Correção: 1º de fevereiro, 16h15min
Uma versão anterior deste texto afirmava que Maria Luiza de Moura Mello e Freitas, primeira juíza responsável pelo caso da menina, nomeou a curadora para o feto. Na verdade, a nomeação foi feita pela juíza Elfrida Costa Belleza, que a estava substituindo. O texto foi atualizado ainda com informações de uma nota enviada pelas magistradas nesta data.

Uma criança de 12 anos, grávida pela segunda vez em um ano após vários estupros, está sendo mantida em um abrigo em Teresina há quatro meses. Ela deixou claro que queria o aborto legal ao ser levada ao hospital, com cerca de 12 semanas de gestação, mas foi liberada sem fazer o procedimento. Hoje, a menina está com o filho de 1 ano no colo e na 28ª semana de gravidez – segundo uma conselheira tutelar, ela teria tentado suicídio. 

Em 6 de outubro do ano passado, a juíza Elfrida Costa Belleza, de Teresina, nomeou uma defensora pública para representar os interesses do feto, a pedido da defensoria. No dia seguinte, Maria Luiza de Moura Mello e Freitas, juíza responsável pelo caso, proibiu a publicação de notícias sobre o processo no estado, também a pedido da defensoria. Freitas atua como juíza auxiliar no Tribunal Regional Eleitoral e, por conta das eleições, Belleza assumiu as determinações a partir daquela semana.

A nomeação de um curador para o “nascituro” está prevista no Estatuto do Nascituro, projeto de lei proposto por deputados conservadores que quase entrou na pauta de votação na Câmara no final do ano passado. Discutido há mais de 15 anos, o estatuto tornaria o aborto ilegal até em casos de estupro de crianças. Além de não estar em vigor, o estatuto não tem base legal diante da Constituição e do Código de Processo Civil, que asseguram que apenas as pessoas nascidas com vida podem ter direitos e deveres plenos na sociedade. 

“A defensoria não está atuando na proteção da criança, cumprindo o Estatuto da Criança e do Adolescente, e está criando essa anomalia”, criticou a advogada Beatriz Galli, do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres e assessora do Ipas, duas das 10 organizações que denunciaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, a CIDH.

“A gente não tem previsto que o direito à vida começa desde a concepção e que o nascituro teria os mesmos direitos de uma criança nascida. É bastante preocupante esse precedente”. 

Ainda que não seja requisito legal para a realização do procedimento, já que o aborto em casos de estupro e risco à vida da mãe já é permitido pela lei brasileira, um alvará autorizando o procedimento  foi expedido em 28 de outubro pela juíza Elfrida Costa Belleza, da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Teresina. A decisão, porém, foi suspensa pelo desembargador José James Gomes Pereira, em 12 de dezembro, a pedido da mãe da menina e da defensora do feto. “O direito está previsto no Código Penal desde 1940, então não tem como ser revogado com uma sentença judicial”, explicou Galli.

Mesmo ciente de que a gravidez da menina é decorrente de estupro e oferece risco à sua vida, o desembargador argumentou contra o aborto ao revogar a autorização para o procedimento. “Uma intervenção médica destinada à retirada do feto do útero materno pode representar riscos ainda maiores tanto à vida da paciente quanto à da criança em gestação (que, a meu ver, já atingiu formação suficiente para eventual sobrevida após o nascimento)”, escreveu Pereira. “Uma intervenção médica, a esta altura, corresponderia a um verdadeiro parto, não havendo como se autorizar a realização do aborto”. 

Rosemary Farias, advogada, integrante da Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio do Piauí e do Coletivo Advocacia Popular Piauiense, questiona o fato de a defensoria ter atuado em duas frentes antagônicas: “A tese vencedora foi a da defensora que atuou pelos interesses do nascituro, tanto que foi revogada a decisão. Por que a defensoria não atuou de forma a garantir o interesse dessa criança, conforme o ordenamento jurídico nos permite?”.

Na decisão, Pereira citou um relatório psicológico que apontou que a menina consentiu em manter a gravidez para entregar o recém-nascido para adoção. “A vítima mostrou-se equilibrada emocionalmente apresentando uma linguagem clara, objetiva e colaborativa. Durante o atendimento a adolescente relatou o desejo de continuidade da gravidez e de entregar a criança para adoção, trazendo a fala: ‘Não quero abortar’ e que a ideia de abortar a criança traz muito sofrimento”.

Três pessoas ligadas ao caso, no entanto, contestam o argumento e afirmam que a menina está abalada psicologicamente. Em 14 de setembro, após a constatação de que ela sofria estupros recorrentes, a criança foi acolhida no abrigo, onde passou a ser medicada, segundo a conselheira tutelar Renata Bezerra. “Percebi que a menina estava sendo dopada e questionei por que ela estava tomando medicação. As funcionárias responderam que ela havia tentado se matar. Eu perguntei à menina, e ela disse que não sabia por que estava tomando a medicação”, me contou a conselheira. 

