Esta reportagem é uma parceria com o The Intercept Brasil.
No dia seguinte ao primeiro turno das últimas eleições, a orientadora educacional Juliana Andozio, da Escola de Educação Básica de Muquém, em Florianópolis, foi confrontada pela mãe de dois estudantes. A mulher estava indignada por uma aluna trans de 16 anos, do nono ano, utilizar o banheiro feminino. Conforme relato da orientadora no boletim de ocorrência, a mãe, exaltada, chegou à escola para ameaçá-la, utilizando expressões como “você não vale nada” e “passa pano para coisas erradas dentro da escola”.
Segundo Andozio, seis famílias queriam saber “qual banheiro a aluna trans usava”. “Queriam proibir as discussões sobre gênero na escola. E sobre orientação sexual, diversidade, a questão da mulher, da democracia, do grêmio estudantil”, afirmou. A orientadora foi denunciada à Ouvidoria Geral do Estado por outra mãe por comportamento antiético. A mãe alegou que a orientadora teria chamado seu filho de machista e homofóbico.
Andozio, então, procurou o Núcleo de Educação e Prevenção às Violências na Escola, o Nepre, da Coordenadoria Regional da Grande Florianópolis, para mediação dos conflitos. A desavença foi temporatiamente resolvida – até que, no ano seguinte, as famílias alegaram que Andozio estaria promovendo doutrinação ideológica, com a implantação de um banheiro unissex e a indução de sexualização de crianças na escola.
Nos primeiros dias de 2023, a orientadora educacional visitou as salas para compartilhar informações sobre as atividades planejadas para o período, incluindo a criação do grêmio estudantil. Ela falou sobre o Disque 100, canal destinado à denúncia de violações dos direitos humanos. Ela relatou ter, mais uma vez, enfrentado resistência das famílias.
Em 10 de fevereiro, outra mãe ameaçou agredir a servidora durante uma reunião, questionando seu trabalho na prevenção da violência na escola e desaprovando a conduta da orientadora por afirmar aos alunos que “os pais devem respeitar seus filhos”. “Aqui você é funcionária, na rua é outra coisa […] te pego na porrada”, teria dito a mulher. O caso foi registrado pela orientadora no B.O.
A Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina, então, anunciou em 17 de fevereiro o afastamento da servidora por 60 dias, com remuneração integral, alegando riscos à sua segurança. Uma semana depois, foi publicada a portaria que instaurou um processo administrativo disciplinar contra ela. Andozio é acusada de falta de ética, doutrinação política e de ter chamado um aluno de homofóbico e machista.
Reclamações têm transfobia como pano de fundo
A chefe de padaria Bruna da Silva, mãe solo de dois meninos e da adolescente trans, disse que a escola tentou amenizar a situação para sua família. “Elas [diretora e orientadora escolar] tentavam me proteger. Diziam que eu era tão legal e tinha tanto cuidado com a minha filha. Então, sempre cuidaram muito. Eu soube mesmo [do conflito] quando estourou”.
A filha de Silva está na escola desde a infância e, em 2016, teve seus registros escolares alterados para incluir o nome social. Aos 16 anos, iniciou a transição hormonal com o acompanhamento do Ambulatório Trans de Florianópolis. Mas, nessa fase, evitava usar o banheiro feminino por medo de rejeição. Após uma conversa entre família e escola, a adolescente passou a usá-lo, desencadeando discussões sobre o uso de acordo com a identidade de gênero.
Em resposta às reclamações, a orientadora informou às famílias que a escola tem como premissa ser acolhedora e inclusiva, seguindo a legislação nacional. “Temos uma série de documentos que nos orientam a fazer o debate constitucional das diferentes famílias, de acolher todas as pessoas, independentemente da sua orientação, da sua raça. A Proposta Curricular de Santa Catarina, bem como a Base Nacional Comum Curricular, têm a diversidade como princípio formativo”, afirmou.
