Por Alana Pastorini. 

Para falar sobre política, mulheres, espaço e o que é política para além das cadeiras no parlamento, a entrevistada desta edição é a professora mestra, militante histórica da luta, Jeruse Romão. Jeruse é formada em pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e foi a primeira universitária de sua família. Foi coordenadora do Programa Antonieta de Barros na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC) e, na Câmara de Vereadores de Florianópolis, foi a responsável pela pesquisa e formatação do projeto de lei que tornou obrigatório o ensino de conteúdos afro-brasileiros nas escolas. Jeruse lança ainda nesta ano uma publicação sobre a deputada Antonieta de Barros – primeira e única negra no parlamento catarinense desde então.

Mais mulheres na política significa mais representatividade?

Jeruse: Sim e não! Eu penso que mulheres na política informam para o conjunto da sociedade, sobretudo, como leitura e forma de ler, que as mulheres podem estar em situação igual aos homens em qualquer espaço. Agora, no sentido da pauta, sobre o que essas mulheres possam vir a defender, nem sempre.

Veja o exemplo da Câmara de Vereadores de Florianópolis. A única mulher que foi eleita em 2016 e cumpriu mandato até 2020 declinou participação na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e de Igualdade de Gênero, constituída por quatro vereadores homens. Então, não se pode desassociar a presença da mulher na política e sua visão ideológica, da aderência ao seu campo político e a sua visão de mundo.

Temos que pensar as mulheres, os indígenas, a população toda em sua pluralidade, então, assim como não dá para racializar negros em uma representação monolítica, também não dá para tratar as mulheres na mesma perspectiva. E sim. Contribui, sim, fortemente para uma perspectiva de reeducação social e da desnaturalização da invisibilidade. Agora, é preciso compreender que mesmo não estando lá, as mulheres também representam inúmeros projetos políticos fora desse espaço.

Como melhorar a representação das mulheres na política?

A cultura dos partidos ainda é voltada, gerida e dirigida pelos homens. As mulheres ainda estão em setores menores do que a presidência, a diligência e a representação. E mesmo os homens, mesmo na esquerda, quando falam da importância das mulheres participarem da política, eles falam da importância, mas não estabelecem condições de participação, justamente pelas atribuições que elas carregam que continuam as mesmas. Elas que deem um jeito, elas que lutem para cumprir uma agenda que foi criada pela perspectiva dos homens. Esse é um dos problemas, e quanto mais empobrecidas e mais vinculadas a sua dinâmica de sobrevivência, observa-se que elas são subestimadas e “dependentes” do que os homens dos partidos decidem.

Elas não conseguem dominar os conteúdos sobre a organização política, visto que participam só de uma parte, já que não estão nas mesas de negociação e/ou nos espaços para definir com quem se dialoga. E uma coisa que tem se discutido e surgido nos últimos anos é a presença do fundo eleitoral. Então, essas mulheres, muitas chefes de família, com salários menores do que o dos homens, não terão condições de assumir esse processo que no Brasil é desigual.

E o fundo eleitoral, quando analisado, nessa base das últimas eleições, vemos que os partidos não distribuíram de forma igualitária os fundos para mulheres e negros. Ou seja, ainda há um recorte patriarcal predominante, inclusive em um viés econômico da política partidária.

Por toda essa sobrecarga, pela inserção tardia ou nula na educação, mercado de trabalho e política que, majoritariamente, foram dos homens, você acredita que elas se sentem despreparadas e até ilegítimas para ocupar uma vida democrática?

Eu assumi a perspectiva da Antonieta de Barros, quando ela disse, em 1932, que não entendia a crítica, a resistência contra a presença da mulher na política partidária se ela sempre esteve ali. Antonieta de Barros, dois anos antes de ser eleita a primeira deputada de Santa Catarina e a primeira deputada negra do Brasil, disse: “Não compreendemos, mesmo, a grita, levantada contra a porta, aberta ao sexo fraco, pelo direito do voto. E isto, porque, diga-se entre parênteses, Mulheres na política, em nosso país, sempre as houve. Não há novidade pois, a não ser que abandonaram os bastidores, para se apresentarem em público”. 

Com base nessa chamada de atenção histórica dela, encontramos os nossos lugares na política, desde sempre, mesmo antes de sermos eleitoras e votadas. Então eu me lembro da minha infância, da minha mãe, professora e de quando as mulheres professoras tinham muito poder e foram as primeiras mulheres que tiveram uma vida pública. O magistério é uma vida pública. Isso deu trânsito e visibilidade. Elas saíram de casa, lidaram com a sociedade, com as famílias de seus alunos, com a direção da escola, com o poder político local.

