Duas décadas de Visibilidade Trans: resistindo ao autoritarismo Legislativo e à negligência do Estado
Nos últimos anos, observa-se um crescente aumento do debate anti-trans no Brasil, impulsionado por grupos políticos e religiosos
Em 29 de Janeiro de 2004, um grupo formado por 30 mulheres transexuais e travestis realizaram um feito grandioso para a história dos movimentos sociais no Brasil, ocuparam o Congresso Nacional com o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, com foco no acesso à saúde da população trans e travestis brasileira. O evento ficou marcado como o Dia da Visibilidade Trans e Travesti, sendo celebrado em 2024 com uma grandiosa marcha em Brasília convocando pessoas trans e travestis de todo o país.
Vinte anos depois, travestis e transexuais ocupam novamente o Congresso Nacional, desta vez, como parlamentares eleitas. Em um país onde não existia Política Pública específica para essa população no início dos anos 2000, atualmente se vê um avanço nas políticas, sejam públicas ou partidárias.
A população de travestis e transexuais foi a primeira a ser atacada durante o desgoverno de Jair Bolsonaro. Em sua primeira canetada, retirou todas as diretrizes do Sistema Único de Saúde que possuía abordagem sobre a transexualidade. Retirou financiamentos para o acesso à saúde pública, e incentivou durante o seu mandato com a MP 870/19, começaria a caça aos temas e debates que traziam a abordagem de gênero.
O Governo Bolsonaro foi marcado por políticas de ódio e a ausência de políticas no enfrentamento às violências contra pessoas trans e travestis.
Pode-se afirmar que foi construída uma agenda anti-gênero no país, já que os temas foram retirados ou banidos da educação pública. Destaca-se também a perseguição às professoras e professores que tentam realizar esforços para trazer os debates no cotidiano educacional. Em Santa Catarina, o Projeto de Lei aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (PL 337/2023), de autoria da Deputada antifeminista Ana Campagnolo, visa o monitoramento em salas de aula com o uso de câmeras.
Violências invisíveis na sociedade
Quase véspera do Natal de 2023, uma mulher adentra ao banheiro de um restaurante na Zona Norte de Recife. Na saída do restaurante, um homem questiona a identidade de gênero da mulher, que mal consegue responder e é golpeada com um soco. O agressor acreditou que a cliente era uma mulher trans, e a golpeou, sendo a vítima, uma mulher cis.
Drica Dark Meirelles, ativista trans de Florianópolis, faleceu na noite da virada de ano em Florianópolis. Drica, infelizmente acabou falecendo afogada na Beira Mar Norte. Em um ambiente frequentado por mais de um milhão de pessoas, Drica não foi socorrida, nem pela população, nem por equipes de segurança.
Na segunda semana de Janeiro de 2024, duas mulheres trans e uma cis, moradoras do Rio de Janeiro, sofreram violência corporal, emocional e psicológica, ao serem brutalmente agredidas em uma roda de samba na Lapa (RJ). Em vídeos circulando na internet, seguranças de uma casa noturna aparecem agredindo as duas clientes do estabelecimento. Nariz quebrado, marcas das violências pelos corpos.
Três breves histórias com cenas de violência, morte, exclusão social, e negativa da população em proteger vidas, especialmente de corpos trans. Pessoas trans estão tendo o seu direito à diversão, ao entretenimento e à sociabilidade negado.
Mesmo a primeira vítima não ser uma mulher trans, verifica-se a autorização e a chancela da população, que permite homens agredirem as mulheres, independente da sua identidade de gênero.
Anualmente, a Antra realiza a publicação do Dossiê: Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, e novamente, pelo 15° ano consecutivo, o Brasil é o país mais violento do mundo para as pessoas trans e travestis. Pelo menos 10 pessoas trans se suicidaram e 145 foram assassinadas em 2023, 14 a mais do que um ano atrás, aponta o relatório anual, divulgado nesta segunda-feira (29), Dia da Visibilidade Trans.
