Inicio esta escrita elucidando às(aos) leitoras(es) que este se trata de um artigo de opinião. Desde quando me reconheço como uma mulher lésbica/sapatão tenho enfrentado várias angústias, questionamentos e estou sempre em busca de respostas. O que me motivou a escrever este texto foi ter participado recentemente do 6º Encontro de Liderança Política LGBTI+ das Américas e do Caribe, realizado na Cidade do México de 20 a 22 de julho de 2023, que contou com a presença de ativistas de movimentos sociais e lideranças LGBTI+. Vale registrar ainda que o evento também contou com várias lideranças políticas importantes, neste momento histórico em que a população LGBTI+ tem ganhado espaço na política institucional. 

Segundo informação da organização, desde 2014, mais de 1.350 líderes LGBTI+ de mais de 40 países de todo o hemisfério participaram desse encontro, que acontece a cada dois anos. Os primeiros foram realizados no Peru, Honduras, República Dominicana, Colômbia e de maneira virtual durante a pandemia. Neste ano reuniram-se mais de 650 pessoas LGBTI+ e, acessando as informações dos painelistas na programação pude verificar que foram 67 painelistas para três dias de evento. Destes, 24 não declararam sua orientação sexual, 15 são homens e nove mulheres. Dos 43 restantes, seis são gays, duas travestis, 21 mulheres trans, três homens trans, quatro pessoas não binárias, dois muxe e sete mulheres lésbicas/sapatonas.

Foi uma extensa programação, com debates importantíssimos sobre política de igualdade, combate a violências e diálogos interseccionais, lideranças políticas LGBTI+. Devido à falta de dados, ainda não é possível fazer uma análise mais aprofundada sobre a predominância de debates, mas asseguro que já na programação percebi, consternada, a incipiência do debate sobre lesbianidade. 

Em três dias de debate, o evento contou com a presença ilustre de lésbicas/sapatonas como Gloria Careaga, coordenadora geral da Fundação Arco, do México; Patria Jiménez Flores, deputada federal no México; Susel Paredes Piqué, deputada da República do Perú; Emma Alvarado, do Coletivo Lésbico Feminista Irreversíveis, da Costa Rica; Almendra Sánchez, secretária nacional de diversidade sexual do Morena, do México; Maria de los Maradiaga, da equipe da SOMOSCDC, de Honduras; e nossa deputada federal Daiana Silva dos Santos, aqui do Brasil. 

Meu incomodo se materializou no fato de os debates das palestrantes lésbicas/sapatonas terem apresentado um fôlego muito tímido em torno das especificidades em relação a lesbianidades, e focado muito mais em falar de pautas que englobam todas as letrinhas e bem focalizadas na pauta trans, que tem motivado muitos debates, temas importantes, claro! Pautas essas que observo desde o período do meu reconhecimento como mulher lésbica/sapatona aqui no Brasil. 

Percebi que esses debates, sem temas estruturais como a heteronormatividade compulsória, anticapitalismo, antirracismo, pautas sobre LGBTI+ indígenas/povos originários – que era esperado, devido à região – se estendem por toda América Latina e Caribe.

Apesar disso, de modo geral o evento contou com debates importantíssimos, falas acaloradas sobre nós, pessoas LGBTI+, a criação da bancada LGBTI+ de parlamentares brasileiros, que enfrentarão o desafio, neste momento histórico, de lutar contra a “cura gay” proposta pelas  igrejas neopentecostais brasileiras, uma violação dos direitos humanos, e toda uma preocupação com a agenda política global de políticas públicas.

Dentro das minhas angústias, ainda, foi possível perceber uma certa dependência ideológica eurocêntrica nos debates, concretizados em mesas sobre inovações LGBTI+; fomentando lideranças, apostando em democracias repletas de cores. Essa evidência pode ser ainda mais problematizada se considerarmos que um dos patrocinadores principais era o LGBTQ+ Victory Institute, instituição estadunidense que tem como premissa alcançar e sustentar a igualdade por meio do desenvolvimento de liderança, treinamentos, pesquisas e convocações. 

