Sumário

Nos últimos anos, acompanhamos uma infinidade de ataques ao direito humano, à educação, e aos princípios democráticos. Diversas notícias dão conta das violações sistemáticas à liberdade de ensino e ao pluralismo, com a finalidade de proibir debates sobre igualdade de gênero, sexualidade e raça nas escolas. 

O autoritarismo e os movimentos ultraconservadores travaram uma nova “caça às bruxas”: a cruzada antigênero e diversidades na educação brasileira, que teve início na década de 2010, segundo o relatório “Ofensivas antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação, mobilização social”, lançado em 2021. 

“Instaurou-se um campo de batalha que está, desde então, em efervescência. Começou com um ataque ao Plano Nacional da Educação (PNE), em 2014. E, se desdobrou em uma série de legislações proibindo gênero ou ‘ideologia de gênero’, inspiradas no Escola Sem Partido. Uma dezena de projetos foram apresentados no plano federal, por volta de 2014 e 2015, propostas que se intensificaram depois da eleição de Bolsonaro”, explica Sonia Corrêa, pesquisadora associada à Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), em entrevista ao Catarinas. 

Essa atmosfera contrária à educação que promova igualdade de direitos e combata discriminações de raça, classe e gênero — tendo como principal alvo público a população LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intergênero, Assexual, e outros grupos e variações de gênero e sexualidade) — acabou estimulando perseguições a professoras, professores, estudantes e instituições de ensino. Isso prejudicou as relações entre docentes e alunas(os) e entre escolas e famílias, e favoreceu a censura e autocensura nas instituições de ensino. 

Fáveri foi processada por não aceitar ser orientadora de uma aluna contrária aos direitos das mulheres. Foto: Dieine Gomez

Caso Marlene de Fáveri: um dos primeiros com repercussão nacional 

Um dos primeiros casos de ataques individuais a docentes que ganhou repercussão nacional envolveu a historiadora e professora, atualmente aposentada, do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Marlene de Fáveri, com trajetória reconhecida nos estudos de gênero e feminismo. 

A docente foi alvo de uma ação de indenização por danos morais movida pela ex-aluna e orientanda de mestrado, Ana Caroline Campagnolo que a acusou de perseguição religiosa e ideológica. Em 2018, a ação foi julgada improcedente por falta de provas. “Essa decisão é muito importante para afirmar a liberdade de cátedra e a escola democrática”, afirmou Fáveri em entrevista para o Catarinas em 2018. A doutora em História tornou-se símbolo e ativista do movimento Escola Sem Mordaça, que se contrapôs ao Escola sem Partido (ESP).

Ao olhar para trás e analisar o conflito em que esteve envolvida, Fáveri reconhece que a situação já estava polarizada em 2016. “A ideologia fascista estava tão à mostra e sem nenhuma vergonha, que uma professora universitária ser processada naquele teor virou imediatamente uma causa nacional. Significava o quê? Que a perseguição feita pelas ideologias conservadoras, que eram antifeministas, alcançaram um escopo muito grande”, afirma. 

Mesmo saindo em desvantagem com o resultado do processo, Ana Caroline ganhou notoriedade com o caso. Ela fez palestras apresentando-se como vítima de perseguição em sala de aula, em eventos do movimento Escola Sem Partido. Chegou a expor sobre o tema na Câmara dos Deputados em fevereiro de 2017, durante audiência pública para discutir o Projeto de Lei, chamado por educadores como “lei da mordaça”. 

Discípula do Olavo de Carvalho, Campagnolo foi eleita deputada estadual por Santa Catarina em 2018, ganhando impulso na fama em decorrência do processo, no acirramento do conservadorismo e na onda bolsonarista. Sua atuação na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (ALESC) tem realizado proposições com o objetivo de perseguir educadores que promovem algum debate sobre igualdade de gênero, sexualidade, direitos de pessoas LGBTQIA+, entre outros. No início do seu mandato, abriu um canal informal de denúncias para estudantes fiscalizarem professores em sala de aula.

