Letrux canta a tragicomédia do amor romântico
Cantora desembarca em Florianópolis no próximo sábado (20) para se apresentar no palco da 10ª edição do Festival Saravá
“Como se diz pra alguém ‘eu não me apaixonei como você?'”, indaga a “Louva deusa”, personagem animal do último álbum de Letícia Novaes, a Letrux, diante da não correspondência tão comum no amor. A música remete ainda à natureza implacável da louva-a-deus fêmea, que devora o macho durante o ato sexual. “Eu como você, mas não me”, diz outro trecho, mostrando a graça que Letrux faz do amor.
Entre outros animais que ganham destaque, a formiga, a zebra, o leão e, especialmente, a girafa – encarnada pela própria artista – tornam-se fonte de inspiração para seu terceiro disco de estúdio “Letrux Como Mulher Girafa”.
Do apelido pejorativo da infância, Letrux fez um elogio, adotando a girafa como seu ‘bicho-símbolo’. “Eu acho que a girafa, por ser muito alta, vê tudo ali na savana. Então, eu fiz essa analogia da altura da girafa, dela perceber tudo”, conta em entrevista ao Catarinas.
Entre analogias e metáforas, a cantora e compositora trafega na relação dos animais com os nossos sentimentos, em especial o mais pulsante deles: o amor. Ah, o amor em Letrux é levado tão a sério, mas com muito humor e deboche pra gente amortecer ou mesmo rir das situações que, à primeira vista, parecem inconsoláveis.
“Sou uma devota do amor, mas também estou aí para bagunçar o coreto. Mas bagunço o coreto amando, sofrendo, caindo no chão. Não sou cínica. Se eu fosse cínica, eu não amaria”, afirma.
Letrux desembarca em Florianópolis no próximo sábado (20) para se apresentar no palco da 10ª edição do Festival Saravá. O show será destaque na programação diversa que inclui Alcione, Gilsons em conjunto com Rachel Reis, Djonga, Johnny Hooker, Jesus Lumma, entre outros artistas.
Conversamos com a artista sobre o novo álbum, mas também sobre o seu universo musical onde o amor assume uma dimensão tragicômica.
A palhaçaria e a atitude cênica são pontos importantes do seu trabalho, tanto na forma, quanto no conteúdo. No seu novo álbum, “Letrux Como Mulher Girafa”, percebo um pouco dessa dimensão da palhaçaria no sentido de se apropriar das suas questões que te afetam, para rir delas, para se ressignificar. Me fala um pouco dessa transformação da Letrux em mulher girafa e dos outros animais que, eventualmente, também te habitam.
Acho que o ser humano, né? A gente passa pelo retorno de Saturno. Mas muitos bichos trocam de pele. A lagarta vira borboleta. A cobra troca de pele. Os bichos também passam por mudanças significativas. Tanto para ficarem mais belos, quanto para alguma outra mudança. E me identifico muito com isso. Não dá para passar a vida no meio termo. Em alguns momentos da vida você tem que lutar radicalmente ou você tem que amar radicalmente. É louco isso, porque às vezes a gente luta por equilíbrio. Mas algumas lutas, elas só ganham se elas forem radicais. Acho que os animais têm um radicalismo forte. Até porque eles são bichos, não tem ‘ah, eu não vou matar esse bichinho’. ‘Não, vou matar, porque eu sou um animal’. A pandemia me deixou um pouco mais radical também. O que eu quero? De quem eu quero estar perto, eu quero voltar naquela festinha insuportável que eu ia?
Depois da pandemia ficou todo mundo mais sensível. E nossa, a gente passou dois anos, foram quase dois anos enjaulados e é uma coisa que bichos passam no zoológico também.
Foram muitas associações e percepções. Teve um dia durante a pandemia, eu lembro, que eu não falei nada. Eu não abri a boca. Eu não falei com ninguém. Eu não mandei áudio. Eu não falei com o meu boy. Imagina, a gente estava numa casa, felizmente. Uma casa grande, ele ficava no quarto e eu estava no outro. Em alguns momentos, eu lembro que fui comer e não usei garfo, peguei a comida, assim, da panela. E meio que eu comi arroz com ovo com a mão, com uma colher de pau. Pensei: ‘virei um bicho’! ‘Gente, eu virei um bicho. Preciso ter cuidado, estou virando bicho’.
