No último 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, o Brasil presenciou uma das cenas mais grotescas (e olha que a concorrência é grande) no plenário da Câmara dos Deputados. O deputado federal Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais, usou uma peruca para promover misoginia e transfobia. Todo mundo já viu e já debateu esse episódio. Mas acreditem, aquilo ali não foi acaso, não foi um ato impulsivo e mal pensado. E Nikolas não estava sozinho. 

Nos últimos anos, a transfobia deixou de ser apenas o resultado da ignorância, da desinformação e do preconceito e passou a ser um projeto político. Promover a transfobia, hoje, ajuda a vender livros, a ter visualizações, likes, seguidores e até a se eleger. Os ataques às pessoas trans estão se fortalecendo no mundo inteiro. Estados Unidos e Reino Unido despontam como grandes representantes do retrocesso milimetricamente planejado nos direitos das pessoas dissidentes de gênero. 

Enquanto a China anunciou a criação, em Xangai, da primeira clínica voltada para acompanhar a transição de adolescentes transgênero (inclusive com apoio psicológico estendido aos pais, que muitas vezes se veem perdidos em como acolher e orientar seus filhos), no Texas, EUA, se aprovou um projeto de lei para que pais de crianças e adolescentes trans sejam investigados caso acolham e protejam seus filhos. 

Já no Reino Unido, sob o comando do primeiro-ministro conservador Rishi Sunak, avança a reformulação do Equality Act 2010, um conjunto de leis que há 13 anos têm sido usadas como base para garantir direitos para todas as mulheres e pessoas LGBTs. Com a reformulação espera-se, entre outras coisas, que mulheres trans e travestis sejam obrigadas a usar o banheiro masculino. 

Em todos esses casos o discurso gira em torno dos mesmos mantras: “é preciso proteger as mulheres” ou “é preciso proteger as crianças”. Mas isso é mentira. A ideia de que mulheres cis ou crianças correm algum tipo de perigo, pelo simples e tímido avanço de direitos das pessoas trans, é uma fantasia conservadora. É o terror fascista que precisa inventar inimigos e, portanto, esses inimigos precisam ser combatidos. 

Também em março, no dia 18, uma cena chocou a Austrália. Um “ato anti-trans” convocado pela feminista radical inglesa Kellie-Jay Keen-Minshull, conhecida como Posie Parker, fez com que as ruas de Melbourne ficassem cheias de autodeclarados neonazistas, que levantaram seus braços em riste e carregavam bandeiras com suásticas e outros símbolos, que já deveriam ter sido banidos da face da terra. O jornal australiano The Saturday Paper definiu assim o episódio: “A presença de neonazistas em uma manifestação transfóbica em Melbourne, no último fim de semana, é uma evidência de como grupos marginais operam para encontrar um propósito comum, visando os mais vulneráveis”.

Recentemente, a parlamentar estadunidense e democrata Pamela Stevenson, do estado do Kentucky, acabou viralizando por uma fala super emocionada em defesa da comunidade trans, onde ela questionava os deputados do Partido Republicano: “Primeiro vocês odiaram os negros, depois os judeus. E depois, quando não sobrar mais ninguém, vocês vão odiar a si mesmos?” 

Espero que a ótima e sagaz pergunta de Pamela nunca tenha resposta. Que a gente nunca descubra o que virá depois que os projetos fascistas forem concluídos. Que a gente nunca mais se aproxime de uma realidade onde a intolerância, o ódio e a segregação sejam a regra. Hoje elas e eles, que dedicam suas vidas e energias para tramar contra as vidas e energias das pessoas trans, são exceções. E assim permanecerão. 

Foi também em março (eita mês agitado na agenda dos transfóbicos hein) que o novo guru da extrema direita estadunidense, Michael Knowles, afirmou categoricamente que “para o bem da sociedade, a transexualidade deve ser erradicada da vida pública totalmente, em todos os níveis”. Esse chamado explícito para o genocídio da população trans aconteceu durante a CPAC, maior reunião de políticos de extrema direita do mundo. Bolsonaro estava lá, inclusive. 

Não importa se Nikolas Ferreira e as “feministas” trans-excludentes (terfs, na sigla em inglês) alegam querer proteger as mulheres de um perigo imaginário. Não importa se Trump, Sunak e Bolsonaro dizem defender o “cidadão de bem” ou os “valores cristãos”. Não importa se Putin discursa sobre “proteger a sociedade russa dos valores ocidentais”. Nada disso importa. O que importa e o que deve, de fato, nos preocupar, é que todos eles se encontram na mesma esquina. Pequenas variações nas justificativas, mas grandes convergências quando o assunto são as pautas de gênero. 

E todas as pessoas que realmente se importam com a segurança, a vida e os direitos das mulheres devem ficar alertas. O fascismo não se contenta com apenas um sangue derramado, com apenas um grupo dizimado. Ele sempre vai precisar de mais, para que as massas sigam distraídas na cortina do ódio que aliena da crescente desigualdade e que impede reflexões sobre a realidade. 

Fiquemos alertas. Por todas, por todos. Por todes. Sem exceções. 

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  • Lana de Holanda

    Mulher trans/travesti, escritora e comunicadora feminista, defensora dos Direitos Humanos e ex-assessora de Marielle Fra...

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