Um caso de violência sexual que ocorreu em 8 de março de 2023, Dia Internacional das Mulheres, no acesso à praia do Campeche, em Florianópolis, mobilizou grupos de mulheres para cobrar justiça das autoridades públicas. Uma menina de nove anos foi vítima de estupro de vulnerável cometido por um homem em uma motocicleta enquanto caminhava para a praia. O agressor passou a mão no corpo da criança e teria abordado, no mesmo dia, outras duas mulheres nas ruas do bairro próximas à praia.

Segundo a mãe da menina, Karina Lobo, de 43 anos, após a violência a filha passou a acordar de madrugada chorando e com pânico de que tocassem no corpo dela. Lobo diz que “a demora em pegar essa pessoa era o que mais frustrava”. O agressor foi preso somente quatro meses após o ocorrido, porque a designer de interiores voltou a vê-lo nas proximidades de casa, bateu uma foto dele e da motocicleta e enviou às autoridades. 

Em nível nacional, os dados divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 revelam o maior número de registros de estupro e estupro de vulnerável da história, com 74.930 vítimas em 2022. 

Em Santa Catarina, no período entre 2018 a 2022 foram notificados 6.313 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes (0 a 19 anos), sendo na faixa etária de 10 a 14 anos a maior taxa de notificação. 

Os dados da Secretaria de Segurança Pública catarinense referentes a crimes sexuais – especificamente estupro, estupro de vulnerável, importunação sexual e violência sexual mediante fraude – indicam um aumento de aproximadamente 45% entre 2019 e 2023 nos registros desse tipo de crime.

Na capital catarinense, foram registrados 403 casos deste tipo de crime até 19 de dezembro de 2023. Em 2022, as notificações chegaram a 432 crimes. Esses crimes representam somente uma fração da violência enfrentada no cotidiano, pois são apenas os notificados às autoridades.

Apesar de serem crimes amplamente conhecidos e recorrentes na sociedade, a luta contra essa violação de direitos humanos enfrenta barreiras impostas pelo machismo, pela misoginia e pelo patriarcado.  

Na região Sul de Florianópolis, um grupo de mulheres se mobilizou em torno do caso da filha de Lobo e outros relatos de crimes contra a dignidade sexual, principalmente nos acessos às praias do Campeche e do Rio Tavares. 

“Nos indigna profundamente a falta de liberdade no ir e vir, no curtir aquele ambiente, parece que é muito restrito para a mulher. A nossa luta se baseia na falta de liberdade e contra os abusos. Apesar de nem sempre haver uma abordagem física, ter uma abordagem psicológica te põe em uma situação vulnerável. A gente luta contra isso para ter o prazer de viver”, afirmou Jucedna Cesane da Silva, representante do grupo de mulheres do Campeche durante uma audiência pública na  Assembleia Legislativa do Estado (Alesc).   

Os casos foram levados ao conhecimento do mandato do deputado estadual Marcos José de Abreu, o Marquito (Psol), composto em sua maioria por mulheres, e motivaram algumas ações institucionais com o objetivo de prevenir e inibir a ocorrência desses crimes. Uma destas ações foi a audiência pública “Segurança nas praias de Florianópolis e do litoral de Santa Catarina”, realizada no mês de dezembro. 

O suspeito de cometer o crime contra a menina de nove anos foi preso em agosto de 2023. Pelo menos doze vítimas suas foram identificadas em Santo Amaro da Imperatriz, São José e Palhoça, na Grande Florianópolis, e em Itajaí, no Litoral Norte. Os registros na Polícia Civil apontam também para crimes de importunações sexuais e estupro, além do estupro de vulnerável contra a filha de Lobo. 

“Desde março, o Marquito vem conversando com Guarda Municipal, Polícia Civil e Polícia Militar sobre essa situação, principalmente em função do estupro da menina. Ele acompanhou a investigação até a prisão do suspeito, que cometeu o crime com ao menos outras doze vítimas. Desde então, há um comprometimento desses órgãos em aumentar as rondas”, afirma Anita Martins, coordenadora de Comunicação do deputado estadual. Solicitamos entrevista com a delegada Isabel de Oliveira da Luz Fontes via assessoria de imprensa, porém não teve retorno até o fechamento da reportagem.

Panfleto explica quatro tipos de crimes sexuais e orienta sobre denúncias. Foto: Rodolfo Espínola / AgênciaAL

Crimes sexuais nas trilhas expõem falhas da segurança pública

Durante a audiência aprovada pela Comissão de Assuntos Municipais, diversas participantes denunciaram casos de assédio, importunação e abuso sexual nas trilhas de acesso à praias de Florianópolis. As forças de segurança foram criticadas pela falta de preparo dos agentes policiais para lidar com as vítimas dessas ocorrências,  ausência de policiamento,  limitação dos horários nas delegacias especializadas, e  demora nos trâmites de investigação e responsabilização dos criminosos. 

As autoridades da segurança pública que participaram da audiência, o tenente coronel da Polícia Militar, André Rodrigo Serafin, e a delegada da Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso, Isabel de Oliveira da Luz Fontes, e destacaram a importância das vítimas notificarem a polícia para pressionar as instituições a investirem mais em ações preventivas.