Destaca-se que esses números não são oficiais do Estado, são os movimentos sociais que realizam a coleta dessas informações. Infelizmente no Brasil, não se sabe quantas pessoas trans e travestis vivem e sobrevivem aqui cotidianamente.
De todas as violências que acontecem no nosso país contra corpos transgressores às normas societárias, é evidente que existe uma uma certa hierarquia social, pois as formas de violências que ocorrem são múltiplas, em diferentes espaços, e são violências que são autorizadas pela população, sobretudo as que ocorrem a partir do Estado, ao não promover acesso aos serviços educacionais, de saúde pública e de segurança.
No território brasileiro, de acordo com o Atlas da Violência (IPEA, 2021), a violência contra pessoas LGBTQIAPN+ é um fenômeno histórico. Entre os anos de 2011 e 2019, o Disque 100 registrou 1.666 denúncias anuais de violações contra esse grupo.
Ainda, conforme a Antra, as vítimas da violência fatal expressam o gênero feminino, são majoritariamente negras e têm entre 13 e 29 anos. Ao revelar os dados, a associação denuncia a subnotificação dos números dos assassinatos de pessoas travestis e transexuais no Brasil em decorrência da precariedade de dados governamentais.
O aumento da transfobia nas redes sociais
Nos últimos anos, observa-se um crescente aumento do debate anti-trans no Brasil, impulsionado por grupos políticos e religiosos. Essa tendência se manifesta de forma significativa na internet, com a proliferação de páginas e perfis que disseminam conteúdos fascistas.
Leia mais
- Menina de Goiás e o marco temporal do aborto legal
- PL da Gravidez Infantil: um projeto para torturar vítimas de estupro
- Ato do 8M em Florianópolis homenageia luta trans, Palestina e relembra feminicídios
- 8M: Milhares vão marchar em todas as regiões do Brasil no Dia Internacional das Mulheres
- Duas décadas de Visibilidade Trans: resistindo ao autoritarismo Legislativo e à negligência do Estado
Essas plataformas não apenas abordam temas relacionados à transidentidade, mas também incorporam notícias falsas que visam difamar pessoas trans. É importante destacar que esse movimento encontra respaldo não apenas em setores reacionários, mas também obtém apoio fundamentado em vertentes do feminismo autointitulado radical.
A história brasileira é marcada pela violência e exclusão social às pessoas trans e travestis, mas superando o período da Ditadura Militar, nunca antes se viu tantos ataques explícitos e sistemáticos contra a população trans brasileira. Diversas frentes e grupos organizados realizam agressões virtuais e promovem boicotes aos eventos com a temática. Os grupos mais violentos, para além dos linchamentos virtuais, realizam ameaças e perseguições. Tudo isso assistido pela população brasileira.
O discurso feminista radical ocupa espaços, principalmente no meio acadêmico, e coloca em risco a existência, a saúde, a permanência e a segurança de mulheres transgêneres dentro da academia por meio da internet. Discursos que menosprezam ou desacreditam a identidade de mulheres transgêneras agora permeiam espaços que anteriormente imaginávamos serem guiados por uma perspectiva emancipatória.
Essa mudança representa uma corrupção do discurso, introduzindo uma narrativa que se diz radical, mas que não apenas marginaliza, como também coloca em perigo a existência de corpos historicamente marginalizados. Este fenômeno ocorre em um campo de conhecimento essencial para a construção de políticas públicas, assistência social, saúde e com a complexidade multidisciplinar necessária para contemplar as necessidades do coletivo.
Indagamo-nos sobre a persistência da garantia de direitos, humanidade e pluralidade. Como podemos assegurar o tornar-se parte integrante, o pertencimento ético, e como a formação crítica se tornou uma mercadoria nas instituições de ensino superior e nas redes sociais? Este fenômeno tem contribuído para a falta de responsabilidade social na produção de conteúdos e textos que reproduzem o feminismo radical. Além disso, examinamos como essa dinâmica midiática na internet limita o acesso de pessoas transgêneras às universidades públicas e à plena integração na sociedade.
Ao produzir conteúdos que instigam retaliação e ódio, essas narrativas infringem no âmago subjetivo das mulheres transgêneras, reforçando o imaginário de repulsa social em relação aos seus corpos, à sua existência e, mais uma vez, questionando qual é o seu lugar social.