E aí, aos poucos, fui retomando. Mas, ao mesmo tempo, eu pensei ‘que maneiro também, está tão estranho ser humano.
Não faz sentido ser humano nesse momento [pandemia]. Havia o negacionismo. A gente estava passando por tantas bizarrices. Falei ‘nada disso faz sentido’. Faz sentido ser bicho e de alguma maneira, meu corpo reagiu àquilo sendo bicho.
E a girafa, ela vem de um lugar… Para mim, claro. Eu tenho mais de 35, sempre fui muito observadora e a girafa, por ser muito alta, acho que ela vê tudo ali na Savana. Eu vejo tudo assim, sou bem curiosa. Porque sou interessada no cotidiano, no que as pessoas falam. Eu não sou uma pessoa que entra de fone no metrô. Eu entro assim: ‘deixa eu ver o que estão falando’.
As pessoas me inspiram.
Você bebe muito das relações humanas…
Exatamente. Se eu estiver travada, é só andar 15 minutos, aqui no bairro. Alguma coisa vai acontecer. E, claro, eu sou aberta a isso. Para o bem e para o mal. Posso ser muito esponjinha e ficar sensibilizada no ambiente, com a energia e tal, mas eu gosto. Prefiro trabalhar uma limpeza a me fechar. Então, eu fiz essa analogia da altura da girafa, dela perceber tudo. Sou muito observadora.
Mas, claro, eu falo de formiga. Que é um animal interessantíssimo. Que coisa louca uma formiga. E é uma das músicas mais pesadas do disco. É o bicho mais leve. Mas é uma das músicas mais ‘uou, que peso’.
Tem a ver com a relação da formiga com o trabalho?
Ah, a formiga é capricorniana. Muito trabalhadora. A gente fala de abelha. A gente fala de leão. Essa analogia do leão: matar um leão por um dia.
“Leões” é uma música que fala um pouco de capitalismo. Mas de uma maneira amorosa. Amorosamente no sentido de que é bom ter amigos. É bom ter amores. Porque, olha só ‘a gente tem que matar um leão por dia’. Então, que sorte ter alguém para beijar. Para abraçar.
Porque os leões vão ter que ser matados, né? E aí, fui percebendo também muitas anotações no meu caderninho, com expressões animalescas, como ‘aí, nesse mato não sai cachorro’. Pensei ‘estou sentindo aqui uma unidade criativa em todos os meus processinhos’. Eu gravo muito ideias melódicas. E aí falei ‘gente, acho que é isso: depois dessa pandemia, só dá para a gente virar bicho, sabe? Botar os bichos para fora’.
Na música “Louva deusa” você alude ao fato de que louva-a-deus fêmea devora o macho durante o ato sexual. Na música você trata da universalidade do amor romântico, mas também da não correspondência do amor. Como você chegou a essa metáfora para explorar essa questão do amor que é tão presente na vida das pessoas de forma geral?
Eu já tinha pensado nessa coisa da louva-a-deus há muito tempo. Anotei, guardei. Fiz até alguma música, há muito tempo mesmo. E isso nunca saiu da minha mente. E nos últimos anos eu percebi, tanto na minha história, quanto na história das pessoas que me cercam, amizades, ou gente que eu fiz amizade de uma noite, de bar, certa repetição de: ‘eu gosto de alguém e essa pessoa não gosta de mim’. Então, na próxima vez vai haver um castigo das coincidências do mundo: alguém vai gostar de mim e eu não vou gostar dessa pessoa. E eu comecei a falar isso. ‘Quando que dá o match, né?’ Ai, duas pessoas que se gostam. É muito raro.
Como se diz pra alguém isso? É chato, né?
As pessoas sempre falam ‘ai, estou com mais questões’ e não é. É só que eu não gosto de você como você gosta de mim. E quando eu ouvi isso na vida, isso me aliviou dez anos de análise. Eu sou amiga desse cara até hoje, porque eu falei ‘gente, que bom que você falou isso’.
Porque eu não fiquei, ‘ai, não, não, não’. Porque você entra numa paranoia, numa loucura e tal. Por quê, né? Também que essa analogia com a louva deusa que come, é do tipo, se ficar me enrolando, se me enrolar muito, eu vou te comer. Vou passar pra frente. E comer é sentir prazer, mas depois, ó, fazer cocô ou cuspir. A comida, ela vira uma digestão que depois vira merda.
