A posição contrária à prisão de mulheres que praticam aborto vem crescendo no Brasil e é maioria inclusive entre católicos e evangélicos. É o que aponta a primeira fase da pesquisa realizada pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), em parceira com o Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês – Sexuality Policy Watch Brasil) e o Centro de Estudos de Opinião Pública (CESOP/Unicamp). A análise foi feita a partir de dados do Instituto da Democracia, coletados entre 2018 e 2023, considerando as respostas à pergunta “você é ou não a favor que mulheres que abortam sejam presas?”. 

O questionamento só começou a ser feito pelos institutos de pesquisa de opinião em 2018, como resultado da pressão e reivindicação dos movimentos de mulheres e feministas. Para Jolúzia Batista, articuladora política do Cfemea, a pergunta é estratégica para avançar no debate sobre o tema.

“Essa pergunta traz maior complexidade ao tema do aborto, tirando o foco do moralismo e dos estigmas que historicamente permeiam esse debate”, destaca.

As organizações se debruçaram sobre o posicionamento de cada segmento da sociedade, separados por raça, faixa etária, religião, sexo/gênero e escolaridade. A análise aponta que as opiniões favoráveis à criminalização do aborto não sofreram grandes variações ao longo do tempo, e sempre foram menores que as posições contrárias à prisão. Segundo o relatório da pesquisa, isso revela “um elevado grau de empatia com essas pessoas que decidem interromper uma gestação não planejada” por parte da população e vai “na contramão do que é defendido pelos conservadores ‘pró-vida’ em seus discursos no Congresso”. 

“Quando os dados são recortados pela religião das e dos entrevistadas(os), nos últimos dois anos (2022-2023), também se registra uma leve tendência de crescimento na posição contrária à prisão de mulheres que interrompam a gravidez em todos os subgrupos, inclusive entre evangélicos. É importante destacar que, nos últimos dois anos, em nenhum dos subgrupos religiosos considerados a porcentagem de respondentes manifestando repúdio à prisão/empatia com as mulheres foi inferior a 50%”, diz o relatório. 

Mobilização de católicas e evangélicas pela descriminalização

Enquanto políticos que se definem como “defensores dos valores cristãos” pautam a criminalização, mulheres evangélicas e católicas têm se dedicado cada vez mais ao tema da justiça reprodutiva dentro de suas organizações, com o objetivo de oferecer práticas de acolhimento a pessoas que passaram por um aborto espontâneo ou que tenham realizado o procedimento. 

No 28 de setembro, Dia de Luta Pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe, a Rede de Mulheres Negras Evangélicas lançou um mini guia intitulado “Meu Corpo é Templo: Práticas de Acolhimento a Pessoas de Fé”. Escrito pela cientista social e colunista do Catarinas, Simony dos Anjos, o material contém dois capítulos que abordam dados e questões cruciais relacionadas à discussão da descriminalização do aborto, bem como estratégias para o acolhimento dentro das igrejas.

Também em alusão à data, a ONG feminista Católicas pelo Direito de Decidir lançou uma campanha com depoimentos de profissionais de saúde e ativistas latino-americanas, residentes em países onde o procedimento do aborto foi legalizado ou descriminalizado. “Mensagem ao Povo Brasileiro” traz os impactos positivos da descriminalização do aborto em Colômbia, México e Argentina, e aborda a diminuição de mortes e o aumento da segurança para as pessoas que optam pelo procedimento. 

Em entrevista ao Catarinas, Gisele Pereira, coordenadora geral da Católicas pelo Direito de Decidir, cita os dados da Pesquisa Nacional do Aborto, de 2021, ao responder por que a defesa do aborto legal e do direito de decidir também é uma pauta das mulheres católicas. Segundo o levantamento, a maioria das mulheres que abortam no Brasil é formada por mulheres cristãs – católicas e evangélicas. 

“Essas mulheres, muitas delas, são mães e recorrem ao aborto por diversos motivos que são legítimos e que precisam ser acolhidos e garantida a sua realização com segurança. É necessário respeitar a vontade dessas mulheres de planejarem seus projetos de vida, que inclui ter ou não filhos e também quando e como exercer sua maternidade”, diz Pereira.   

Contra-ataque à ADPF 442

A campanha da Católicas pelo Direito de Decidir também levanta as discussões sobre a ADPF 442, que propõe a descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação. A ação aguarda nova data para votação no Supremo Tribunal Federal, após pedido de destaque do ministro Roberto Barroso. Com o objetivo de contra-atacar o julgamento, um requerimento de urgência foi aprovado para a votação do projeto de lei que cria o Estatuto do Nascituro na Câmara dos Deputados. O pedido foi feito pela deputada bolsonarista Chris Tonietto (PL-RJ), que se identifica como católica e diz usar a religião como parâmetro nas proposições de leis.

“É uma situação grave porque desrespeita a Constituição em vários sentidos, dentre eles a laicidade do Estado e o reconhecimento da existência de 3 poderes para garantir os direitos assegurados pela constituição”, avalia Pereira. 

A coordenadora reforça que a tentativa de criminalização do aborto no Brasil contraria orientações da Organização Mundial da Saúde, da Organização das Nações Unidas, e acordos internacionais, como a Conferência de População e Desenvolvimento de Cairo em 1994, com os quais o Brasil se comprometeu. Ela também destaca que dados científicos consistentes evidenciam o quanto o aborto é uma prática muito próxima a todas as mulheres e que a descriminalização e legalização é a melhor resposta para uma tragédia social totalmente evitável. 

“O aborto inseguro mata mulheres e pessoas com capacidade de gestar ou compromete a saúde deixando sequelas temporárias ou permanentes. O que queremos é apenas que os nossos direitos humanos sejam respeitados e, principalmente, garantidos pelo Estado”, defende. 

A opinião do Brasil em relação a outros países

A primeira fase da pesquisa realizada por Cfemea, SPW e CESOP/Unicamp traz ainda a opinião da população brasileira em relação a outros países do mundo. Neste caso, os dados analisados fazem parte de uma série de pesquisas feitas pelo Instituto Ipsos entre 2014 e 2021. As organizações identificaram uma evolução da opinião pública brasileira favorável ao direito ao aborto, posição que cresceu 11 pontos percentuais no período investigado.

O material traz considerações conceituais e metodológicas acerca das pesquisas analisadas e destaca que os resultados apresentados neste primeiro relatório devem ser lidos com cuidado e precisam levar em conta que eventuais mudanças de percepção, seja numa direção ou em outra, demoram a acontecer. Ainda de acordo com as organizações, na próxima fase serão detalhados outros aspectos revelados pelas pesquisas de opinião, abarcando um período maior de observação, com início em 1993. 

Confira o relatório da primeira fase da pesquisa aqui.

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