A advogada Jéssica Lima Rocha, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Piauí, também disse ter encontrado uma situação de estresse ao ir até o abrigo conversar com a menina.

“Essa criança estava abraçada com uma boneca, se balançando de cabeça para baixo. Pouco ou nada ouvia do que eu falei ou do que eu tentei falar”.

Segundo o presidente do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, André Santos, a menina teve uma crise de ansiedade ao saber que os pais não aprovaram o aborto e precisou de medicação. “Ela trata o bebê [filho de 1 ano] como boneca, isso choca a gente. São tantos direitos violados, é um crime institucional. O Judiciário não fala, a Secretaria de Saúde não fala, ninguém fala sobre a situação, porque querem esconder a omissão do estado. Quem está sendo prejudicada é a criança, que tem prioridade absoluta”, afirmou.

Os relatos sobre o estado da menina são contemplados na denúncia feita à CIDH. Nela, afirma-se que há “evidências de automutilação e outros sintomas de efeitos na saúde mental da menina, sem clareza quanto ao atendimento médico recebido”. Segundo a conselheira tutelar Renata Bezerra, a criança precisou ser medicada para ansiedade por algumas semanas, mas já parou de tomar os remédios.

Procurada, a assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí informou que não se manifesta sobre o teor das decisões dos juízes ou desembargadores, ressaltando que, segundo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, os profissionais devem se manifestar apenas nos autos processuais.

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Bichinho de pelúcia seca no quintal da criança sobrevivente de estupro. Foto: Renato Andrade/Folhapress.

Suspeita de exploração sexual

Na última sexta-feira, dia 20, dois suspeitos de estuprarem a criança foram presos preventivamente. Um deles é o tio da menina, apontado pelo exame de DNA como responsável pela primeira gravidez. O segundo preso é um vizinho da avó paterna da menina.

Com ou sem o aborto, a polícia irá recolher o material genético necessário para cruzar com o dos acusados, que negam o crime. “Os presos podem ser pais da criança da segunda gravidez ou não, mas que eles estupraram a vítima, isso é certo. Caso não seja um desses dois acusados, significa que houve um terceiro”, me afirmou a delegada responsável.

A menina mora na zona rural de Teresina com a avó paterna, o tio e o pai – que, segundo a delegada, está afastado da mãe em cumprimento a uma medida protetiva por ter praticado violência doméstica contra ela.

“A vítima morava dentro do covil. Não estou acusando a avó, mas era muito cômodo para o acusado ficar ali. E a família, embora suspeitasse, não denunciava, porque todo mundo ali era parente. Foi preciso a vítima engravidar novamente para virem à tona todos os abusos”.

Na avaliação da delegada, há sinais de exploração sexual pelo grau de vulnerabilidade social e econômica que contextualiza os frequentes abusos. “Uma vítima vulnerável socialmente, sem teto, porque morava na casa da avó, não havia sustento para ela, vira presa fácil. ‘Te dou um pacote de leite’, e ali, ela muita nova, já com um filho no colo, você imagina a dificuldade”, presumiu Vidal.

Médicos teriam tentado barrar aborto

Quando chegou ao hospital acompanhada da conselheira tutelar, em 9 de setembro, a menina expressou o desejo de interromper a gravidez porque queria voltar a estudar. Ela, que completou 12 anos três dias depois, deixou a escola no quinto ano para cuidar do primeiro filho, fruto de outro estupro. 

“Na hora que [o teste de gravidez] deu positivo, ela falou: ‘Tia, me tira dessa situação, como eu faço para sair dessa situação?’ Eu falei com a médica, e ela disse: ‘Você sabe que existe aborto legal? Basta a vítima ou um dos membros da família querer, ou o pai ou a mãe’. Quando eu mandei buscar o pai, a médica mudou de ideia e disse que a menina teria que passar por sessões com uma psicóloga, com não sei quem, para fazer tudo legal”, relatou a conselheira.

Em conversa com o Catarinas e o Intercept, a mãe da menina afirmou que desistiu de autorizar o aborto por conta da fala de uma médica da Maternidade Dona Evangelina Rosa. “A médica do serviço falou para nós que, se ela abortasse essa criança, poderia morrer no procedimento”, disse a mãe, que está convencida a entregar o bebê à adoção após o nascimento. “A gente optou por continuar com a gravidez para não acontecer o pior com ela”.

Em 3 de novembro, após a autorização para o aborto ser derrubada, o defensor que representa a menina e seu pai teve uma conversa presencial com ele, que reiterou a decisão de realizar o aborto. No mesmo dia, por meio de videochamada “informal”, segundo o defensor apontou em documento a que tivemos acesso, a criança manifestou ao pai e ao defensor o desejo de interromper a gestação. 