A maioria das suas músicas tem um certo deboche da sofrência. De que maneira ocorre essa construção do humor com amor, da tragicomédia no seu trabalho?
Eu gosto de trabalhar com humor, desde criança fui considerada engraçada, gostava de ser gracinha e tal. E ao longo dos anos, fui desenvolvendo isso, fiz curso de palhaçaria também. Mas acho que mesmo antes do curso, a professora até falou: ‘Letícia, nem sei o que você tá fazendo aqui, porque eu falo de você no curso’. Aí eu falei ‘nossa, que loucura’. Ela falou ‘já fui ao seu show’. Mas, claro, muitas artistas que eu admiro sempre flertaram com o humor.
Até gosto de algumas artistas que flertam com sensualidade ou coisas assim. Alguma coisa naquele humor da Rita Lee, aquela palhaçada, aquela loucura que ela causava, aquilo mexia, ainda mexe, aquilo fez assim pra mim ‘dá pra ser assim, opa!’.
Sou formada em teatro e tenho certeza de que fiz teatro pra ser cantora. Eu não fiz teatro pra ser atriz. Eu entrei no teatro pra justamente entender quem era essa minha cantora, porque eu não ia aguentar ser cantora se eu não fizesse teatro. Porque eu nem tenho essa busca da excelência, do virtuosismo, da afinação. Não é o meu barato. O meu barato é ‘eu amo cantar’, me emociono muito em cantar.
A minha busca tem a ver com emoção. E não com uma pessoa, tipo a Elis Regina, afinadíssima e emocionadíssima, mas a minha pesquisa vai para um lugar mais cênico. Claro, nunca esquecendo o conteúdo, mas tem uma coisa de palhaça, sem dúvida.
Eu tenho muita noção do que está acontecendo, mas me permito chorar, me emocionar e estou aqui, ligadíssima em tudo que está acontecendo.
O amor romântico é muito presente no teu trabalho. Então, como você percebe as críticas e reflexões em relação à centralidade do amor romântico, monogâmico, na vida das pessoas, diante de formas não monogâmicas e poliamorosas de se relacionar?
Olha, o amor sempre vai ser assunto, não tem fim. A gente, em 2300, por telepatia, por chip, ainda vai falar de amor. Roboticamente, os robôs vão começar a se amar. Eu realmente acho que o mundo vai acabar e o amor não vai acabar, sabe? As baratas vão se amar, elas vão sobreviver. Então, o assunto é inesgotável.
Mas, claro, já tem algum tempo aí, por uma década já, que a gente está questionando o amor romântico, né? A primeira vez que comecei a pensar nisso foi com a Regina Navarro Lins. Ela foi a primeira pessoa a falar contra a monogamia, e eu falei, gente, que mulher é essa? E comecei a ler. Hoje em dia, eu leio muito a Geni Nuñes [psicóloga e pesquisadora] também. Eu acho que as minhas músicas, se eu ouço Letuce [banda da qual participou], tem uma coisa amorosa diferente ali. Quando eu ouço meu novo trabalho, eu falo: ‘olha aqui, já tem eu passeando, aberta ao mundo, eu sendo bissexual, eu descobrindo, eu fazendo’. As minhas músicas, a maioria são autobiográficas. Se você analisa as letras de Letuce, você verá que eu acompanho… tem o movimento, como em 2015, quando rolou todo aquele movimento feminista, Me Too, Meu Amigo Secreto…
Foi o ano da Primavera Feminista no Mundo.
Sim, aquilo abriu um portal que não tem volta. O mundo mudou real. As coisas mudaram mesmo. Festival que não tem mulher tocando, vai ser cancelado. As pessoas tomaram consciência de que, mulher não pode ser só a cantora. Vamos chamar uma técnica, vamos chamar uma roadie. Então, aquilo mudou mesmo. E eu sinto isso também.
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A gente não está passando por uma onda de ‘ah, discutir o amor’. Eu acho que é um movimento da gente começar a compreender sobre propriedade. O amor é uma propriedade. Como lidar? Mas, claro, nunca esquecendo os fragmentos do discurso amoroso do [Roland] Barthes [filósofo francês], de que a gente sente ciúme. A gente não funciona assim, ‘pronto: poligamia!’. Não é assim, né? A gente não tem manual, a gente não é um botão, a gente ainda não é robô, ainda bem.
