O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito à licença-maternidade para mães não gestantes em união homoafetiva. Porém, em casos nos quais as duas mães possam solicitar o benefício, a mãe não gestante somente terá o direito a 5 dias de liberação, prazo equivalente ao da licença-paternidade. A decisão foi tomada na quarta-feira (13) quando a Corte julgou um recurso da Prefeitura de São Bernardo do Campo (SP) contra decisão da Justiça de São Paulo, que reconheceu o direito a uma funcionária do município.
“Não há pai numa família formada por duas mães. Logo, conceder uma ‘licença-paternidade’, além de não contemplar as nossas famílias, ainda é uma violência simbólica”, afirma Dani Arrais, empreendedora e uma das fundadoras do Coletivo Dupla Maternidade.
“Em termos práticos, a certidão de nascimento da criança que possui duas mães não diferencia quem gestou ou não. Então, a decisão em verdade limita o posicionamento que já vinha sendo adotado ao definir que apenas uma das mães pode gozar do período de licença-maternidade, além de, implicitamente, desqualificar a figura da outra mãe, colaborando para a reprodução do modelo tradicional de mãe-pai”, avalia Luiza Galvão, advogada especializada em apoiar a comunidade LGBTQIA+ e parte do Coletivo.
Em 2019 foi decidido que o caso julgado pelo STF é de repercussão geral. “Sendo assim, a decisão da Corte será aplicada em casos análogos que estão tramitando em instâncias inferiores”, explica Damaris Drulla, advogada de família especializada na defesa das mulheres. “Estão em discussão princípios como a dignidade da pessoa humana, liberdade reprodutiva e igualdade”, complementa.
Entendimento do STF
O relator do caso, ministro Luiz Fux, reconheceu a licença-maternidade como um direito resguardado à mulher e à criança, porém classificou como não igualitário conceder o benefício para ambas as mães. Por isso, apresentou a tese de que a mãe não gestante teria o direito ao prazo análogo à licença-paternidade.
“Não é privilégio, é o reconhecimento da importância do trabalho do cuidado”, discorda Arrais, ao recordar que essa forma de trabalho, na maioria dos casos, só recaí sobre as mulheres.
Durante o julgamento do caso houve discordâncias sobre a tese apresentada por Fux. O ministro Flávio Dino defendeu que a decisão deveria valer tanto para famílias compostas por duas mães, como famílias compostas por dois pais, mas teve o pedido de adição negado pela presidência, que justificou que a Corte deveria concentrar-se no caso concreto julgado.
Já Alexandre de Moraes defendeu a concessão da licença-maternidade, de 120 dias, para ambas as mães. “A partir do momento que aceitam união estável homoafetiva, as duas são mães. Se as duas são mães, as duas têm direito”, argumentou.
Ao final, por 8 votos a 3, a Corte aprovou a tese apresentada por Fux. Ficou estabelecido que “a mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença maternidade. Caso a companheira tenha utilizado o benefício, fará jus a licença pelo período equivalente ao da licença paternidade [ou seja, 5 dias]”.
Conforme avalia Galvão, prevaleceu um julgamento que replica o modelo de família tradicional.
“Com composição majoritamente masculina, o STF contraia os avanços que já existiram em prol dos direitos da população LGBTQIA+ e, ainda, abordou a questão somente sob a ótica de dupla maternidade, nada dispondo sobre os direitos de famílias compostas por dois pais”, define.
Direito a licença-maternidade é preocupação entre mães
Dani Arrais, uma das fundadoras do Coletivo Dupla Maternidade, que hoje é formado por cerca de 800 mães e futuras mães, compartilha que uma das perguntas mais recorrentes feitas no grupo é sobre a licença-maternidade.
Leia mais
“Algumas famílias têm a sorte e privilégio de trabalhar em empresas que concedem 6 meses de licença parental. Algumas são servidoras públicas e acabam entrando com pedidos administrativos. Várias têm licenças análogas à licença-paternidade, que é irrisória. Tem caso de mãe não gestante que conseguiu 120 dias de licença pelo INSS, judicializando. E há casos em que são concedidos os 5 dias de licença-paternidade, ou os 20 da empresa solidária”. conta.