Nesse sentido, a defensora pública estadual Lorena Cordeiro de Oliveira também defendeu o registro do boletim de ocorrência. Como parte da sua função como defensora, ela orientou sobre os fluxos que devem ser seguidos diante de uma situação de violência, que começam a partir do boletim de ocorrência. 

“Caso a violência traga algum tipo de vestígio, se a pessoa for machucada, ou passar por situações que acontecem em transporte público, do homem se masturbar e pegar o sémen na mulher, isso é algum tipo de vestígio. Então é necessário buscar a delegacia, que vai emitir a guia para fazer o exame de corpo de delito, isso é uma prova importante para a punição”, explicou.

A defensora lembrou a importância de buscar atendimento médico quando a violência envolve conjunção carnal, pois é esse cuidado que irá garantir o acesso à medicação contra as doenças sexualmente transmissíveis e também para evitar a gravidez. E, caso a gravidez não seja evitada, quem é vítima de violência sexual tem direito ao aborto legal no país. 

Para incentivar a formalização das denúncias, o mandato do Marquito, juntamente com organizações da sociedade civil, a Bancada Feminina da Alesc, a Secretaria da Mulher do Parlamento Catarinense, a Defensoria Pública de Santa Catarina, a Alesc, o Observatório da Violência Contra a Mulher e a Procuradoria da Mulher lançou um panfleto e um cartaz que explica quatro principais tipos de crimes sexuais e orienta sobre como denunciar

Segundo a assessoria do Marquito, a partir deste mês a publicação será distribuída com o apoio de diferentes grupos de mulheres do litoral catarinense. Palmas, Praia do Rosa e Florianópolis estão incluídas nesta ação. 

Há uma preocupação dos movimentos e das entidades que o aumento de circulação de pessoas no litoral durante a temporada de verão aumente a ocorrência de crimes contra a dignidade sexual. Somente em Florianópolis são esperados três milhões de turistas até março de 2024.

Mobilização de mulheres denuncia violência sexual nos acessos às praias em Florianópolis
Audiência pública reúne autoridades e movimento de mulheres na Alesc. Foto: Rodolfo Espínola / AgênciaAL

Projeto de lei propõe multa para combater importunação sexual

Após a audiência pública, o deputado estadual protocolou um projeto de lei para ajudar a combater a importunação sexual, que ocorre quando um indivíduo atua sem consentimento para se satisfazer, como tocar outra pessoa ou masturbar-se em público. Esse seria um dos crimes contra a dignidade sexual, junto com assédio, estupro e violação mediante fraude. O crime tem pena prevista entre 1 e 5 anos. Apesar de importunação sexual e estupro terem semelhanças, este último tem como requisito a violência e agrave ameaça para sua caracterização.

O texto da proposta legislativa prevê multa de até R$20 mil a importunadores sexuais. Em casos de reincidência do crime ou se o ato for cometido contra crianças, idosos ou pessoas com deficiência, o valor dobra. Os recursos arrecadados serão destinados a ações de enfrentamento da violência contra as mulheres e aos centros de atendimento para mulheres vítimas de violência em Santa Catarina.

“Esse não é um tema agradável, mas precisa ser enfrentado”, afirmou Marquito durante a audiência pública. O deputado reconheceu que a sociedade está falhando ao lidar com essa questão e falou sobre a necessidade de políticas públicas integradas para enfrentá-la. 

A presença de Mariana Coutinho Hennemann, da Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis, entre as autoridades da audiência, exemplificou a importância desta integração e do enfrentamento do tema para além da pauta da segurança pública. 

A Chefe do Departamento de Unidades de Conservação explicou a importância de olhar para as trilhas de acesso à orla que estão dentro de unidades de conservação geridas pela gestão municipal. Seria o caso do Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, dos acessos na região do Campeche, do Parque Municipal da Lagoinha do Leste, da Lagoa do Jacaré das Dunas do Santinho, do Parque Municipal da Lagoa do Peri e da Galheta.

“Estamos finalizando sete planos de manejo de unidades de conservação. O plano de manejo é equivalente ao plano diretor de uma unidade de conservação. Ele define os zoneamentos, as características e traz normas para essas áreas. Dentro desse trabalho, nós fizemos o mapeamento das trilhas e determinamos quais serão os caminhos oficiais que serão utilizados. Com isso vamos iniciar um trabalho de fechamento e recuperação de caminhos alternativos, que são muito propícios para esse tipo de incidente acontecer”, afirmou Hennemann. 

Além das ações já citadas, a audiência também resultou em uma série de encaminhamentos sobre o tema, trazidos principalmente pelos movimentos de mulheres presentes, como a integração dos sistemas de câmera de monitoramento para facilitar a investigação de possíveis crimes, o funcionamento 24 horas das delegacias de proteção à mulher, a descriminalização social da educação sexual, a formação da segurança pública para atender de forma acolhedora às vítimas de violência sexual, e a ampliação da discussão na Alesc.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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