A indústria cinematográfica tem sido, historicamente, dominada por homens. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pela cerimônia do Oscar, não é exceção.
Em quase um século de Oscar, apenas sete mulheres foram indicadas ao prêmio de melhor direção: Lina Wertmüller por “Pasqualino Sete Belezas” (1975); Jane Campion por “O Piano” (1993) e por “Ataque dos Cães” (2022); Sofia Coppola por “Encontros e Desencontros” (2003); Kathryn Bigelow por “Guerra ao Terror” (2009); Greta Gerwig por “Lady Bird: Hora de Voar” (2017); Emerald Fennell por “Bela Vingança” (2021); e Chloé Zhao por “Nomadland: Sobreviver na América” (2021). Apenas três venceram: Bigelow foi a primeira mulher a receber o Oscar pela melhor direção, em 2009, Zhao levou a estatueta em 2021, e Jane Campion em 2022.
Este ensaio se propõe a examinar casos emblemáticos de apagamento de mulheres na categoria de direção do Oscar: Barbra Streisand em 1992 por “O Príncipe das Marés”, Gina Prince-Bythewood em 2023 por “A Mulher Rei”, e Greta Gerwig em 2024, por “Barbie“.
Barbra Streisand – que em 2024 foi homenageada no SAG Awards com o “Life Achievement Award“, prêmio que valoriza realizações de um artista ao longo da vida – é uma figura icônica na indústria do entretenimento, sendo uma das poucas artistas que conquistaram o Emmy, Grammy, Oscar e Tony Award (EGOT). Em 1992, dirigiu “O Príncipe das Marés”, que foi indicado para sete prêmios da Academia, incluindo Melhor Filme, Melhor Ator (Nick Nolte) e Melhor Trilha Sonora Original.
No entanto, Streisand não foi indicada para Melhor Direção, um fato que gerou controvérsia sobre representação na Academia. Sua exclusão da categoria de direção, apesar do sucesso de seu filme, destacou a falta de reconhecimento do trabalho das mulheres na indústria cinematográfica.
Este incidente levantou questões sobre o viés de gênero na Academia e iniciou um debate sobre a necessidade de maior representação feminina.
Avançando para 2023, encontramos um caso semelhante, com Gina Prince-Bythewood, diretora de “A Mulher Rei”. Apesar do amplo reconhecimento crítico e do sucesso de bilheteria do filme, Prince-Bythewood não recebeu nenhuma indicação ao Oscar. Sua ausência na lista de indicados foi vista como um reflexo da contínua exclusão de mulheres negras por organizações de premiações e Hollywood em geral. A falta de reconhecimento de seu trabalho, apesar do sucesso de seu filme, ressalta a persistência do racismo e do sexismo na indústria cinematográfica.
“A Mulher Rei” é um filme que acompanha a história da General Nanisca (Viola Davis), uma Agojie, grupo de elite de guerreiras composto apenas por mulheres que protegiam o reino africano de Daomé nos séculos XVII e XIX. Durante o período, o grupo militar era composto por mulheres que, juntas, combateram os colonizadores franceses, tribos rivais e todos aqueles que tentaram escravizar seu povo e destruir suas terras.
O filme é inspirado em acontecimentos históricos e mostra como a escravidão foi cruel, e como o colonialismo e o comércio de escravos realizado pelos brancos favoreceu as disputas entre gangues rivais e o massacre desses povos.
O filme tem uma forte representatividade ao colocar um exército de guerreiras negras em primeiro plano. A diretora Gina Prince-Bythewood esfarela o padrão do cinema de ação e mostra que abrir as portas para representatividade significa um fôlego criativo e financeiro bem-vindo a Hollywood. A produção é visualmente majestosa e as atuações de Viola Davis e Lashana Lynch (como a ótima Izogie) são um espetáculo à parte, chamando atenção tanto para suas habilidades de luta quanto seu talento com olhares, encarando personagens com fúria palpável e comando, assim como ternura e choque, quando preciso.
Das sete diretoras indicadas ao longo da história do Oscar, apenas uma não é branca (Chloé Zhao). Nenhuma diretora negra foi indicada até agora. A falta de diversidade racial entre as indicadas à direção destaca a necessidade de maior inclusão e representação de diretoras de diferentes origens raciais e étnicas.
A falta de indicações para Greta Gerwig e Margot Robbie no Oscar de 2024 foi uma surpresa para muitos, considerando o sucesso crítico e comercial do filme “Barbie”, e mostra que há ainda muito por que lutar, e muitas críticas ainda a tecer. Gerwig, que dirigiu o filme, e Robbie, que o produziu e estrelou, foram notavelmente esnobadas nas categorias de Melhor Direção e Melhor Atriz, respectivamente. Isso causou uma onda de indignação na internet e entre seus colegas.
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A Associated Press chamou a esnobada de Gerwig de “um dos maiores choques da memória recente”. Alguns fãs descontaram sua frustração em Ken, personagem interpretado por Ryan Gosling. Como apontado pela USA Today, Gosling sendo indicado para ator coadjuvante enquanto Gerwig e Robbie foram deixadas de fora “meio que prova o ponto do filme”, de que o patriarcado segue firme e forte. Gosling, o próprio Ken, disse em um comunicado que “Não há filme Barbie sem Greta Gerwig e Margot Robbie, as duas pessoas mais responsáveis por este filme histórico, celebrado mundialmente”.
