em que ela viveu entre 1920 e 1940 formaram-se as primeiras organizações do movimento negro no estado, e ver isso acontecer muito próximo dela é interessante.
Eu falo sobre ela, a espinha dorsal é a Antonieta e faço atravessamentos com outros contextos. Eu costumo dizer que Antonieta viveu no mesmo tempo que foi criado o primeiro terreiro de Umbanda de Florianópolis, isso dá contexto pra ela. As crianças negras que aprendem sobre negros na escola conhecem apenas a identidade particular da personagem, elas precisam entender todo o contexto por trás e ao redor daquele único negro.
Sobre as gerações da família de Antonieta, você conseguiu identificá-las?
Eu fiz a árvore genealógica da família. São dois troncos de descendentes, um tronco branco da irmã Maria, e outro tronco do irmão Cristalino que é dos negros. Só esse aspecto étnico já confere diferentes estilos de vida dessas famílias. Eles não moram em Santa Catarina, alguns são de São Paulo, outros do interior do Paraná e tiveram pouco contato com a história da tia. Eu conheci o sobrinho neto e ele escreve no posfácio que decidiu recuperar a Antonieta na família a partir do meu contato durante minha pesquisa para o livro e quando a Flávia Person o procura para fazer um documentário sobre a história de Antonieta.
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Além de textos inéditos, quais atravessamentos o livro traz?
No livro eu trago crônicas dela, um conto de 1929 que não conhecíamos, alguns discursos na Assembleia Legislativa, textos do jornal. A característica do livro não é uma análise, é uma apresentação, eu conto uma história da Antonieta e coloco a voz dela.
Falo sobre o silenciamento que a estrutura racista de SC nos impõe até os dias de hoje, já poderíamos ter mais deputadas negras em SC, diretoras negras presidindo escolas e universidades no estado, já poderíamos ver mais mulheres negras no jornalismo. Por que ainda nos surpreendemos quando aparece uma jornalista negra na TV?
O livro tem um capítulo só do movimento negro do Estado desde as primeiras atuações e contribui pra dizer quão longevo é o movimento negro catarinense, ele é muito bem estruturado, muita gente importante, que deu sangue para o combate do racismo. Antonieta é a professora que utilizo para contar as histórias no livro, um livro que não foi escrito para crianças, mas que pode ser lido pelos professores para elas.
Antonieta foi a primeira mulher e mulher negra em muitas coisas: primeira mulher negra deputada no Brasil, primeira mulher a presidir a Assembleia Legislativa por um dia, primeira negra a publicar um livro em SC. São muitos feitos, como autora e pesquisadora deste livro, como ela conseguiu conquistar tanto para uma época considerada “recém-abolida”?
Com uma soma de tudo, tanto a personalidade dela quanto o acesso à educação. Ela teve protagonismo no Grêmio Estudantil na escola com 18 anos, essa coisa de querer colar nela que só se torna política quando foi convidada, não é verdade, ela já tinha esse tino. Ela foi uma mulher proprietária de uma escola aos 21 anos, aos 24 começou a escrever para um jornal, ela faz parte do seleto grupo de mulheres da imprensa, uma jornalista negra de SC. Era uma oradora das mais brilhantes, era convidada para falar. Aderiu à imagem de Anita Garibaldi como uma mulher importante para outras mulheres, ela falou sobre muitos temas, as crônicas dela eram muito plurais, ela falou sobre o feminismo, sobre o avanço civilizatório, a chegada do avião, do telégrafo, ela tinha uma coisa muito bucólica de defender o tradicional, como quando chegou a energia elétrica, disse: “não vamos mais ver os vagalumes e as serenatas por conta da chegada da luz”. Tinha uma pegada filosófica.
Quais aspectos da vida e personalidade de Antonieta você traz na obra?
Ela era uma mulher contida, mas dominava muito bem a cena social e política, ela tinha muito jogo de cintura pra isso, a expressão na política e na imprensa não era pouca coisa, ela nasceu pra isso, para ser professora. Ela não se intimidou e teve coragem para ser candidata. Santa Catarina na época tinha movimento nazista, estamos falando de um período em que uma boa parte das mulheres era contra a participação das mulheres na política, estamos falando de uma mulher negra em um estado oligárquico, racista, ela não veio de uma linhagem de família de políticos, ela transitou com professoras brancas, que eram filhas de políticos, de donos de cartório, de médicos, mas ela não, ela e a irmã eram filhas de lavadeira. Ela chega na política porque ela entendia a educação por dentro, ela defendeu na tribuna políticas públicas para a educação. Ela defendeu o sujeito da escola, o ginásio para os mais pobres, a educação para as mulheres, sugeriu uma homenagem com o dia do professor e todos os projetos dela foram aprovados. Ela contava com uma bancada, majoritariamente, do partido dela, o Partido Liberal Catarinense (PLC), o que facilitou também.
Os ideais políticos de Antonieta se encaixam na direita ou esquerda?
