O Brasil bateu um triste e alarmante recorde: ser considerado o país que mais assassina pessoas trans no mundo pelo 15º ano consecutivo, de acordo com dados da Transgender Europe (TGEU) atualizados em 2023 e obtidos pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). A população trans não pode seguir silenciada diante dessa cruel realidade.

Realizado pela equipe do Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT), o “Observatório de Pessoas Trans Assassinadas Globalmente” é um boletim da TGEU publicado anualmente por ocasião do 20 de novembro, Dia Internacional da Memória Trans (Trans Day of Remembrance). Desde que o relatório foi criado, em 2008, o Brasil assume com folga a liderança entre os países nos quais a transfobia faz o maior número de vítimas.

Os dados foram coletados entre 1º de outubro do ano passado e 30 de setembro deste ano. América Latina e Caribe acumulam 73% dos casos de todo o mundo. Ao todo, foram 320 assassinatos registrados durante o período, e pelo menos 100 aconteceram no Brasil, ou seja, 31% do total. Se comparado com o ano anterior, houve uma queda de 2% no percentual de mortes – em 2022 eram 29%.

O perfil das vítimas permanece o mesmo, sendo 80% de pessoas trans negras/racializadas, a maioria entre 19 e 25 anos, vivendo publicamente com identidades de gênero femininas — travestis e mulheres trans. De todos os casos com dados de idade disponíveis, três quartos (77%) tinham entre 19 e 40 anos.

A pesquisa também revelou que 46% dos assassinatos relatados foram por armas de fogo, 48% das vítimas atuavam como profissionais do sexo e as ruas continuam sendo o espaço de maior incidência dos assassinatos.

Cabe destacar que, desde o início desse monitoramento, a vítima mais jovem de assassinato no mundo foi Keron Ravache, adolescente trans brasileira de 13 anos que foi brutalmente assassinada com requintes de crueldade no Ceará em 2021.

O cenário de violência contra pessoas trans no Brasil é profundamente preocupante em todos os ciclos de vida. A cada ano, centenas de vidas são perdidas em decorrência de crimes de ódio, transfobia e discriminação. A falta de políticas públicas eficazes e específicas para enfrentar esse quadro tem permitido que essa estatística trágica persista, tornando o Brasil um dos países mais perigosos para pessoas trans viverem.

E sendo um país altamente desigual, a violência se acirra cada vez mais contra grupos vulnerabilizados e empobrecidos: jovens negros, mulheres vítimas de feminicídio e violências domésticas, pessoas LGBTQIA+ e outros acabam sendo os alvos diretos das violências atravessadas por questões de classe, raça, gênero, território ou mesmo a união desses fatores com o ódio passado de geração em geração contra sexualidades e identidades dissidentes, essa tem sido uma receita de morte que segue naturalizada como herança colonial.

A transfobia mobiliza as redes sociais, domina os assuntos de botecos e as universidades, e transita livremente entre esquerda e direita, passando por espaços progressistas, feminismos e outros que em sua atuação defendem a liberdade e o direito de ser quem se é, desde que a cisgeneridade siga inalterada. E o impacto disso é que a juventude trans está menos otimista sobre o futuro.

Dados brasileiros

No Brasil, desde 2017 a Associação Nacional de Travestis e Transexuais tem lançado dossiês anuais sobre o mapeamento dessas informações, já que o próprio Estado tem sido omisso e atuado de forma ineficaz na produção de estatísticas e políticas para mitigar o impacto dessas violências. De acordo com a ANTRA, o perfil das vítimas, nacionalmente se aproxima do que vem sendo revelado pela TGEU, onde 80% das pessoas trans assassinadas são negras e 95% foram reconhecidas como travestis ou mulheres trans (identidades de gênero femininas), e tinham média de 29 anos. A ANTRA já mapeou pelo menos 94 assassinatos de pessoas trans entre 1 de janeiro e 31 de outubro de 2023.

O ódio às pessoas trans tem organizado um ecossistema de forças muitas vezes antagônicas em torno da defesa de um ideal que promove e celebra apenas a vida daquelas pessoas que seguem a cartilha da norma: ser aquilo que foi determinado no nascimento, não questionar o heteroterrorismo e não confrontar as regras rígidas de ser homem ou mulher. Do contrário, é disseminada a ideia de que você estará assumindo a responsabilidade pela violência que irá te acompanhar desde os primeiros momentos em que o seu corpo for percebido como dissidente, até mesmo depois de sua morte, quando sua identidade será novamente assassinada em uma violação da sua identidade.

A população trans brasileira está exausta da inércia do Estado diante dessa realidade alarmante. É hora de cobrar ações concretas e efetivas para reverter essa situação e principalmente de as pessoas que não são trans se levantarem contra as violações dos direitos humanos, as violências, os estupros corretivos, os diversos assassinatos (sociais, físicos, psicológicos ou todos juntos).

A violência contra pessoas trans não pode ser tolerada por mais tempo. A população trans brasileira exige ações imediatas do Estado para garantir sua segurança e dignidade. A mudança é possível, mas só será alcançada com o comprometimento do governo, da sociedade civil e de cada cidadão em prol de um Brasil verdadeiramente inclusivo e respeitoso. A vida de pessoas trans importa, e é hora de agir para protegê-las.

É passada a hora de serem organizadas respostas do Estado para reverter essa situação e promover políticas públicas eficazes que garantam a segurança e o respeito à vida de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.

É crucial que haja investimento em programas de educação que promovam a diversidade de gênero e combatam a transfobia desde as séries iniciais. É necessário treinar as forças de segurança para lidar de forma sensível com a população trans e combater crimes de ódio de forma qualificada e eficaz. Além disso, a coleta de dados sobre crimes transfóbicos deve ser aprimorada. É importante garantir acesso digno à saúde, incluindo tratamentos de saúde sexual e reprodutiva, saúde mental em uma perspectiva despatologizante e os devidos tratamentos para (re)afirmação de gênero — que já são acessíveis e usados por pessoas que não são trans.

Estratégias que promovam a inclusão e permanência de pessoas trans no mercado de trabalho e combatam a discriminação no ambiente profissional são cruciais. Reforçar leis que proíbam a discriminação por identidade de gênero, com punições rigorosas para crimes de ódio, se fazem urgentes. Assim como criar centros de acolhimento e apoio para pessoas trans em situação de vulnerabilidade, como aquelas que foram expulsas de suas casas, são migrantes ou estão em situação de rua. Ouvir as vozes da comunidade trans e das organizações que a representam é essencial para a construção de políticas públicas eficazes.

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  • Bruna G. Benevides

    Militar antifascista, sargenta da Marinha brasileira, Travesti, feminista afrodescendente. Presidenta da Associação Naci...

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