Ao posicionar-se contra o massacre intensificado do povo palestino por Israel desde outubro do ano passado, Lula comparou-o ao holocausto do povo judeu e levantou polêmica. O posicionamento do nosso presidente criou um precedente para outros líderes mundiais, pois eles endossaram sua postura e também se pronunciaram sobre os crimes perpetrados por Israel, não só em Gaza desde o dia 7 de outubro do ano passado, mas lembrando que esse massacre é sistemático e ocorre desde 1948.

Apesar dessa longa e dolorosa história trágica, o povo palestino resiste firmemente durante todo esse tempo e as mulheres têm um papel fundamental na resistência.

Mulheres, como Samah, por exemplo, uma psiquiatra e psicoterapeuta, chefe da Unidade de saúde mental do Ministério da saúde da Palestina, que em suas crônicas divulga suas percepções sobre as consequências psicológicas da ocupação desde os anos 2000, dando aos palestinos, mas principalmente às palestinas uma voz.

No documentário realizado em 2017 sobre o cotidiano dessa mulher, e que será em breve disponibilizado com legenda em português, intitulado “Atrás dos fronts: resistência e resiliência na Palestina”, a doutora Samah afirma: “só pelo fato de viver na Palestina, estamos contribuindo para a causa palestina. É uma forma de jihad, de obstinação. Meu lugar é aqui. É aqui que quero viver e morrer. Resistir à ocupação não significa que todos tenham que lutar. Lutar, construir, cuidar são diferentes formas de resistência”.

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Samah Jabr | Crédito: reprodução.

De fato, as palestinas e palestinos não são apenas aquelas vítimas passivas das imagens terríveis que nos chegam diariamente, e nem devem ser tratados assim, pois eles não são passivos, muito pelo contrário, são resistentes.

Em seu consultório, ela atende mulheres vítimas de abusos sexuais por parte da ocupação militar, mães que perderam seus filhos em consequência dos confrontos com a ocupação e outras violências. Se os palestinos não têm voz, é óbvio que as mulheres têm menos ainda. Portanto, o testemunho dessa psiquiatra é de grande valia, pois ela contribui para que esse grito percorra o mundo e nos faça ouvir essas palestinas e palestinos, ela nos proporciona a possibilidade de voltarmos nosso olhar para o seu povo com mais atenção. 

A questão da resistência e resiliência palestina é um caso particular. Para compreendermos melhor, é preciso trazer à luz o vocábulo árabe Sumud (صمود) que, frequentemente, é traduzido como “resiliência”.

Na verdade, Sumud é uma estratégia propriamente palestina adotada a partir de 1967 e propõe um condicionamento mental no qual deve-se “permanecer firme na terra”, não aceitar o deslocamento e evitar assim, uma “segunda limpeza étnica” como a anterior, iniciada em 1948, conhecida como Nakba (catástrofe), onde aproximadamente 750.000 pessoas foram expulsas de suas terras como consequência da criação do Estado de Israel. Naquele contexto, Sumud ligava-se à ideia da vida camponesa na Palestina histórica, e é por isso que o ícone adotado para o Sumud é a da mulher palestina grávida. 

Há várias formas de Sumud, lutar como sabemos, mas há outras várias formas de resistir além dessa, como amar, cuidar, nascer, etc. Hoje em Gaza, poderíamos dizer que as mulheres, em seu Sumud, geram filhos, cuidam, amam e, mesmo quando são impossibilitadas de enterrar seus filhos, desafiam os seus agressores, e enterram seus entes queridos mesmo assim. E de suas entranhas, elas geram mais e mais filhos palestinos, evitando a dizimação desse povo.

Segundo a doutora Ana Catarina Delgado, médica oftalmologista, que foi à Gaza em missão humanitária em 2019 e 2023, havia profissionais da saúde que trabalhavam com ela que tinham vários filhos, ela destaca uma técnica em enfermagem em particular, que tinha 19 filhos, algo muito distante da nossa realidade e noção de planejamento familiar. Esse é o sumud das mulheres palestinas. Enquanto o Estado de Israel destrói suas vidas e matam seus filhos, elas geram mais filhos e mais vidas! 

Mas quero ir um pouco além em relação ao sumud. Não é só na vida que encontramos a resistência. Os mortos não estão derrotados e tampouco liquidados. Assim como Auschwitz guarda em seu solo as vidas ceifadas ali, Gaza também guardará!

Georges Didi-Huberman, grande filósofo da atualidade, em seu ensaio “Cascas” fala sobre Auschwitz-Birkenau, ele nos diz que “a destruição dos seres não significa que eles foram para outro lugar. Eles estão aqui, decerto: aqui, nas flores dos campos, aqui, nas seivas das bétulas […]”. Em sua caminhada pelo campo, ele reflete: “Olhei as árvores como alguém que interroga testemunhas mudas”. 

Em Gaza, algo semelhante está acontecendo. Como sabemos, os escombros de Gaza são testemunhas desse genocídio, mas estão longe de serem mudos como as árvores citadas por Didi-Huberman, há ali vidas soterradas, sonhos e memórias. Há substrato humano amalgamado nessas ruínas, gerando memórias, gritando para sempre, longe de estarem liquidadas e isso se dá pela resistência do povo palestino.

Essas vidas nunca desapareceram, integraram-se a esses restos e restam para sempre como parte dessa matéria (in)orgânica para que novas vidas surjam! Vejamos o exemplo das oliveiras, símbolo da Palestina, elas podem nascer em lugares inóspitos, como as rochas por exemplo; esse é o Sumud que atribuo aos mortos.

Vale lembrar que quando o exército israelense adentra um território palestino, por exemplo, destrói tudo que pode, inclusive os cemitérios. Os agressores sabem bem que esses mortos não se calarão, eles resistirão, por isso que até mesmo esses mortos os incomodam. Esses espectros os assombram e são intangíveis. Eles restam lá, mantêm-se firmes, enterrados, mas ocupando sua terra como lhes foi possível! 

Gaza talvez seja o maior cemitério de crianças do mundo e está sendo construído diante dos olhos das mães, e também dos nossos olhos através das lentes dos jornalistas, mas também dos cidadãos comuns de Gaza, que, ao buscar comida, procuram carregar seus celulares para documentar o próprio massacre. As palestinas e palestinos enviam ao mundo seus destinos trágicos enquanto aguardam ser os próximos alvos, provavelmente… 

Walter Benjamin dizia em uma de suas teses sobre o conceito de história que “nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer e esse inimigo não tem cessado de vencer”. Aqui peço desculpa e ouso repensar a preocupação deste teórico. Em Gaza o inimigo não vai vencer, vai sair mais derrotado do que nunca e para sempre.

Os palestinos, vivos ou mortos, sempre estarão na Palestina! E as tantas mulheres palestinas, conhecidas ou não; mães, viúvas, avós, filhas, tão dignas e dedicadas aos seus, tal qual Antígona de Sófocles, desafiam os seus agressores, lutam a sua maneira e estarão sempre no eixo dessa resistência, mantendo-se firmes, doando suas vidas e seus corpos para que a Palestina não seja derrotada, nem hoje e nem nunca.

Referências

BENJAMIM, W. “Teses sobre o conceito de história” In: Magia e Técnica, Arte e Política/ Obras Escolhidas. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.

SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Millôr Fernandes. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1996.

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  • Vanessa Salum

    Graduada em Letras - Português e Francês pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Licence 1 en Lettres et Art...

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