O sexismo persistente na indústria cinematográfica pode ter sido um fator, mas isso só contribuiu para o problema, que está na base da questão. Apesar da indicação para melhor filme, os eleitores do Oscar se recusaram a levar o filme baseado em um brinquedo a sério, ignorando o quão inventivo ele é, descartando-o como um filme pipoca de um bilhão de dólares, quando também é uma declaração cultural engraçada e subversiva.
Ele mina os estereótipos sobre as mulheres – com meta-espírito, o personagem de Robbie é chamado de Barbie Estereotipada – mas envolve isso em uma nuvem flutuante e colorida. Os eleitores do Oscar não conseguiram ou não quiseram olhar além dessa superfície para ver o quão substancial o filme é, e como Gerwig o orquestrou meticulosamente.
Mesmo antes das indicações serem anunciadas, havia indícios de que a originalidade de Barbie seria subestimada. Com 10 títulos indicados para melhor filme e apenas cinco vagas para diretores, alguns parecem pertencer à categoria imaginária “se dirigiu sozinho” (observe o padrão: na cerimônia de 1992, em que era palpável o desconforto pela ausência de indicação de Barbra Streisand, a certa altura o comediante e apresentador do evento, Billy Crystal, cantou uma paródia da música “Don’t Rain on My Parade” (“não corte o meu barato”), que é o grande número do musical do filme “Funny Girl: Uma Garota Genial”, estrelando Streisand, e que alavancou ainda mais a carreira da artista e garantiu a ela uma estatueta de Melhor Atriz no Oscar de 1969.
A letra comentava as sete indicações recebidas por “Príncipe das Marés”, e se perguntava (em tradução): “esse filme se autodirigiu?”. A ação arrancou risadas da plateia e um olhar afetuoso de Streisand). Gerwig parece ter sido deslocada por indicados que fizeram filmes considerados menores e mais sóbrios.
A esnobada de Robbie foi um dos maiores choques das indicações ao Oscar deste ano, o que é ainda mais surpreendente com base em uma tendência anterior. Barbie foi o filme de maior bilheteria de 2023 e, dado o quão popular o filme se tornou, Robbie parecia destinada a uma indicação de Melhor Atriz. Não apenas o filme foi altamente lucrativo, mas também teve um desempenho incrivelmente bom, com mensagem forte que ressoou entre o público e a crítica. Conferir às bonecas personalidades fortes foi uma tarefa enorme, que Robbie conseguiu fazer com sucesso. Com sua performance sendo uma das mais comentadas em 2023, parecia inevitável que a Academia fosse reconhecê-la, mas ela foi esnobada na categoria de Melhor Atriz.
A diversidade e a representação não são apenas importantes para a equidade, mas também enriquecem a indústria cinematográfica e a experiência do público. Espero que a Academia e a indústria cinematográfica como um todo levem essas questões a sério e façam as mudanças necessárias para garantir que todos sejam reconhecidos e celebrados por seu talento e trabalho duro.
Afinal, o cinema é uma forma de arte que deve refletir a diversidade e a riqueza da experiência humana. E isso só pode ser alcançado quando todos são incluídos e reconhecidos por suas contribuições.
Além disso, é importante destacar a desvalorização do trabalho exercido por mulheres na indústria cinematográfica. Muitas vezes, o trabalho das mulheres é subestimado ou ignorado, o que contribui para a falta de representação feminina em categorias de destaque, como a de direção. Esta desvalorização é ainda mais acentuada quando se trata de mulheres negras, que enfrentam tanto o sexismo quanto o racismo na indústria.
Em nossa sociedade patriarcal, o trabalho das mulheres, especialmente o trabalho doméstico e de cuidado, é frequentemente desvalorizado ou não reconhecido, mais ainda para as mulheres que estão na base da pirâmide socioeconômica, que enfrentam condições de trabalho precárias, salários baixos e falta de proteção social. Isso pode incluir discriminação baseada em raça, etnia, classe social, orientação sexual, identidade de gênero, deficiência, entre outros fatores.
Os casos de Streisand, Prince-Bythewood e Gerwig ilustram como a desvalorização do trabalho feminino pode ocorrer mesmo nos níveis mais altos de uma indústria. Eles destacam a necessidade de abordar a desigualdade de gênero em todas as áreas da sociedade, desde Hollywood até as comunidades mais marginalizadas.
Portanto, sim, eles convergem na medida em que são exemplos de como o trabalho das mulheres é desvalorizado e como as mulheres são frequentemente excluídas de posições de poder e reconhecimento. No entanto, é importante notar que as experiências de diretoras de Hollywood não são representativas de todas as mulheres, e que as mulheres em diferentes contextos enfrentarão desafios e barreiras únicos. É essencial que continuemos a lutar por igualdade e justiça para todas as mulheres, em todas as áreas da vida.