“Tudo o que tem a ver com o corpo e o direito das mulheres, das pessoas LGBTQIA+ e com o conhecimento da sua sexualidade passou a ser envenenado e combatido explicitamente pelo Escola Sem Partido, que foi capitalizado pelos legisladores e políticos conservadores em conjunto com cristãos, principalmente evangélicos, em nível nacional, estadual e municipal. Essas questões entraram em uma engrenagem, e a narrativa desses grupos transformou isso em uma guerra ideológica, que acabou elegendo um presidente”, aponta a historiadora.

Mateus Oliveira dos Santos foi perseguido por ensinar sobre a não discriminação de pessoas trans. Foto: Arquivo Pessoal

Redes bolsonaristas perseguem professores que ensinam a não discriminação

Outro caso de perseguição, que repercutiu em fevereiro deste ano, foi o ataque via redes sociais de influenciadores alinhados com o bolsonarismo, ao professor de sociologia Mateus Oliveira dos Santos, contratado da rede pública estadual no interior de São Paulo. O motivo foi uma tentativa de censurar a aula sobre a formação social brasileira para o ensino médio, em que o docente explicava o que é diversidade de gênero e orientação sexual.

“Temos alguns alunos transexuais e estava acontecendo uma série de desrespeitos ao nome social, ao pronome, comentários transfóbicos. Eu dediquei essa aula em alguma medida à questão de gênero, pensando nesse contexto que estamos vivendo dentro da escola”, explica Santos.

Um aluno, descrito pelo docente como “conservador, religioso e ligado a grupos bolsonaristas e evangélicos” gravou a aula escondido e difundiu o vídeo. Uma semana depois, o docente foi alertado sobre a exposição da sua imagem nas redes sociais do jogador Maurício Souza, desligado do Minas Tênis Clube por fazer comentários homofóbicos na internet. “Quando eu vi a publicação, o vídeo estava chegando a um milhão de visualizações com apenas duas horas da sua publicação. Eu parei de respirar alguns segundos”, conta. 

Na postagem, o influenciador de extrema direita conclamava os seus seguidores a perseguir Mateus: “Vamos atrás desse professor, ele não dará mais aula pra ninguém!”. Essa publicação deu início aos ataques, que prosseguiram nas redes do senador Flávio Bolsonaro (PSL), e das deputadas federais Carla Zambelli (PSL), Bia Kicis (União Brasil) e Carlos Jordy (PSL).

“Nos primeiros dias, eu fiquei sem comer, sem dormir, com crise de ansiedade, falta de ar, foi bem terrível. Foi traumático pessoalmente, porque a minha família é conservadora e eles pararam de falar comigo, mas no final das contas quem está parado na história são essas pessoas, não sou eu”, desabafa. 

As ameaças e mensagens de ódio recebidas pelo docente foram, em sua grande maioria, enviadas por pessoas que não o conheciam, e que não residiam em Jaguariúna, na região metropolitana de Campinas. Entre o movimento sindical, amigos, professores e alunos, Mateus encontrou apoio e solidariedade para reagir. 
“Eu não consegui tomar nenhuma atitude sozinho. Haviam muitas pessoas me ajudando. Resolvemos tocar essa luta no sentido de politizá-la. Nós fizemos um ato na frente da escola, vieram pessoas do movimento sindical e outros professores. Os alunos fizeram cartazes sobre liberdade de expressão, sobre identidade de gênero e orientação sexual”, acrescenta.

Fernandes foi ameaçado por produzir cartazes sobre preconceito e discriminação com estudantes. Foto: Diorgenes Pandini

Escola Sem Partido: um divisor de águas na educação

Robson Ferreira Fernandes trabalha há onze anos na educação pública. Em suas aulas, as temáticas de gênero, sexualidade e diversidade atravessam diversos conteúdos e fatos históricos. 

“Faço uma criticidade a partir da manutenção de um modelo de sociedade, de uma realidade colocada ao longo do tempo. Esses temas sempre estiveram comigo e me afetam enquanto ser humano, que tem uma vida pessoal e pensa a educação enquanto compromisso ético e constitucional”, defende.