Como se pode observar no próprio site do Instituto, trata-se de uma organização que “trabalha em todo o mundo para aumentar o número, expandir a diversidade e garantir o sucesso de nossas autoridades LGBTI+ eleitas e nomeadas em todos os níveis de governo”, em tradução livre. 

Percebe-se então um atrelamento a um modus operandi político social liberal, que por sua vez incorpora demandas de igualdade e respeito à diversidade de mulheres, pessoas negras, LGBTI+, imigrantes, PCDs, fazendo algum debate de defesa e promoção dos direitos humanos, mas um debate descolado das relações de “produção econômica” e “estrutura de poder”, naturalizando o neoliberalismo em primeira instância e o capitalismo em última instância. 

A proposta é defender maior diversidade, maior igualdade de oportunidade nas questões civilizatórias dentro da estrutura capitalista, mas sem uma discussão anticapitalista, antirracista. Nós sucumbimos então a uma reprodução eurocêntrica, capitalista, imperialista e colonial.

Pensando nos debates que acompanho no Brasil, principalmente em Santa Catarina, percebo também debates sempre voltados à nossa existência lesbica/sapatão, uma insistência em provar a nossa existência, um debate incansável da visibilidade, que nós existimos, nós amamos, nós temos o direito de amar umas às outras, debates importantes, claro! 

Fora a questão da existência, o que permeia os debates também são os contextos históricos, o caso do Ferro’s bar, um contexto  clássico   que   marcou   o   movimento   lésbico,   as   lembranças   das lésbicas/sapatonas históricas, que fizeram muito para que tenhamos a liberdade que temos hoje. Não quero fazer juízo do que é e não importante, mas trazer aqui as minhas angústias e questões de que sinto falta. 

Esses debates são importantes? Sim! Óbvio! Como não levar em consideração, por exemplo, toda a história de Neusa das Dores, professora, sindicalista, militante do movimento negro e de mulheres e lésbicas, uma das fundadoras do Colerj, Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro? Como não levar em consideração toda a história da minha querida amiga Carmen Lúcia Luiz, enfermeira, lésbica, feminista, primeira conselheira representante do Movimento LGBTI+ brasileiro no Conselho Nacional de Saúde? Como não pensar a história de tantas outras? E como não pensar interseccionalmente em toda lesbofobia que pode viver uma lesbica/sapatão preta presidiária? 

Resgatar a história das companheiras lésbicas é fundamental para reconhecermos a existência e reivindicarmos os espaços que historicamente nos foram negados. Tudo isso é importante, mas não estamos discutindo o que também nos faz realmente sermos lésbica/sapatão, que é o enfrentamento à heteronormatividade compulsória/patriarcal/branca/capitalista. 

Mesmo que nossos corpos em si já sejam um enfrentamento, esse assunto nunca está em pauta. É como se suspendêssemos esse assunto, e se não discutirmos esse ponto estrutural, se mantivermos a ausência desse debate, reforçaremos a heterossexualidade, que para nós, mulheres lésbicas/sapatonas, é como continuar contribuindo com o direito masculino de acesso físico, econômico e emocional sobre nós. Portanto, penso que estamos vivendo uma performance lésbica/sapatão da nossa invisibilidade.

Não somos invisíveis, a sociedade sabe que nós existimos. Sempre, na história do mundo, mulheres se relacionaram com outras mulheres. Mulheres amam mulheres. O que existe é um apagamento imposto pela heteronorma porque nós mulheres lésbicas/sapatonas somos quem confronta com a heteronormatividade. Temos que expor a heteronormatividade compulsória/patriarcal/branca/capitalista e reafirmar que podemos viver sem ela. Não temos que sempre pautar nossa falta de lugar e sim apontar quem está ocupando o lugar, esse grande espaço na sociedade. Temos que falar o que é de fato, não do que não é. Penso que temos que ter em pauta em nossos debates, opiniões sobre heteronormatividade compulsória/patriarcal/branca/capitalista.

