O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vai investigar duas juízas e um desembargador que atuaram no caso da menina de 12 anos do Piauí que, gravida pela segunda vez após vários estupros, teve o aborto negado, apesar de ser um direito garantido pelo Código Penal desde 1940. Sob relatoria do corregedor Luis Felipe Salomão, por unanimidade o CNJ determinou a instauração de um processo administrativo disciplinar após identificar indícios de negligência e de omissão no processo.

Salomão analisou as condutas das juízas Maria Luiza de Moura Mello e Elfrida Costa Belleza, titulares de varas da Infância e Juventude de Teresina, e do desembargador José James Gomes Pereira, do Tribunal de Justiça do Piauí. Os três serão mantidos nos cargos durante a investigação.

“A decisão é um alerta de que o Judiciário não pode mais seguir impondo barreiras de acesso ao aborto legal”, analisa Amanda Nunes, advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, uma das organizações que enviaram pedido de providências a Salomão em fevereiro deste ano.

A denúncia veio a público após reportagem do Portal Catarinas e The Intercept Brasil revelar a nomeação de uma defensora pública como curadora para defender o feto contra os direitos da criança estuprada e grávida.

Além do pedido de providências enviado por organizações do campo da justiça reprodutiva, a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL/SP) enviou um ofício ao CNJ para que o órgão se manifeste contrariamente à nomeação de defensores para o feto em casos como o do Piauí. Também, a presidenta do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi  Hoffmann, e as deputadas do partido, Erika Kokay (DF), Luizianne Lins (CE), Natalia Bonavides (RN), Reginete Bispo (RS) e Ana Cristina Pimentel (MG), enviaram pedido de providências ao CNJ.

A decisão pela abertura da investigação sustenta que a manutenção da segunda gestação foi marcada por uma série de negligências em relação à criança, omissão na concretização do direito ao aborto legal e perpetuação do sofrimento da menina.

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Trecho do voto do corregedor Luis Felipe Salomão.

“Como defensoras de direitos humanos, temos observado que o Judiciário, em muitos casos, se recusa a reconhecer o aborto como um procedimento de saúde importante para a dignidade de meninas, mulheres e pessoas gestantes, fixando limites não previstos em lei, desconsiderando a autonomia delas ou utilizando de institutos legais e processuais para postergar e subjugar o acesso”, aponta Nunes.

Na decisão, Salomão destaca que a realização do aborto não requer autorização judicial, quando se enquadra nos casos em que é legal no país, como violência sexual, risco à vida da gestante e feto anencéfalo. Ele reiterou que, nesses casos, o atendimento médico e psicológico deve ocorrer de forma mais breve possível.

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Trecho do voto do corregedor Luis Felipe Salomão.

“O mais importante é que reconhece como violência institucional, passível de ser caracterizada como tortura ou tratamento cruel, desumano e degradante, qualquer ação ou omissão de magistrados/as que implique na demora ou negativa de garantia do direito, já que esses atos significam impor sofrimento para meninas, mulheres e outras pessoas grávidas”, ressalta a advogada da Anis.

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Trecho do voto do corregedor Luis Felipe Salomão.

Relembre o caso

Ao chegar ao hospital em 9 de setembro de 2022, com cerca de 12 semanas de gestação, a menina, à época com 11 anos, deixou claro que queria fazer o aborto legal, mas foi liberada sem acessar o procedimento. Ela já havia sido obrigada a manter uma gravidez, resultante de estupro, e submetida ao parto e maternidade. 

Em 6 de outubro, a juíza Elfrida Costa Belleza nomeou uma defensora pública para representar os interesses do feto, a pedido da defensoria pública. No dia seguinte, Maria Luiza de Moura Mello e Freitas, juíza responsável pelo caso, proibiu a publicação de notícias sobre o processo no estado, também a pedido da defensoria. A juíza atua como juíza auxiliar no Tribunal Regional Eleitoral e, por conta das eleições, Belleza assumiu as determinações a partir daquela semana.

Ainda que não seja requisito legal para a realização do procedimento nos casos em que o aborto é permitido, um alvará autorizando o procedimento foi expedido em 28 de outubro pela juíza Belleza. A decisão, porém, foi suspensa pelo desembargador Pereira, em 12 de dezembro, a pedido da mãe da menina e da defensora do feto. A mãe disse ao Catarinas e The Intercept Brasil que desistiu do procedimento porque uma médica teria afirmado que a menina corria risco de vida se realizasse o aborto. No entanto, em casos de gravidez infantil, o aborto é mais seguro do que o parto.

Após a constatação de que a menina sofria estupros recorrentes, ela foi acolhida em um abrigo. A denúncia do caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), apontou “evidências de automutilação e outros sintomas de efeitos na saúde mental da menina, sem clareza quanto ao atendimento médico recebido”.

O caso veio a público em setembro de 2022, em uma reportagem da Folha de São Paulo. Em janeiro deste ano, Catarinas e The Intercept Brasil revelaram a nomeação da curadora para defender o feto. Organizações da sociedade civil tentaram garantir o direito da menina ao aborto, cobrando respostas oficiais dos órgãos do estado.
Em março, a menina pariu. Um exame de DNA solicitado pela Polícia Civil do Piauí concluiu que o estupro que resultou na gestação foi realizado pelo tio da menina, assim como a violência que levou à primeira gravidez.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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