Posto isso, penso que a invisibilidade desse conteúdo precisa ser combatida por nós mulheres. Precisamos escrever mais, buscar mais sobre esse assunto para não chegar nessa afirmação, como se fosse verdade, de que as mulheres não participam da política e nunca participaram. Antonieta nos deixa esse alerta. Quando você olha as reflexões articuladas, os atos, as decisões e as relações objetivas lideradas por mulheres em todo e qualquer canto, isso também é política.

As mulheres sabem que aquilo lhes falta, como lideranças, tem que ser reivindicado em algum lugar e sabem para quem demandar: é com @ prefeit@, com governador@, na câmara d@s vereador@s, e por aí. Essa atuação não é insignificante, pelo contrário, precisamos ampliar a potência no fato das mulheres sempre terem participado da política, mas ela só é lembrada pelos partidos, no ano eleitoral. Já os homens nunca deixam de ser reconhecidos como sujeitos políticos. 

O que é política para além das cadeiras de vereador, deputado, prefeito, governador? O que é fazer política?

Eu penso que é nessa perspectiva de Antonieta de Barros, de sempre terem existido mulheres capazes de governar a vida cotidiana, projetando a cidadania, direitos e combate à desigualdade, sobretudo, projetando combate ao machismo e tudo que vem decorrente dele: violência e ausência de direitos. Nas associações de moradores e grupos religiosos elas estão prospectando representatividade e é muito forte essa atuação. Eu me vejo como mulher na política a partir desses lugares.

Então, autonomia para tomar decisões é fazer política, que começa em casa discutindo o machismo e o patriarcado, é a autonomia para reivindicar direitos, autonomia para pensar. Outro aspecto que aprendi com Antonieta é que mesmo que ela tenha direito ao voto, não conquistou de imediato autonomia para pensar. Então, é interessante observar os primeiros mandatos das parlamentares mulheres do Brasil, as primeiras deputadas, prefeitas. Até 1940, 1950, você vai observar que ainda não tinham autonomia para pensar, estavam muito tuteladas ao machismo e muitas chegaram sozinhas. É o caso da Antonieta. Não existiam outras mulheres com quem ela pudesse dialogar.

Essa conjuntura ainda está muito presente no Brasil quando, por exemplo, você percebe que mulheres acadêmicas, brancas, de classe média /alta, terão mais condições do que mulheres pobres, negras e/ou da periferia. Também há, nesse campo denominado mulheres na política, muitas distâncias advindas do modelo de hierarquização da sociedade brasileira. 

Como incentivar a dona de casa, que muda de canal na propaganda eleitoral, a se interessar por política? 

As pessoas associam o fazer político somente com o período eleitoral e não gostam do que costumam ver. Infelizmente, a escola como local de formação está sendo esvaziada e quem ataca a educação oferece essa narrativa apolítica. A democracia prescinde do acesso aos conteúdos históricos sobre a organização da sociedade. Não é uma questão pessoal, particular, é uma pauta sobre a coletividade. Deveríamos ter na escola desde nosso processo de formação inicial, acesso a esse conceito de política sem a conotação de que é partidário. 

A dona de casa é sujeita da política. Ela, seus filhos e seu entorno. E ela toma decisões. Quando está inserida nas dinâmicas da sua comunidade e reflete sobre o que dizer antes de dizer e fazer, respeitando o pensamento das vizinhas, está manifestando conteúdo político. Nós nascemos no contexto da política. É interessante pensar o rito da representatividade da política no Brasil que é uma outra coisa. Ela, por exemplo, quando vai votar no síndico do prédio ou na diretora da escola está fazendo política. Então, o que precisamos é trazer esse conteúdo para a proximidade cotidiana.

As pessoas possuem uma visão extremamente reativa quando a gente fala de política, porque elas pensam só em política parlamentar e, mais ainda, elas generalizam o político a um perfil. Precisamos também divulgar mais sobre o fazer parlamentar. Não aproximamos a sociedade do legislativo, o que é lamentável. Assessorei seis parlamentares. E sei o quanto é difícil estabelecer canais com a sociedade. Nesse processo eleitoral de 2020 falei muito de Antonieta de Barros. Achei importante articular a carreira dela de professora, sua pauta em defesa da educação e do magistério, sendo ela negra. Tentei aproximá-la das pessoas. Falar sobre a sua trajetória, a tornando uma inspiração.