A orientadora comunicou o Conselho Tutelar Norte sobre as reclamações em 21 de outubro de 2022. A Secretaria de Educação confirmou ao Intercept que “compreende a diversidade como princípio formativo do currículo da educação básica”.
Apesar disso, as situações de constrangimento a Andozio só aumentaram. Em diferentes declarações nas casas legislativas e nas redes sociais, parlamentares como o vereador João Paulo Ferreira, do União Brasil, conhecido como Bericó; a vereadora Maryanne Mattos, do PL; e o deputado estadual Sargento Lima, também do PL, atribuem à profissional a responsabilidade pela criação de um banheiro unissex e pela suposta indução da sexualização de crianças.
Durante a transição de sua filha, Silva reconheceu publicamente o apoio da escola em suas redes sociais. Ela enfatizou que a escola acolheu a adolescente, mas não interferiu na transição, contrariando as alegações feitas pelos parlamentares.
“Eles [pais e parlamentares] falam como se a Juliana tivesse interferido, tivesse feito uma hormonização. Não. A escola abraçou [minha filha], mas nunca se envolveu nessa transição”, afirmou em entrevista. A instituição tampouco implementou um banheiro unissex – não há orientação normativa a respeito disso na rede estadual de ensino.
Orientadora foi suspensa sem remuneração
Como resultado do processo administrativo, a orientadora especializada em gênero e diversidade foi suspensa por 15 dias sem remuneração, conforme divulgado no Diário Oficial. A comissão de avaliação do caso considerou que a profissional faltou com a ética profissional por usar “um linguajar que não condiz com a sua função”.
Uma testemunha não identificada afirmou no relatório conclusivo que a servidora teria dito “quem gosta de comer banana tem que comer banana, melancia tem que comer melancia e que, se ninguém aceitar, é para discar 100”.
A orientadora contesta a interpretação: “Disse que iríamos fazer o grêmio neste ano e que eles iriam aprender a democracia na prática. Surgiu a pergunta de como seria isso, usei fruta como exemplo pedagógico. Falei que se você gosta de melancia e o outro gosta de banana, você não vai brigar com o seu colega, vocês vão continuar comendo as suas frutas preferidas, vão continuar conversando, que isso é democracia”, detalha Andozio.
O assessor jurídico do Sindicato dos Trabalhadores da Educação e advogado da servidora, Rodrigo Timm, argumentou que a fala foi retirada de contexto. “Se um professor for tolhido por dizer o óbvio, a gente vai estar limitando a liberdade de cátedra, que é um princípio base da educação brasileira”.
O relatório não confirmou o uso de adereços políticos pela servidora, nem sua manifestação política e ideológica na escola. A acusação de doutrinação político-partidária não se sustentou, embora o documento tenha sugerido que o simples uso de uma camiseta do sindicato poderia ser interpretado como manifestação política. Durante a investigação, a orientadora afirmou ter usado a camiseta em sala de aula.
Para Rodrigo Timm, as famílias buscaram limitar a liberdade de expressão da educadora, especialmente relacionada a posicionamentos políticos fora do ambiente escolar. Nas últimas eleições, Andozio fez campanha para a chapa Lula e Alckmin no bairro e nas redes sociais. Em 19 de outubro, o Juizado Especial de Fazenda Pública de Santa Catarina determinou a anulação do processo administrativo. De acordo com a decisão, o processo está repleto de ilegalidades. O estado ainda pode recorrer.
Parlamentares também constrangeram orientadora
Políticos de direita e extrema direita desempenharam papel significativo na promoção de uma narrativa de pânico moral e preconceito contra a orientadora. O vereador Bericó ganhou destaque nas redes sociais e na Câmara Municipal de Florianópolis por ataques à profissional e aos direitos das pessoas trans. O parlamentar tem conexão pessoal com a escola, onde seu filho é aluno, e com a região, que constitui seu reduto eleitoral. Lá, ele conseguiu 1.402 dos 2.172 votos que o elegeram em 2020.
