Eu me tornei ativista pela legalização do aborto por volta de 2016, quando dei à luz minha segunda filha. Os movimentos por justiça reprodutiva são muito sérios, com embasamento em pesquisas científicas e sociais de alta qualidade. Geralmente, quando escrevo sobre esse tema, me baseio em tantos dados disponíveis de saúde pública, processos de legalização em outros países e como eles resultam em políticas de saúde pública sérias, protetivas e promotoras de direitos humanos e sociais a mulheres, meninas e pessoas que gestam.

Com a aproximação do julgamento da ADPF 442, que versa sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana, decidi fazer um relato pessoal, sobretudo da perspectiva de uma mulher evangélica, do porquê defendo a legalização do aborto no Brasil e no mundo. Em 2016 eu passei por uma gestação de alto risco. Eu queria muito essa filha, assim como quis muito o primeiro. Por conta de complicações de saúde, fiquei internada por meses no Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

As maternidades do SUS acolhem diversos casos, inclusive de abortos legais. Eu conheci Joana*, uma mulher grávida de 8 meses, fazíamos os exames de cardiotocografia (verificação de batimentos cardíacos do feto) juntas. Seu bebê tinha um nome: João*. Eu não sabia da condição dela, conversávamos e reclamávamos do mal-estar dos últimos momentos de gestação, até que um dia a vi chorar muito, copiosamente. Entrei em seu quarto e uma outra paciente disse: ela sofre muito com essa situação.

Descobri que situação era: seu filho tinha anencefalia e ela havia buscado por autorização judicial para o aborto. O judiciário havia demorado muito e quando ela conseguiu a autorização, os médicos disseram que ela não poderia interromper a gestação – informação que depois descobri não ser verdadeira. Bem, Joana era forçada a conviver com mulheres que sairiam com bebês saudáveis em seus colos, com chás de bebês marcados, balões e flores no quarto.

Ela deu um nome ao filho, ouviu seu coração todos os dias, juntamente com as demais mães. Quando Joana deu à luz, João viveu três minutos. Ela foi encaminhada para o corredor das puérperas, juntamente com as demais mulheres e recém-nascidos. Aquilo mexeu demais comigo. Uma mulher que sofria demais pela futura perda de um bebê, que estava triste com essa condição, era torturada todos os dias na maternidade, por ser obrigada a conviver com mães e bebês. Ela, que poderia sair de uma Unidade Básica de Saúde com um procedimento simples, ou ainda, de um hospital que não impusesse a ela a convivência na maternidade, foi obrigada a levar a gestação a termo, escolher um nome e chorar por meses a morte de um filho.

O aborto imediato para ela não evitaria a dor de perder aquele bebê desejado, mas evitaria a tortura. Joana poderia interromper a gestação, mas foi obrigada a sair da maternidade com uma certidão de óbito e um funeral. Eu entendo que outras mulheres poderiam escolher esse destino, ter a gestação e enterrar o bebê. Mas Joana foi forçada. Nesse momento, entendi que a legalização do aborto era uma questão de escolha e de preservação da dignidade humana.

Embora, em 2016, o aborto de anencéfalos já houvesse sido permitido pelo STF, o tabu e a criminalização social do aborto não permitiram. Eu, uma mulher evangélica, entendi que como Joana, milhares de outras mulheres passavam por essa tortura: gestar contra a vontade. Então entendi que outras mulheres que não necessariamente estavam na situação de feto anencéfalo, também eram torturadas a levarem gestações não desejadas. Eu tive a oportunidade de escolher ser mãe, e isso não fez da gestação mais fácil e nem a maternidade mais leve. É difícil, e por isso defendo que seja uma escolha. 

A culpa que mulheres e pessoas que gestam carregam por não desejarem a gestação, por não quererem ser mães e a imposição da convivência com outras situações de maternidade, é tortura. Entendi que nenhuma criança merece ser indesejada. A lógica cristã separa o prazer da maternidade. Como aprendi com Maria José Rosado Nunes das Direito de Decidir: a régua da maternidade virginal de Maria é uma régua inalcançável. A separação do prazer sexual do ser mãe faz com que as mulheres que transam por prazer sejam julgadas.

E esse peso dessa maternidade compulsória está condenando a serem mães inclusive mulheres que já têm o direito da interrupção: mulheres e meninas abusadas, com risco de vida ou com feto anencéfalo. Nesse período no HC, conheci Marta*, uma mulher que acabara de ser viúva e que estava grávida do falecido marido, mesmo tendo colocado o DIU. Marta estava sob o peso do luto da perda do marido, e revelara que não gostaria de ser mãe naquele momento. Uma gravidez indesejada, uma vez que o DIU havia se deslocado, e num momento de tristeza. Eu me entristeci pelo futuro daquela família.