Não havia essa polarização na conjuntura dela, só na década de 40 que surgiram os partidos trabalhistas. Ela era conservadora e revolucionária, as duas coisas.
Podemos afirmar que Antonieta simpatizava com o movimento feminista?
Ela escreveu sobre o feminismo, ela era jornalista, sabia o que acontecia, tinha acesso a informações sobre o feminismo. Ela era católica e do que acompanhei, uma parte do movimento das mulheres católicas não apoiava, o movimento julgava o feminismo como faceta do comunismo, mesmo assim ela escreveu algumas vezes sobre.
Como foi a resistência da elite catarinense ao que Antonieta representava?
As reações eram partidarizadas. Ela compunha os movimentos das intelectuais e foi reconhecida como intelectual do magistério, ela era respeitada. Mas trago no livro dois episódios de racismo que ela viveu.
Durante a pesquisa percebi também muita resistência das mulheres na época e faço atravessamentos de questões das mulheres catarinenses. Na época, as mulheres mais conservadoras não queriam que o feminismo adentrasse porque trazia debate sobre divórcio e aí onde ficava a família? Não queriam feminismo porque a mulher era a rainha do lar.
Você se identifica com Antonieta?
A Azânia Mahin Romão que faz a apresentação do livro escreve sobre a relação entre mim e Antonieta. Ela diz que somos duas professoras de Santa Catarina que atuam na educação. Eu tenho uma irmã chamada Antonieta que é falecida e que eu até dedico a obra a ela. Eu comecei a ver coincidências enquanto estava escrevendo, eu fiz pedagogia no mesmo prédio em que Antonieta frequentou, também escrevo, tenho ativismo na educação, atuo na política. Fui vendo alguns encontros que existem em mim e também nas mulheres negras de movimentos daqui, nós todas somos Antonietas. Muitas mulheres negras e aposentadas que cuidam desse legado dela, que fazem parte da Associação Antonieta de Barros, embora não tenham tido acesso ao conteúdo dela, a Associação tem 60 anos e essas integrantes são ícones.
Como está a expectativa para o lançamento?
Claro que estou ansiosíssima, quero que as pessoas recebam bem o livro, mas estou mais tranquila porque foi um trabalho coletivo, fiz uma live de pré-lançamento em julho do ano passado com pessoas do movimento negro em que apresentei a primeira versão do livro e foi bem recebido. Eu sou muito “paulofreiriana”, meu processo é coletivo.
Como tem sido a repercussão do lançamento do livro? Que contribuições a publicação traz para a educação e memória brasileira?
A minha intenção não é desconsiderar os estudos feitos sobre ela, eu respeito todos eles, agora entendo que o que caracteriza o livro é a humanização da Antonieta, além de apresentá-la em um contexto catarinense, contextualização do que representava ser negra naquela época. A contribuição é para a identidade de meninas e meninos negros e suas relações familiares. Para saberem sobre o papel do pai, da mãe, o que faziam, o quanto ela amava a mãe, os irmãos. Como a relação entre a família era pautada pelo afeto e carinho. Ela era carne e unha com a irmã, a irmã foi uma companhia muito importante porque tinha um cuidado moral com Antonieta. Leonor era o escudo silencioso discreto com muita atenção percebe-se a presença dela, meio que blindando contra qualquer advento que julgasse a moralidade da Antonieta. Cada vez que ela assumia um mandato, a Leonor a substituía na direção da escola.
A ideia de colocar o livro à venda em locais onde os proprietários são negros é fascinante…
Sim, são afro empreendedores e empreendedoras. A população negra foi muito mais afetada pela pandemia, quem precisa de manter a porta aberta pra funcionar sofreu muito impacto, então saí perguntando para algumas pessoas e escolhemos de imediato cinco comércios, mas estamos vendo mais dois. Tem barbearia, café, salão afro e talvez um sebo. Queremos desconstruir a ideia de que livro vende só em livraria. Vender livros em outros lugares a gente atinge outras pessoas. A cafeteria, por exemplo, me emocionou muito porque se encaixou muito na intenção da Antonieta. O pessoal do café decidiu que vai doar todo recurso da venda do livro para uma casa abrigo em São José. A Antonieta quando publicou o livro “Farrapo de ideias”, mandou o recurso para uma assistência para filhos de leprosos. Ou seja, dar visibilidade para uma população que está muito invisível.
Serviço
Lançamento do livro “Antonieta de Barros: Professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil”, de Jeruse Romão
Quando: 20/05 (quinta-feira), às 19h30
Onde: Online, via Zoom (link será disponibilizado pela @caiseditora)
Vendas:
Florianópolis
Barbearia Freitas (Avenida Hercílio Luz – Centro)
Cafeteria Coffee Rua General Liberato Bittencourt, 1475 Edifício Globo Tower – Estreito
São José
Café Minerim Praça Arnoldo de Souza, 102
Criciúma
Centro de Beleza Studio Ônix Rua São Pedro, 154 – Próspera
Joinville
Movimento Negro Maria Laura