Segundo Galvão, antes do julgamento do STF, as famílias buscavam o Poder Judiciário ainda na gestação para obter o direito à licença-maternidade. “Com a definição do posicionamento e partindo da premissa que a decisão de quem aproveitará a licença é da família, entendo que o pedido poderá ser formulado diretamente ao órgão pagador da licença, INSS ou Regimes Próprios, após o nascimento da criança”, aponta.
Conforme a advogada, no entendimento que estava sendo aplicado anteriormente, geralmente mães com fontes pagadoras diferentes conseguiam receber o benefício. “Com a decisão de hoje, esta é uma possibilidade restrita, já que as famílias terão que escolher quem receberá”, avalia.
“Mães não gestantes querem não só cuidar dos filhos, mas terem sua maternidade respaldada em várias instâncias também. É uma validação dos nossos direitos, das nossas existências. Não dá pra entender a maternidade apenas a partir de quem gestou, o mundo já mudou, as configurações de famílias também. Falta o Judiciário acompanhar e as empresas entenderem isso também, assim como toda a sociedade”, destaca Arrais.
O que diz a lei sobre a licença-maternidade
Conforme explica a advogada Damaris Drulla, a licença-maternidade é um benefício previdenciário, garantido pelo artigo 7º, XVII da Constituição Federal. Esse benefício concede à mulher que deu à luz uma licença remunerada de 120 dias, ou até 180 dias, se a empresa for inscrita no programa empresa-cidadã.
“É um direito de todas as mulheres que trabalham no Brasil e que contribuem para a Previdência Social, seja através de empregos formais, temporários, trabalhos terceirizados e autônomos ou ainda trabalhos domésticos”, complementa.
A trabalhadora gestante pode sair de licença a partir do último mês de gestação e durante o período de afastamento ela tem direito a receber um salário, no valor de sua remuneração integral. A constituição também garante estabilidade provisória à gestante do momento em que se confirma a gravidez até cinco meses após o parto, ou seja, nesse período, ela não pode ser demitida.
Já a licença-paternidade possui duração de cinco dias, com início a partir do dia do nascimento do bebê. Em alguns casos, pode haver prorrogação de 15 dias. A forma atual da legislação é alvo de críticas.
O Projeto de Lei 1974/21, dos deputados Sâmia Bomfim (PSOL-SP) e Glauber Braga (PSOL-RJ), por exemplo, propõe uma licença parental remunerada de 180 dias às mães, pais e a todas as pessoas em vínculo socioafetivo para os cuidados necessários com a chegada de um bebê, criança ou adolescente em grupos familiares.
Caso julgado pelo STF
O caso concreto julgado pelo STF envolve uma gestação que ocorreu por inseminação artificial em que o óvulo de uma servidora pública foi fecundado e implantado na companheira. A funcionária requereu junto ao Município de São Bernardo do Campo (SP) licença-maternidade de 180 dias prevista na legislação local, mas teve o pedido negado sob o entendimento de que a legislação não autoriza a concessão.
A funcionária acionou a Justiça paulista alegando, entre outros pontos, que a criança integra uma família composta por duas mães e, na impossibilidade de a mãe que gestou o bebê ficar em casa, pois é autônoma e precisa trabalhar, a segunda tem direito à garantia constitucional da licença-maternidade. O pedido foi julgado procedente pelo juízo de primeiro grau, e a sentença foi mantida pela Turma Recursal do Juizado Especial da Fazenda Pública.
Segundo a Turma Recursal, o direito à licença-maternidade visa assegurar o convívio integral com a criança durante os primeiros meses de vida e se constituiu como uma proteção à maternidade, possibilitando o cuidado e apoio à criança no estágio inicial de sua vida, independentemente da origem da filiação.
O município recorreu ao STF com o argumento de que não há previsão legal que autorize o afastamento remunerado a título de licença-maternidade para a situação tratada nos autos, e que a administração pública está vinculada ao princípio da legalidade. Por unanimidade, a Corte negou o pedido do município e definiu que a mãe teria o direito à licença-maternidade.