Como a gente cresceu de uma maneira, vai ser muito difícil essa desconstrução e vamos passar por processos de dores. Mas o melhor é perceber que do chão a gente não passa. Eu já estive assim, no chão, chorando de dor, mas uma hora eu falava assim ‘acho que eu quero me levantar, deu’.
Então, é entender que a gente vai cair nesse processo de desconstrução do amor romântico, mas a gente consegue levantar.
No outro dia, eu estava falando com uma amiga, que tem 30 anos. Eu estou com 42. E ela estava falando umas coisas que eu fiquei um pouco chocada porque ela estava assim, ‘minha vida acabou’. Falei, ‘amor, sua vida começou’, seu retorno de Saturno é agora, você está louca’. A minha vida só melhorou com 31. E ela está com 30.
Claro, momento de dor, traição, sei lá o que aconteceu, era uma dor. E eu, sem querer diminuir a dor dela, mas querendo dizer: não, não acabou, começa. A carta da morte no tarô, não necessariamente alguma coisa vai morrer, alguma coisa vai começar. O início é o fim, o fim é o início. Essas coisas estão muito ligadas.
Você fala também sobre a questão dos amores lésbicos ou bissexuais nas suas músicas, como é o caso de “Que Estrago”. Como é o retorno das fãs sobre a representatividade que as suas músicas promovem na vida delas, como é que elas se sentem, tem esse feedback?
Eu sou uma mulher bissexual, já tem um tempo que eu falei sobre isso, escrevi uma coluna na revista Gama. E fiquei muito feliz com o apoio das pessoas. Claro que existe uma invisibilidade, né? Da sigla, do B. As pessoas falam mais de gays, depois de lésbica, depois, trans e a bissexualidade é um pouco mais invisível. Mas tudo bem, porque as outras questões, tipo uma questão trans, envolve caso de vida ou morte, envolve coisas mais pesadas, então é um outro lugar.
A gente consegue ver no Instagram, no Spotify, quem me ouve e o meu público é 65% mulheres. Tanto no Spotify, quanto no Instagram, eu consigo ver. Dessas 65, eu não sei exatamente a sexualidade, mas eu recebo muita mensagem, muita. Mulheres já se casaram ao som de ‘Que estrago’. E tatuagem. Então, eu fico muito feliz. Sou uma pessoa que sou fã de Cássia Eller, Zélia Duncan, Marina, Angela Ro Ro.
Temos muitas cantoras lésbicas assumidas e algumas não assumidas. O que eu respeito também, tipo a Gal, que era casada com uma mulher, mas ela nunca falou sobre isso. Ela era de outra geração, tinha a mãe muito religiosa, eu entendo. São outras questões, né, para cada pessoa.
Mas é um feedback muito, muito bom. Eu, sendo fã de tantas cantoras lésbicas assumidas, receber esse feedback por essa música, com a Bruna Beber, que é uma das minhas melhores amigas, poeta lésbica maravilhosa, essa composição aí dela, eu fico muito feliz.
Vamos falar um pouquinho também da sua relação com a paixão. Como você compreende a paixão, já que você faz essa distinção em relação ao amor?
Eu tenho questões com a paixão. Eu prefiro amor, eu não me dou muito bem com a paixão. Como eu falo na música ‘Cuidado, paixão’. ‘Paixão é raio que ilumina um segundo, e depois volta o brilho’. Eu acho que a paixão é um raio, um raio caro, aí você vê tudo por um segundo, e depois você não vê mais nada. Então tem que ter cuidado com esse vício, nesse frenesizinho, nesse frisson do raio. Viciada nessa eletricidade. E eu não sou, eu sou uma pessoa mais do ‘resiste ao amor depois do amor’. Eu sou capricorniana também, sou da montanha, eu sou da terra. Eu tenho Sol, ascendente e Lua em terra. Mercúrio e Vênus em aquário, graças a Jah, mas, nos principais, eu sou terra. A paixão não é terra. A paixão, sei lá, o que é, é fogo e eu sou terra, então…
Mas, claro, eu utilizo minhas lembranças ou coisas que eu ouço. Meu público também me dá muito material, as pessoas fazem cada comentário. Na igreja eu falo, ‘gente, isso é maravilhoso’, anoto. Utilizo o olhar que a geração tem com a paixão ou as lembranças que eu tenho, pra criar, sem dúvida. Mas, pessoalmente, eu não sou uma caçadora de paixões.
