Desalento público e indignação foi ler a entrevista que a Ministra Cida Gonçalves concedeu à Folha, em Nova York, durante a 68ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW, na sigla em inglês) da Organização das Nações Unidas (ONU). A posição de que “não se quer reduzir mulheres ao aborto”, declarada pela representante do Ministério das Mulheres, só corrobora com o discurso e a agenda moral da extrema direita que vocifera contra o acesso de meninas e mulheres estupradas ao aborto legal no Brasil.
A declaração invisibiliza que, há cerca de duas semanas, o Ministério da Saúde, acovardado pelo fundamentalismo religioso, derrubou depois de quarenta minutos a Norma Técnica 002/2024 que reparava a injustiça publicada pelo governo Bolsonaro, que impunha limite gestacional para a realização do aborto legal no país, fator não previsto na legislação brasileira.
Não pautar o debate público sobre o aborto por temer a reação conservadora é uma grande irresponsabilidade. Que não há força social suficiente para impulsionar essas agendas no Brasil é inquietantemente uma verdade dura. Qual seria o caminho virtuoso? Silenciar-se do debate? Isentar-se da responsabilidade pública sobre o assunto?
Ministra, afirmar que “discutir o aborto só por discutir o aborto é uma irresponsabilidade” implica reduzir a atuação transversal, democrática e corajosa dos movimentos feministas que lutam no Brasil por justiça racial, social e reprodutiva.
Leia mais
- Ministério das Mulheres ou ministério do feminismo branco?
- Atena e Natasha: corpos trans a desafiar o poder na Câmara de Porto Alegre
- Frentes feministas e científicas reagem à PEC 164: ameaças à saúde e direitos reprodutivos
- Projeto de Lei propõe criação do Programa de Atenção Humanizada ao Aborto Legal
- PEC que proíbe abortos previstos em lei pode ser votada na CCJ
O diagnóstico reducionista sobre o aborto também desconsidera o desmonte dos serviços de aborto legal pelo governo Bolsonaro e omite o uso político-religioso do dispositivo de objeção de consciência na classe médica para negar direitos a crianças e mulheres vítimas de violência sexual.
E sobre educação sexual, é neste processo escolar onde crianças e adolescentes passam a identificar seus abusadores. Privar as crianças da educação sexual, que ensina práticas de identificação de abuso e violências, é corroborar indiretamente com a pedofilia.
É crítico que um pouco antes desta declaração que flerta com a antessala do conservadorismo, o Ministério das Mulheres tenha lançado a campanha “Brasil Sem Misoginia”, desconsiderando que o aborto criminalizado também é uma prática de misoginia de Estado.
As posições do atual governo para enfrentar e reconhecer a violência de gênero e raça ignora que estes elementos estão implícitos nas consequências sociais da criminalização do aborto, afetando milhares de meninas e mulheres vítimas desta misoginia estatal que precisa ser amplo objeto de combate pelo Ministério.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, o ano de 2022 testemunhou o maior índice de estupros já registrado, totalizando aproximadamente 75 mil casos. Alarmantemente, crianças e adolescentes com menos de 14 anos são as principais vítimas, representando 61,4% do total, o que equivale a 40.659 vítimas em apenas um ano.
Nesse período, foram registrados 14.265 nascidos vivos de meninas com menos de 14 anos. Se considerarmos a série histórica do Datasus, de 1994 a 2022, esse número é ainda maior: em média 25 mil crianças deram à luz a nascidos vivos ao ano.
De acordo com a legislação brasileira, essas crianças teriam direito ao aborto legal, uma vez que são consideradas incapazes de consentir. Diante dessa realidade, quando o Estado garantirá o exercício desse direito? Se não hoje, quando, Ministra?