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Em 1º de março, ele utilizou a tribuna durante uma sessão ordinária para mobilizar a base contra Andozio. “Professor é professor. Tem que ensinar matemática, português, biologia. Não ideologia de gênero”, disse. Ele ainda parabenizou o deputado estadual Sargento Lima, que foi responsável por levar as denúncias contra a orientadora à Secretaria de Estado da Educação.
Em um vídeo publicado no seu Instagram em 8 de maio, Bericó questionou a competência da orientadora. “A Juliana tentou implementar no colégio do Muquém o tal do banheiro binário, banheiro trans. Enfim, ela quis botar um menino com a menina, tudo junto. Para ela, tudo vale”. Em outra publicação, ele insultou a orientadora como “mau-caráter”.
Já o deputado estadual Sargento Lima usou a tribuna da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em 15 de março, para engrossar o coro das alegadas induções à sexualização na escola. “Fosse a minha neta, uma das minhas enteadas, meu filho, numa hora dessa, um suplente estaria assumindo a minha vaga aqui, porque eu estaria na cadeia”, ameaçou. Posteriormente, o vídeo foi levado às redes sociais.
Em abril, a vereadora Mayanne Terezinha Mattos também entrou no debate, acusando a orientadora de “doutrinação” nas escolas e alegando que ela prioriza suas agendas políticas em detrimento da educação e da segurança das crianças.
As fake news, o discurso de ódio e as agressões contra a orientadora não se limitaram ao ambiente virtual. Após o seu retorno à escola, em 28 de abril, grupos de pais explodiram fogos de artifício em direção ao prédio da instituição como forma de intimidação. Em 2 de maio, a saída de Andozio só foi possível com escolta da polícia.
Mesmo assim, o seu carro foi alvo de ovos, pedras, limões e xingamentos, até de cunho sexual. Em um dos vídeos do ataque, uma das pessoas grita: “É para matar mesmo!”. Nos dias 4 e 5 do mesmo mês, as aulas noturnas foram canceladas por falta de segurança.
Devido à tensão extrema, a educadora teve que se afastar novamente em 9 de maio. Dessa vez, por motivos de saúde. “Fiquei bastante receosa e constrangida. Eu me senti humilhada. Tive crise de pânico, fui à psiquiatra, e ela me afastou para fazer um tratamento”, contou a servidora.
A educadora registrou sete boletins de ocorrência contra três mães e um pai de estudantes da escola, que representam quatro famílias, além dos três parlamentares. A servidora denunciou crimes de ameaça, injúria, difamação, calúnia e desacato. Os pais também registraram cinco denúncias por injúria, difamação, calúnia e ameaça contra a orientadora.
A Polícia Civil de Santa Catarina informou que há um inquérito em curso na 8ª Delegacia de Polícia. Devido às características do caso e por adolescentes estarem envolvidos, a delegacia não revelou mais detalhes.
Em 26 de setembro, os quatro pais envolvidos e a orientadora chegaram a um acordo, formalizado por meio de um termo de compromisso de respeito mútuo durante uma audiência conciliatória. Até o momento, a audiência de conciliação com o vereador Bericó não foi agendada. O Ministério Público de Santa Catarina investiga a ocorrência que envolve o deputado estadual Sargento Lima.
A educadora busca responsabilização pela violação da sua honra e da sua imagem. “A gente entende que os parlamentares deverão ser condenados por todo o dano moral que geraram. Também requeremos que se retratem nas redes sociais para ter um caráter pedagógico”, explicou seu advogado.
Ao Intercept, o Conselho Tutelar da Região Norte de Florianópolis destacou por e-mail, que, devido à natureza sigilosa dos casos, não pode fornecer detalhes. No entanto, ressaltou parcerias de trabalho com Andozio, sem observações negativas sobre sua conduta profissional.
Fizemos contato com os pais dos estudantes envolvidos no caso. Porém, eles não quiseram contar a sua versão dos eventos. Nenhum dos parlamentares citados quis se manifestar.