Como você analisa a relação da política na educação, sobretudo, em processos de inclusão da população negra?

Aí vamos ter que dialogar com todos os aspectos da política articulados e interseccionalizados. As políticas na educação são em decorrência da atuação do movimento negro, como um movimento político de articulação e defesa de Direitos. O movimento que problematiza a desigualdade na sociedade brasileira sob uma perspectiva étnico-racial denuncia o racismo que é estruturante na sociedade brasileira. A luta no âmbito da política partidária nos ofereceu legislações em Santa Catarina e no Brasil que objetivam desconstruir a perspectiva da escola que reproduz a hierarquização e o racismo, desde o Brasil colonial. 

Desde a pós-abolição, a inclusão da política de igualdade racial e combate ao racismo na escola articula-se a partir de um conjunto de ações como acesso, permanência, história, cultura, visões de mundo e representações de nossas pluralidades negras. Por isso, eu vejo que estamos defendendo a democracia todo dia, porque todo dia ela é ameaçada. Estamos defendendo a democracia em 2020, nunca se falou tanto nisso como nos últimos anos e isso implica em defender a equidade para os sujeitos. São distâncias tão absurdamente profundas que ainda marcam grupos étnicos. É muita distância para a população indígena e negra no que diz respeito ao acesso da coisa pública.

Interessante analisar que a coisa pública no Brasil é muito patrimonializada na perspectiva dos brancos e das elites, sobretudo, da classe média que é a que mais a usa e pressiona para que o que é público tenha as suas características. Quando você pensa que a escola pública de um país com maioria negra é eurocêntrica, a gente vai ter que lutar para que ela seja mais parecida com a população do seu país. Não é pensar só sobre a região sul: “Ah, mas aqui a maioria é branca”.  Não! Não é nessa perspectiva, é sobre ela ser muito desigual para a maioria. Sempre tivemos no Estado de Santa Catarina um conjunto muito potente de professores e professoras negr@s. Temos muitas pesquisas trazendo esses dados, mas quantos dirigentes da educação foram ou são negr@s?

Você entende que mulheres devem votar somente em mulheres?

Devem! Sempre que possível! Eu faço essa escolha, sempre que possível. Contudo, meu voto é racial também. Quando não tenho a opção de votar em uma mulher negra, voto no homem negro. Meu voto é racial e prioritariamente racial, porque eu entendo o impacto daquele negro na comunidade como um todo. Nas eleições de 2020, felizmente, a minha candidata foi uma mulher negra e nós também tivemos muitas possibilidades de votar em mulheres negras em Santa Catarina.

Segundo o historiador Rhuan Fernandes, que analisou os dados eleitorais de 2020, aqui no Estado tivemos mais de 700 candidaturas pretas, 50% delas de mulheres. Então foi totalmente possível escolher mulheres negras nesse pleito. Mas em outros, em que precisei escolher entre mulheres não negras e homens negros, escolhi os homens negros. Nós temos uma agenda extensa para o combate ao racismo no Brasil. Precisamos de pessoas francamente posicionadas e com essa centralidade.

Mas é preciso entender qual a pauta dessa mulher, correto?

Se a candidata for contra as pautas que eu defendo, eu não voto nela. A gente também precisa se colocar no âmbito da pluralidade. Por exemplo, os homens brancos que estão no poder nunca tiveram que afirmar sua individualidade. Sabemos que eles são indivíduos e que nunca precisaram fazer movimento para ter lugar no poder. Agora, mulheres e negros sempre precisaram se organizar para ter representação.

A bancada da Câmara Federal é composta por mulheres de todos os partidos. Mas na Câmara dos Vereadores de Florianópolis, havia até 2020 apenas uma mulher que se negava a falar sobre mulheres. Você vai votar nela? Ela se negou a ser a presidente da comissão das mulheres na câmara. Você vai votar nela porque ela é mulher? Não! A pauta “mulher” não está entre as pautas que ela defende. Portanto, o importante é que seja uma mulher na dinâmica da agenda política de mulheres.

Eu entendo que os direitos conquistados pelas mulheres precisam ser defendidos e vejo algumas no poder desconstruindo esses direitos que implicam em pertenças e políticas sobre etnia/raça, família, religião, identidade de gênero, juventude, infância, corpo, ecologia, saúde, educação, entre tantas outras, na nossa ampla diversidade de ser e existir. 

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