Voltando ao amor romântico, já que é tão presente na sua música. Você é uma devota do amor mesmo ou uma provocadora das questões afetivas, sociais, que ele suscita?
Acho que os dois. Sou uma devota, mas também estou aí para bagunçar o coreto. Bagunço o coreto amando, sofrendo, caindo no chão, mas bagunço. Não sou cínica. Se eu fosse cínica, eu não amaria. E tem muita gente cínica, mas muita que nunca vai viver uma real conexão ou saber o que é amar. Escolheram o cinismo. Lamento por essas pessoas.
Porque o amor romântico, não romântico, monogâmico, não monogâmico, em qualquer formato, ele ensina, ele te vulnerabiliza, ele te fragiliza. Mas que bom também. Porque o mundo é barra. Passar dizendo: ‘não sofro, não sinto’. Porra! O mundo está em ebulição climática, cacete. E você vai viver uma vida de cinismo? Você não vai tentar amar, você não vai ter reais conexões, apesar da ebulição climática?
Se você tem eco-ansiedade, ‘oh meu Deus, olha o mundo vai acabar’. Eu sou essa pessoa que ama, mas que também provoca.
Não sou só provocadora de jeito nenhum. Também estou aí, na lona, no céu. Sofrendo também, aprendendo, aberta, exposta. Disposta a mudar, a sofrer, a querer mais, a não querer, aprendendo.
Você poderia falar sobre o Rio de Janeiro, como é ser carioca da Tijuca, como isso se faz na sua arte e como foi essa relação de retorno à cidade na produção do novo álbum. Você frequentava o Zoológico da Quinta da Boa Vista, isso de alguma maneira te inspirou no álbum dos animais? E o que você acha de Floripa, do que já conhece, gosta, se espanta?
Eu sou tijucana, que é um bairro da Zona Norte do Rio, que não é perto da praia. Então, eu tive uma infância… Eu fui conhecer Ipanema, Copacabana já adolescente. E essa cultura de ir à praia lá, a gente ia numa outra praia mais distante, fazer piquenique, não sei o quê. Então, o Rio de Janeiro cartão postal, ele não faz parte da minha infância e adolescência. É uma coisa mais recente. Eu agora, inclusive, moro em Copacabana. E é hilário, porque eu sou muito alta, acham que eu sou gringa.
Tenho um sentimento forte de amor e ódio. Muita coisa errada. Muitos problemas, mas um encantamento, uma magia. Que é o que eu também sinto em Floripa. Essa coisa do apelido “Ilha da magia”. O Rio de Janeiro tem uma magia. E quem estiver aberto, é capturado por ela. Você chega num dia lindo de Rio de Janeiro, você fala ‘meu Deus, é muito impactante’. Geograficamente, o Rio é muito bonito. As montanhas, os morros, o mar, a Baía de Guanabara. É uma coisa mágica. Eu me utilizo muito da natureza do Rio pra me inspirar, pra compor.
Eu ia na Quinta da Boa Vista, lógico, porque a Tijuca é do lado de São Cristóvão. Minha família ia, piquenique e tal. Eu andava de skate na Quinta da Boa Vista e lá tem o zoológico, que eu já fui e é uma tristeza. É complicado. Mas foi lá que eu acho que eu vi minha primeira girafa, um mix de carinho com horror. Se fosse maior, se fosse um santuário, tudo bem, mas não é. Você tem um mix de sensações, com um leão triste ali.
E minha relação com Floripa é isso que eu estava falando da magia. Acho que a primeira vez foi em 2018. Quando tem mar, eu já penso assim ‘vou amar’. Eu já vou muito aberta. E foi o que aconteceu. E aí, todas as outras vezes que a gente voltou, também. Em 2021 fizemos um show lindo, um teatro lindo, uma galera astral.
E acho que o Rio, como Santa Catarina, são estados muito bolsonaristas. Quando você acha uma galera legal, você pensa ‘poxa, que pessoas legais, resistentes, dentro de um estado conservador’.
De toda forma, Florianópolis é menos conservadora do que o estado em si.
Aqui no Rio também. É mais no estado. A própria capital, tirando os bairros que são mais milicianos, a gente conseguiu, de alguma maneira resistir. Floripa e Rio de Janeiro, capitais, são cidades resistentes a muito horror que são expostas.