Acionado pelo defensor, o promotor Thiago Belchior ficou responsável por conduzir a menina ao Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual para realização do aborto. Mas, em 8 de novembro, ela teria manifestado uma mudança de opinião na presença de pessoas do abrigo e de Belchior. “Acreditamos que o caso foi solucionado, uma vez que a juíza proferiu sentença, contudo, a vontade da adolescente modificou, e, a gravidez não foi interrompida”, escreveu o defensor público em documento a que tivemos acesso. 

O pai me contou que foi persuadido a assinar um documento desautorizando o procedimento – e que a médica que atendeu a menina teria ido ao abrigo para convencê-la a desistir do aborto. “A médica me induziu, dizendo que a menina [já] tinha um filho, que se ela aguentou, poderia ter outro”, comentou. “Depois que falaram com ela, ela disse: ‘Não, papai, eu vou ter o bebê’. No início, ela disse que não queria a gravidez, que queria estudar. Aí passou dois meses, três meses, cinco meses. Tem muita gente envolvida para que ela continue com a gravidez”.

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A casa onde a menina vivia em Teresina antes de ser estuprada. Foto: Renato Andrade/Folhapress.

A advogada Jéssica Lima Rocha ainda suspeita que a igreja também pode ter tido um papel na mudança da vontade da menina. “Esse abrigo é católico, cuidado por freiras. E, obviamente, a gente já compreende: não dá pra ter um caso desse sendo acolhido por um abrigo religioso”.

Desde que o caso veio a público, organizações da sociedade civil tentam garantir o direito da menina ao aborto, cobrando respostas oficiais dos órgãos do estado. Diante da falta de ação, em 3 de dezembro, foi feita uma comunicação ao Ministério Público Federal denunciando o contexto das violações institucionais. Entramos em contato com o MPF para saber do andamento do caso, mas não obtivemos resposta até o fechamento da reportagem.

Procurado, o Ministério Público do Piauí informou que a “eventual coação dos médicos” está sendo analisada pela Promotoria da Saúde, e “estão sendo adotadas as providências cabíveis para assegurar à adolescente a garantia da manifestação de sua vontade, bem como todas as outras medidas de proteção previstas no ECA”, referindo-se ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 

A assessoria de imprensa da Maternidade Evangelina Rosa afirmou que qualquer posicionamento partiria da Secretaria de Saúde do Estado. Por sua vez, a Sesapi afirmou estar “colaborando com o caso, que corre em segredo de justiça, e dará uma resposta definitiva assim que concluir toda a análise médica e jurídica”.

Já a Defensoria Pública do Estado do Piauí assegurou atender a menina desde que foi informada sobre o caso e ter conseguido uma decisão judicial determinando a realização do aborto. “Após recurso, houve decisão da magistrada mantendo a decisão que determinou a interrupção [da gravidez], procedimento que não foi realizado pelo serviço médico”, comunicou. A instituição afirmou ainda que a nomeação de uma defensora exclusiva para o feto “aconteceu no trâmite processual, com o deferimento do Juízo de pedido em audiência”.

O órgão se esquivou do pedido que fez à justiça para que o caso não fosse coberto por veículos de imprensa, resumindo-se a dizer ser notório que, “em regra, o processo deve ser público para quem não faz parte dele, porém existem hipóteses constitucionais e legais de mitigação desta publicidade”.

Em nota enviada em 1ª de fevereiro, as juízas explicaram: “Em virtude de um acúmulo de funções da titular da 1ª Vara, Juíza Maria Luiza de Moura Mello e Freitas, como juíza auxiliar da Corregedoria do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) em ano eleitoral, os demais atos praticados no processo ocorreram sob a responsabilidade da Juíza Elfrida Costa Belleza Silva, titular da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Teresina. Portanto, a determinação para curadoria especial e todas as etapas subsequentes foram de determinação da magistrada Elfrida Costa Belleza”.

As magistradas escreveram ainda que “não houve até aqui nenhum pedido de Providência referente ao ABORTO”. Contudo, documentos da Defensoria Pública do Piauí a que tivemos acesso dão conta de que, em 28 de outubro, foi proferida uma sentença que “julgou procedente o pedido para reconhecer a situação da adolescente enquadrada no art. 5°, inc. III, da C.F. [Constituição Federal] c/c o artigo 128, inciso II, do Código Penal”. Os artigo citados estipulam, respectivamente, que ninguém pode ser submetido à tortura ou a comportamentos degradantes e que vítimas de estupro têm direito ao aborto legal. Em seguida, menciona-se a necessidade de respeito à Portaria 2.561/2020, que cria regras para a autorização do procedimento.

Colaboração: Daniela Valenga, Jess Carvalho e Kelly Ribeiro.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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