Destaca-se que historicamente o crime da transfobia foi passível de aceitação pela população em geral, e mesmo com a LGBTFOBIA sendo equiparada ao crime de racismo pelo Supremo Tribunal Federal, isso ainda é desconhecido pela população trans e travestis.
A burocratização do sistema judiciário, a escassez de informações acessíveis e as dificuldades de acesso aos espaços públicos e aos mecanismos do Estado são questões que destacam a ausência de compartilhamento de leis e decisões judiciais. Isso evidencia a urgência de promover a educação popular entre a população trans, visando o reconhecimento pleno de seus direitos como cidadãs/cidadãos.
Nas redes sociais, falsas informações seguem sendo consumidas diariamente pela população, difundidas por parlamentares da extrema direita, que fomentam a percepção da necessidade de higienização social através da violência.
Nikolas Ferreira, o deputado mais votado de Minas Gerais, compartilhou em suas redes sociais um vídeo de uma adolescente trans frequentando o banheiro da escola. Compartilhado por milhares de pessoas, o vídeo se tornou viral, assim como a incitação à violência nas pessoas trans, como ocorreu em Recife. Atualmente, o Deputado Federal virou réu pela exposição da adolescente.
Anos de luta e ainda muito mais para conquistar
É inegável que a população trans e travesti brasileira têm avançado nas conquistas de direitos, ainda de forma lenta no legislativo, e de maneira mais no judiciário. É importante destacar que o próprio reconhecimento das identidades trans e travestis no Estado brasileiro é recente, desde 2018. Portanto, estamos falando de uma cidadania regulada, e ainda nova.
Com todas as retiradas de direitos dos Governos Temer e Bolsonaro, a expectativa para uma ampliação do acesso aos direitos era entusiasmada com a eleição de Lula para o seu terceiro mandato como Presidente. Já antes da posse algo chamou a atenção, se o Brasil é o país mais violento do mundo para a população LGBTQIAPN+, por que não conquistamos um Ministério? Durante os dois primeiros mandatos de Lula, assim como o de Dilma Rousseff, as políticas para a população LGBTQIAPN+ ficaram apenas alocados em uma Secretaria Nacional.
No final de 2023, o Brasil introduziu um novo modelo para o documento de Registro Civil (RG). Apesar dos esforços das associações de direitos das pessoas trans e travestis, que solicitaram ao Ministério dos Direitos Humanos a exclusão do nome civil no documento, mantendo apenas o nome social, a proposta foi aprovada, resultando na inclusão de ambos os nomes no registro.
No mesmo período, anunciado pelo Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, os concursos públicos, a partir do Concurso Nacional Unificado, teriam cotas para pessoas trans e travestis, ampliando o acesso ao mercado de trabalho. Publicado em janeiro de 2024, o Edita não traz nenhuma cota específica para pessoas trans, ou seja, o governo simplesmente ignorou a necessidade de cotas para não realizar enfrentamentos com políticos e partidos anti-trans. Portanto, a Secretaria Nacional LGBT+ está de fato atuando?
Desde 2022, estamos no período brasileiro de maior aprovação de Leis anti-trans no país. Já são 77 em vigor em 18 estados brasileiros. Um levantamento da Folha identificou que, somente em 2023, foram apresentados 293 projetos de lei anti-trans no Congresso Nacional.
Para além das vivências trans e travestis serem criminalizadas, excluídas socialmente, violentadas, agredidas, o higienismo social parte das Legislações. Saliento, que estamos falando na retirada de direitos de uma das populações mais violentadas do mundo.
Mesmo com todas as dificuldades encontradas é importante destacar o pioneirismo e a perseverança na luta diária das entidades e dos movimentos sociais que atuam em prol da população trans brasileira. Mesmo com todas as dificuldades e imposições no caminho para a conquista de território e de Políticas Públicas, são essas entidades que realizam ações e cumprem deveres diante de um Estado que se omite, negando a existência e cidadania plenas a essa população.