Escola sem partido
Em 31 de julho, a portaria nº 2082 criou um grupo de trabalho para acompanhar a escola até dezembro. A medida faz parte de um plano de ação da Secretaria de Estado da Educação para mediar conflitos, visando melhorar o clima organizacional e o relacionamento na escola.
A vereadora Maryanne Mattos, do PL, atribuiu a criação do grupo à Lei 18.637/2023, conhecida como a Lei da Escola Sem Partido, na sessão de 22 de agosto na Câmara Municipal de Florianópolis. “No nosso estado, não pode ter militância”, disse.
Sancionada em fevereiro pelo governador Jorginho Mello, a norma estava sob julgamento em uma Ação Direta de Constitucionalidade proposta pelo Psol no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Porém, na quarta-feira, 18, o judiciário decidiu por maioria pela improcedência da ação.
O doutor em direito e advogado responsável pela ADI, Rodrigo Sartoti, disse que vai recorrer ao Supremo. “A lei é inconstitucional, porque coloca vários embaraços ao exercício da docência, que chamamos de liberdade de cátedra”, afirmou. A Corte declarou inconstitucionais leis inspiradas no Escola Sem Partido em ao menos 10 casos.
Cerca de um ano após a primeira queixa transfóbica relacionada ao uso do banheiro, a situação persiste na escola. Em 4 de setembro, Bruna da Silva e sua filha foram chamadas pelo grupo de trabalho. Segundo a mãe, os funcionários da Secretaria de Estado da Educação sugeriram que a aluna usasse o banheiro das professoras ou para pessoas com deficiência, alegando falta de lei que garanta o uso correspondente à identidade de gênero.
A mãe da estudante relata que a abordagem foi intimidadora, mencionando riscos e desafios enfrentados por mulheres trans. “Fizeram um terrorismo na cabeça dela. Eu me senti muito mal da minha família ouvir todas aquelas coisas. A minha filha tem peito, toma hormônio, é uma mulher. Como ela vai entrar em um banheiro masculino?”, questionou Silva.
A pós-doutora em democracia e direitos humanos da Universidade de Coimbra, Melina Fachin, considera a sugestão do grupo de trabalho discriminatória e segregacionista. “A jurisprudência e os princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana destacam a importância de respeitar a identidade de gênero das pessoas trans e garantir seu acesso igualitário a instalações públicas, como banheiros”, afirmou a advogada, que também é professora da Universidade Federal do Paraná. Para ela, caso seja proibido à estudante usar o banheiro feminino de uma escola pública, o estado estaria cometendo múltiplas violações.
O tratamento social das pessoas trans tramita no STF por meio do Recurso Extraordinário nº 845.779, que tem repercussão geral – ou seja, a decisão afetará casos semelhantes. Até o momento, os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin votaram a favor do direito das pessoas trans usarem banheiros de acordo com a sua identidade de gênero.
Andozio, que até então evitava chamar a família de Silva à escola, diante das dificuldades enfrentadas por ambas, também participou da reunião. Segundo a orientadora, ela e a gestão da escola fizeram “a defesa da estudante e decidimos que não vamos aceitar o banheiro alternativo que eles querem colocar. Ela é uma menina trans, cabe à escola aceitar e incluir”, defendeu.
Durante a reunião, o grupo de trabalho aconselhou a família a redigir uma solicitação oficial à secretaria para garantir o direito da estudante de usar o banheiro feminino. O documento foi enviado em 5 de setembro, e Silva garantiu que, se houver recusa, ela tomará medidas legais.
Andozio destacou uma preocupação que permanece: “Como o uso de banheiros por pessoas trans está sendo abordado nas escolas brasileiras? Não basta apenas conceder o direito ao nome social. É crucial garantir que, ao utilizarem espaços como banheiros, esse direito seja respeitado integralmente”.
A filha de Silva não é a única estudante trans na escola, tampouco é a única aluna trans da rede nacional de ensino. Portanto, a mãe acredita que essa luta não se restringe à menina: “Várias outras mulheres e homens trans têm esse direito”.