Nesse sentido, partindo de um aspecto mais próximo à antropologia da sexualidade, que aborda a questão da heterossexualidade sob o ponto de vista da construção cultural da sexualidade, venho aqui expor minha opinião sobre esse tema. Muitas teóricas e ativistas feministas lésbicas/sapatonas abordam o caráter político da heteronormatividade. Considerando esse panorama, vou abordar aqui ideias de três pensadoras feministas lésbicas/sapatonas das que compactuo. Adrienne Rich, Monique Wittig e Ochy Curiel, sendo que essa última pode nos dar um parâmetro a partir da América latina. 

Heteronormatividade compulsória/patriarcal/branca/capitalista

Adrienne Rich argumenta que a heterossexualidade é uma instituição política que promove a ideia de que os relacionamentos heterossexuais são os únicos legítimos e normais, ignorando outras formas de sexualidade. Ela afirma que isso perpetua a opressão das mulheres, já que a sociedade espera que elas se ajustem a papéis de gênero tradicionais e se submetam às expectativas masculinas. A maternidade e a família nuclear constituem outra instituição política apontada por Rich como contribuidora para a diminuição do poder das mulheres. 

A teórica argumenta ainda que a maternidade é vista como uma condição natural e essencial para as mulheres, mas isso limita suas oportunidades e impede que elas se tornem independentes e atinjam seu potencial máximo. Para uma lésbica/sapatão mãe, os enfrentamentos da maternidade são sempre recheados de conflitos e falta de tranquilidade, não só na educação de seus filhos, mas na questão de gestar um(a) filha(o). 

Ela também fala da exploração econômica, menciona que a forma capitalista de produção gera a segregação de gênero na esfera do trabalho, atribuindo às mulheres posições menos valorizadas na divisão sexual do trabalho. No caso de mulheres lésbicas/sapatonas, elas precisam negar a si mesmas e fingir, na aparência física e comportamento, serem heterossexuais.

Na heterossexualidade, como uma instituição compulsória, as mulheres foram convencidas de que “o casamento e a orientação sexual em relação aos homens são componentes inevitáveis de suas vidas, mesmo que sejam insatisfatórios ou opressivos”, nas palavras da escritora feminista. Ela segue argumentando que a heterossexualidade vai além de uma simples prática sexual ou preferência. Ela é uma instituição política que reforça a desigualdade de gênero, limita o poder das mulheres e garante a superioridade e domínio dos homens sobre elas. “Como não admitir que o sistema chamado capitalismo ou os sistemas de castas no racismo são mantidos por uma variedade de forças, incluindo a violência física e a falsa consciência?”, questiona.

Rich baseia-se em conceitos como existência lésbica/sapatão e o continuum lésbico. No que diz respeito ao continuum lésbico, Rich sugere que a existência lésbica/sapatão não deve ser vista como uma experiência isolada, mas sim como um espectro de diferentes identidades e experiências. Ela defende a importância de reconhecer e valorizar a diversidade de experiências lésbicas/sapatonas, incluindo aquelas que desafiam as normas de gênero e sexualidade. Há uma valorização das experiências emocionais, afetivas e sociais entre as mulheres. Isso vai além das relações sexuais e abrange as relações de cuidado, apoio e companheirismo.

A partir desses conceitos, ela argumenta que é necessário resgatar essa história, reconhecendo a existência das lésbicas/sapatonas e lhes oferecendo a visibilidade e o espaço que lhes foram negados. É essencial entender e reconhecer a diversidade dentro da própria comunidade LGBTI+, e isso inclui as experiências e lutas das lésbicas/sapatonas. 

Já Monique Wittig sustenta que a heterossexualidade é construída como norma e é imposta às mulheres como uma obrigação social. Ela argumenta, assim como Rich,  que a heterossexualidade é uma instituição política que serve para preservar o patriarcado. Ao focar na heterossexualidade como regime político, Wittig destaca a importância de desnaturalizar essa forma de relação sexual e questionar os seus pressupostos. 

Wittig também propõe uma reavaliação conceitual da lesbianidade como uma prática política. Afirma que a lesbianidade não é simplesmente uma preferência sexual, mas uma estratégia política que desafia as estruturas opressivas da sociedade heterossexual. Monique Wittig definiu ainda a heterossexualidade como um regime político cuja ideologia se baseia fundamentalmente na ideia de que existe uma diferença sexual. “Na verdade, essa diferença existe apenas como uma ideologia, e oculta o que está acontecendo nos níveis econômico, político e ideológico”, diz a autora.