Quem está no show é uma galera bacana, resistente, que usa a sua cidadania pra tentar melhorar a cidade. Conheci muito manezinho legal, divertido. E tenho alguns amigos e amigas. E tô muito ansiosa pra ir.
Vamos voltar ao novo álbum, como você chegou nesse conceito do “animal de poder” de cada um, e como isso influenciou a composição das músicas?
Eu gosto de álbuns temáticos. O ‘Climão’ tem um tema, ‘Aos Prantos’ também. Minha cabeça funciona um pouco como de escritora. Quando eu achei o tema, isso facilitou muito. Eu falei ‘opa’ e fui organizando o álbum com esses animais. Tem algumas vinhetas no disco que eu me divirto muito com elas, acho elas importantes também para mostrar como é difícil fazer um disco. Às vezes, você tem 20 músicas, mas só pode entrar 10.
Quando eu fechei o tema dos animais, tudo andou mais fácil. E aí, o Lulu Santos aceitou a participação. Eu e o Tiago, meu parceiro, falamos, ‘vamos fazer uma música pro Lulu Santos’. Foi uma loucura.
Foi toda uma construção pro Lulu Santos. Essa música ‘Zebra’ é o Lulu Santos. Ela é um bicho pop e chique. Uma combinação muito rara e difícil de ter. Mas a zebra é muito popular. Você chega em qualquer lugar do mundo e a zebra é tudo… Está no imaginário infantil, da moda, porque é preto e branco. Mas, ao mesmo tempo, é chique. E o Lulu Santos é essa figura, ele tinha que ser esse bicho.
Tem uma coincidência no show que você fará em Florianópolis: você vai cantar com o ROHMA, cantor e compositor italiano que vive na cidade. A música se chama Kobra, uma adaptação de um clássico italiano, que não está no novo álbum, mas também trata do tema animal.
Pois é. Isso é uma loucura. O ROHMA, a gente já se conhece há um tempo. Adoro ele, a gente é amigo, ele é muito querido. E aí, foi durante a pandemia, ele me chamou para participar dessa música, que muito famosa dos anos 1980, italiana. E a gente pirou, assim. Essa versão que os produtores do disco dele fizeram é maravilhosa. E eu botei minha voz do jeito que eu nunca tinha botado. Tá super aguda e tal.
É muito divertido ter feito isso. E eu já participei do show dele, um show pequeno que ele fez aqui no Rio e em São Paulo. Mas ele ainda nunca participou do meu.
E como ele mora aí, eu falei ‘é agora’. A gente vai cantar Kobra, que é um bicho super polêmico. Tem gente que não gosta nem de olhar. Eu acho um bicho lindo.
Como você, que é uma artista da palhaçaria e faz críticas ao machismo, reagiu ao feminicídio da Julieta Hernándes, logo como isso te impactou?
Eu estava viajando e as notícias foram chegando. Foi muito tenso. No início tudo podia ter acontecido. O atropelamento, a bicicleta. Mas depois, quando a gente soube de detalhes, aí a coisa foi dura. Foi um horror. ‘Feliz ano novo, receba aqui esse horror’. Foi muito puxado.
Eu fiz um show agora em Porto Alegre, e eu até falei: ‘gente, eu vou tratar de ser mais como uma palhaça Jujuba’. Eu fiquei vendo tanto vídeo dela, palhaça, fizeram homenagens tão bonitas. Certa hora pensei ‘não quero ver mais nada de assassinato, nada de horror’, e fiquei vendo a obra dela, o que ela fez pelo Brasil, pelas estradas, com as crianças, com as cidades. Aí eu falei ‘gente, a forma mais bonita de homenagear é imitar de alguma maneira, ‘eu vou tratar de imitá-la’.
E esse último show que eu fiz teve uma hora que eu falei, ‘gente, estou muito palhaça’, palhaça mesmo, que às vezes eu penso ‘ah, hoje estou engraçada, mas nesse show só faltava o nariz’.
Foi uma forma de homenagear, porque é fácil cair no discurso do horror, é importante falar, até pela justiça. Mas também não vamos esquecer que esse foi o pedido das amigas e da família, porque ela era muita luz, então se a gente só ficar falando da coisa sombria, a gente a afasta do lugar que ela merece, que é a luz. Acho que me marcou muito, chorei, sofri, mas vou tratar de imitá-la, para mantê-la na luz, de alguma maneira.