Num contexto de crescente preocupação com os direitos reprodutivos, organizações feministas brasileiras dirigem-se ao Ministério das Mulheres para abertura de diálogo. Em uma carta aberta, a coalizão destaca que a questão do aborto deve ser abordada dentro de uma política ampla de saúde sexual e reprodutiva, enfatizando a necessidade urgente de revisão de posicionamentos e discussões sobre o tema.
O apelo surge após entrevista recente da Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, à Folha de São Paulo, durante a 68ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher da Organização das Nações Unidas (ONU). As declarações provocaram reflexões e questionamentos sobre a postura do governo em relação ao aborto legal.
Na entrevista, Gonçalves expressou sua visão sobre as dificuldades enfrentadas pelas vítimas de estupro para acessarem o aborto legal, afirmando que a ênfase deveria ser na disponibilidade da contracepção de emergência. Outro destaque foi a resposta “não se quer reduzir mulheres ao aborto, educação sexual”, quando questionada sobre a escola ser um espaço para esse debate.
Com um histórico em defesa da Justiça Reprodutiva — conceito que abrange o direito à maternidade livre de coerção e com plenas garantias de direitos — as organizações têm mantido uma postura firme, focando na urgente necessidade de reconhecimento do direito de escolha pela interrupção da gravidez.
Desde a década de 1980, lutam pela garantia de atenção de qualidade ao aborto previsto no marco legal brasileiro, baseando seus argumentos no Código Penal de 1940, na Constituição de 1988 e nas diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Com base nesses referenciais exigimos, historicamente, garantias de acesso ao cuidado de forma segura, digna e equânime a todas as pessoas que recorrem ao SUS para interromper uma gestação. Parte dessas garantias é a abertura para o debate democrático sobre a questão, de modo a superar entraves, mitos e desinformação”, afirmam.
Além disso, apontam para os desafios enfrentados no Brasil, onde os avanços na discussão sobre o reconhecimento do direito ao aborto têm sido limitados. Recentemente, casos de ataques a serviços de aborto nos casos legais, como no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, e a sanção da lei 22.537/24, em Goiás, ilustram a fragilidade das conquistas.
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“A partir desses pontos e reconhecendo a relevância de sua atuação ministerial comprometida com a garantia dos direitos de mulheres e meninas, gostaríamos de abrir um espaço de diálogo com o Ministério das Mulheres, e com a Ministra, na confiança de que coincidimos na defesa de uma agenda de vida e futuro dignos e justos para as mulheres e todas as pessoas que gestam”, dizem em trecho da carta.
Por fim, enfatizam que mais de 50% da população brasileira é contra a criminalização do aborto, demonstrando um apoio significativo à descriminalização, inclusive entre grupos religiosos.
Em resumo, as organizações feministas destacam a importância de uma abordagem abrangente e inclusiva em relação ao aborto legal, com foco especial em mulheres, meninas, pessoas transmasculinas e não binárias. “A quem o Estado deve o direito de acesso ao planejamento reprodutivo, inclusive ao aborto legal, para que possam decidir sobre suas vidas reprodutivas e o futuro de suas famílias”, destacam.
Também exigem do Estado uma postura democrática e participativa no debate público sobre o assunto, ressaltando a relevância da educação para o pleno desenvolvimento da pessoa. Isso inclui a promoção de uma cultura de não violência e a vivência da sexualidade como um exercício de liberdade responsável, com respeito à diversidade.
Argumentam ainda que a laicidade do Estado deve prevalecer no debate público sobre o tema, evitando retrocessos e imposições baseadas em visões ultraconservadoras.
Assinam: Anis – Instituto de Bioética, Campanha Nem Presa Nem Morta, Católicas pelo Direito de Decidir
Centro Feminista de Estudos e Assessoria – Cfemea, Cidadania Estudo Pesquisa Informação Ação – Cepia
Cladem Brasil, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular,
Criola, Grupo Curumim, Portal Catarinas, Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e Rede de Desenvolvimento Humano – Redeh.
Fizemos uma síntese de pontos de argumentação:
– Os feminismos brasileiros enfatizam que a questão do aborto não deve ser tratada isoladamente, mas como parte de uma política ampla de saúde sexual e reprodutiva, ressaltando a necessidade de avanços na discussão sobre o reconhecimento desse direito, à luz dos exemplos de outros países da região.
– A objeção de consciência não pode limitar o acesso aos métodos contraceptivos, que são essenciais na prevenção de gravidezes indesejadas. Para assegurar esse acesso, o governo deve fornecer orientação e promover uma política de saúde sexual e reprodutiva inclusiva.
– Existe uma preocupação com os ataques de grupos ultraconservadores e de extrema direita às poucas exceções em que a interrupção da gestação é permitida no Brasil, destacando o risco para os serviços que oferecem acesso ao aborto nos casos legais.
– Apesar dos avanços normativos desde 1999, há retrocessos em termos de melhores práticas para pessoas que buscam cuidado em aborto pelo SUS, evidenciando a necessidade de políticas públicas robustas para garantir o direito ao aborto nos casos previstos em lei.
– O debate sobre o aborto é uma questão de direito e de saúde pública, entretanto, grupos religiosos de extrema direita têm impedido uma discussão pública consistente sobre o tema, o que exige uma postura democrática e participativa do governo.
– Mais de 50% da população brasileira é contra a criminalização do aborto, evidenciando um apoio significativo à descriminalização, inclusive entre aqueles que declaram ter fé religiosa.
– É dever do Estado assegurar o direito à educação para o pleno desenvolvimento da pessoa, incluindo a preparação para uma cultura da não violência e da vivência da sexualidade como exercício de liberdade responsável, com respeito às diversidades.