Eu, animadíssima com minha filhota, que é, juntamente com seu irmão, a luz dos meus olhos, entendi que nenhuma mulher merece ser mãe sem desejar, e nenhuma criança merece não ser desejada. Passei então a observar como as pessoas ao meu redor lidavam com o aborto espontâneo. Aquelas mulheres que estavam tristes pelas perdas ouviam logo: “daqui a pouco vem outro”, “tenha mais fé, que você consegue” e “não chore, logo vem outro”.

O luto da mulher que perdeu o feto espontaneamente não era respeitado. Ou seja, não é sobre o feto, porque esses fetos pareciam não importar tanto, mas sim sobre o desejo das mulheres que era simplesmente ignorado. Eu conheci Cecília* na maternidade, mãe do Betinho* – ela estava na sexta gestação, havia perdido todas. Ela insistia no desejo de ser mãe, e reclamava do tanto que era julgada por tentar, para as pessoas ela deveria desistir, porque não era boa para isso. O luto das perdas não era respeitado. Futuramente soube que Betinho faleceu com dias.

Eu, ainda muito influenciada pela postura cristã em relação ao feto, passei a questionar qual feto merecia defesa. O que merecia defesa e luto era justamente o feto que não era desejado. Os desejados, quando morriam, eram simplesmente ignorados, e as mães incentivadas a deixar de viver o luto, porque logo viria outro. A cada dia fazia mais sentido para mim que toda a polêmica do aborto simplesmente ignorava o desejo das mulheres. E que o feto era visto como um ser autônomo e separado da mãe.

Após o golpe contra a Dilma, quando passou a reforma trabalhista, tive certeza disso. As gestantes, ora protegidas de trabalharem em lugares insalubres, tiveram esse direito retirado, com apoio da bancada cristã e pró-vida. A pandemia de aborto no Piauí, por conta da contaminação por glifosato, era ignorada pelos pró-vida. Os casos de aborto entre as mulheres Yanomami, por conta da contaminação da mineração, sequer teve destaque na boca dos fundamentalistas. Enquanto isso, meninas de 10 anos são chamadas de assassinas.

Ora, como proteger o feto sem defender a qualidade de vida das pessoas gestantes? Eu nunca havia ouvido da boca dos tais evangélicos qualquer defesa da proteção nutricional, trabalhista ou direito de moradia e acesso à saúde das gestantes. Essa polêmica do aborto é realmente sobre o feto? Por que alguns fetos são tão defendidos enquanto outros são ignorados?

Assim, percebi a manipulação do argumento religioso para controlar as decisões das mulheres. Nesse momento, precisei fazer as pazes com a minha fé. Se Deus é amor, se Deus conhece o nosso coração e deseja que todas as pessoas sejam felizes, não caberia na imagem desse Deus o ódio à mulher que decidiu abortar. Esse ódio, essa ojeriza à escolha das mulheres, é pura produção humana, na figura dos homens que têm privilégios em relação às mulheres.

Hoje, eu tenho paz em meu coração e gostaria de dizer às mulheres evangélicas que decidiram abortar: está tudo bem. Deus conhece seu coração, Deus sabe pelo que você estava passando, Deus te ama e ama todas as pessoas que decidiram interromper uma gestação. Fique bem, minha irmã. A sua decisão ética para com a vida de um outro ser humano que nasceria em péssimas condições de vida, de acolhimento e respeito, é a maior prova de que você não é egoísta, que não pensou apenas em si mesma. Interromper a gestação é uma decisão que se torna uma culpa pelo que dizem sobre nós, pelo tabu social e pela sordidez dos que mobilizam esse assunto para conseguir arregimentar bases e ganhar poder político.

Como Jesus disse a Maria Madalena: vá em paz, eu não te julgo. Luto para que um dia a autonomia do corpo, das decisões e desejos das mulheres sejam efetivas em nossa sociedade. Não podemos acreditar que estão do lado de Deus pessoas tão incoerentes que só discutem o aborto como um ataque às famílias, mas não mexem um dedo para enxergar para além da trave no olho, o que é a realidade brasileira para milhões de crianças abandonadas, famílias inteiras expostas à desigualdade social, sem acesso aos direitos básicos. O verdadeiro pecado é a falta de amor e empatia para com a próxima. Eu, como evangélica, decidi amar e lutar pela vida das mulheres, meninas e pessoas que gestam.

O que me move nessa pauta é enxergar que não haverá maternidade digna em um mundo de desigualdades, violência e violação dos direitos humanos. A minha maternidade não é digna quando não tenho leis que protejam a mim e à minha filha. Se de fato os religiosos são pró-vida, deveriam ser favoráveis à qualidade de vida, e não ao nascimento a qualquer custo. Eu decido todos os dias amar e acolher, respeitar a humanidade e as escolhas dessas mulheres. Convido a todos os evangélicos e evangélicas que façam essa escolha também.

*Nomes fictícios para preservar a identidade das(os) envolvidas(os)

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  • Simony dos Anjos

    Antropóloga e doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Integrante da Rede de Mulh...

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