De acordo com Wittig, o sexo é uma categoria que existe na sociedade na medida em que ela é heterossexual e as mulheres nela são heterossexualizadas, a reprodução da espécie e sua produção são impostas, por meio de um contrato fundamental: o casamento, um contrato que é vitalício e só pode ser quebrado por lei por meio de divórcio. E fora do casamento, somos sexualizadas, como se estivéssemos disponíveis a todo momento para satisfazer os homens. Somos visíveis sexualmente e invisíveis como seres sociais. 

Do ponto de vista decolonial, que está dentro das minhas angústias, a heteronormatividade compulsória/patriarcal/branca/capitalista é um regime heterossexual com uma construção social e política que possui uma história ligada à formação e reprodução das estruturas coloniais, das repúblicas e dos estados nacionais. 

O colonialismo foi um fator importante na construção das noções de raça e gênero. A ideia de superioridade branca e a desvalorização das pessoas negras, indígenas e outras minorias raciais foram justificadas e perpetuadas através de narrativas de diferenciação baseadas em características físicas e de gênero. Essas ideias foram usadas para justificar a escravidão, a exploração e a violência contra essas populações.

Durante os períodos coloniais, as normas e valores que sustentavam a heteronormatividade compulsória/patriarcal/branca/capitalista como a norma dominante foram impostas às populações colonizadas, muitas vezes através da violência e da repressão. Ela era vista como parte integrante da “civilização” ocidental e era supostamente superior a outras formas de relacionamento e identidade sexual.

Essa lógica colonializadora e  heteronormativa compulsória/patriarcal/branca/capitalista continuou a operar dentro dos Estados-nação estabelecidos após as independências coloniais. Os sistemas legais e políticos foram moldados para manter e perpetuar o regime heterossexual dominante, reforçando normas de gênero binárias. “O regime heterossexual afeta todo tipo de relação social, e como feminista decolonial entendo que esse regime heterossexual tem uma história colonial que vai se reproduzindo dentro das repúblicas e Estados nacionais, dentro do capitalismo liberal mundial, esse é o lugar que ele ocupa. Eu não sou só lésbica/sapatão feminista, sou lésbica/sapatão feminista, anticapitalista, antirracista, anticolonial etc”, fala Curiel.

Há muito mais questões relevantes a serem abordadas sobre a opressão histórica contra nós, mulheres, pelas mãos dos homens. Mas o que quero pontuar com esse conjunto de reflexões, é que é importante e fundamental reconhecer a diversidade de experiências; o caminho que percorremos é válido e foi necessário para poder crescer, valorizar e melhorar o que tivemos. No entanto, é possível reconstruir uma nova perspectiva e encontrar mais maneiras de fazer. Falar do que realmente é! Nomear o que realmente oprime é fundamental para sairmos da nossa condição de agentes de defesa, mas agentes de ofensiva, temos que falar o que é de fato, não do que não é.

Nós lésbicas/sapatonas não nos envolvemos em relações heterossexuais, nós escapamos dessa subordinação e das obrigações associadas a ela, desafiamos as normas de gênero e afirmamos nossa própria autonomia e liberdade sexual, com isso temos uma certa autonomia para esse tipo de ação.

Esse grande espaço  que a heteronormatividade compulsória/patriarcal/capitalista está ocupando em nossas casas, trabalho, bairro, cidade, na sociedade, no nosso dia a dia, tem que ser denunciado, fazendo parte dos nossos debates. Para que nossa comunidade LGBTI+ nos modifique verdadeiramente, e sigamos sujeitos de ação nos espaços – como o evento que encetou essas linhas e pensamentos – onde se propõe discutir democracia, igualdade, formas de resistências, fortalecimento, não basta apenas nos comover e nos afetar emocionalmente, é necessário também que seja capaz de nos fazer refletir sobre nossas próprias atitudes e comportamentos de um ponto de vista crítico, para que possamos ser agentes de uma verdadeira transformação. 

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Palavras-chave:
  • Jeane Adre Rinque

    Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ - Professora Filosofia - INTEGRAR - Projeto Educação Popular...

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