O professor de História atua na Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina com turmas do ensino médio da Grande Florianópolis. Ao longo da sua trajetória foi ameaçado, perseguido e exposto algumas vezes. 

Entre 2014 e 2015, o docente liderou a implementação de um projeto na sua escola, que debatia questões de preconceitos e discriminações relacionadas à gênero, orientação sexual, raça, entre outros marcadores sociais de diferença, através de oficinas de conscientização e sensibilização, e da produção de cartazes para um concurso promovido pelo Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 

Confira os cartazes produzidos

Pela sua atuação, ganhou o Prêmio Nacional de Direitos Humanos do Governo Federal e o título de Educador Destaque em gênero e sexualidade pelo NIGS/UFSC, em 2015. Enquanto era celebrado e reconhecido por um setor da sociedade, sofreu assédio homofóbico e ameaças contra sua vida pelas redes sociais.  

“Eu recebi ameaças graves que me deixaram sem querer sair de casa, eram de uma convicção enorme, com o teor de ‘se continuares a abordar essas questões, teu fim estará próximo’. Fui chamado de filho do demônio em várias ocasiões”, conta. O historiador viu sua saúde mental afetada pelos ataques e acabou deixando essa escola em 2016. 

Dois anos mais tarde, organizou a Semana da Diversidade com o tema “A educação transforma” em um dos maiores colégios públicos de ensino médio da cidade de Palhoça, região da Grande Florianópolis. Com a divulgação do projeto inovador nos canais oficiais da escola, no jornal local e aqui no Portal Catarinas, a onda conservadora mais uma vez atingiu o docente e a escola. 

Com a intenção de retirar seu filho da atividade, um pai foi até a unidade de ensino com um modelo de notificação extrajudicial oferecido no site do Escola Sem Partido. Na prática, o documento não possuía validade jurídica, mas gerava intimidação.

“Teve um divisor de águas, que é o Escola Sem Partido. Até 2015/2016, esses temas eram recebidos em sala de aula de uma forma acolhedora, as (os) alunas (os) sempre foram muito participativas(os), instigantes, com uma visão crítica para entender a sexualidade, as formas de vivência da própria realidade em que estavam”, relembra. 

Em 2020, Fernandes vivenciou outra situação com o pai de um estudante do ensino médio. O grupo deste aluno deveria apresentar uma intervenção sobre “masculinidade tóxica” para o Dia Internacional da Mulher, mas o professor não conseguiu nem ouvir a proposta das (os) estudantes. Foi retirado da sala de aula pelo diretor da instituição de ensino, e teve que ouvir o pai do aluno por mais de duas horas na secretaria. 

“Ele dizia palavras horríveis, questionou a minha sexualidade, teve falas homofóbicas, falou que eu era um péssimo professor e desqualificou o meu trabalho e, enquanto isso, os alunos ficaram duas aulas sem um professor”, lamenta. 

“Esse pai era um pastor e um religioso ferrenho”, acrescenta. Ele já havia questionado o docente anteriormente, quando seu filho ainda não era aluno de Fernandes. Mas, foi por conta deste último episódio de assédio, que o professor registrou um Boletim de Ocorrência e tentou judicializar a agressão. O pai, no entanto, não compareceu à audiência conciliatória.

“Hoje, o meu perfil é de um professor que debaixo dos braços está assegurado por todos os documentos legais, principalmente a Constituição. Eu não consigo fazer o planejamento de nada que não tenha como princípio a legalidade. O primeiro questionamento de pai e mãe que vai me atingir é se esses temas são fundamentados nas legislações”, conclui Fernandes. 

Movimento Escola Sem Partido impulsionou perseguição a docentes e leis antigênero. Foto: Diorgenes Pandini

A quem interessa censurar debates de gênero na educação? 

Os ataques contra docentes e instituições de ensino são promovidos por movimentos reacionários, desde um setor católico e evangélico fundamentalista, a políticos de extrema direita, grupos libertários de direita, militares, grupos fascistas. Eles utilizam a expressão “ideologia de gênero” para incitar um “pânico moral de que a integridade das crianças, da família e da nação estaria ameaçada pelo feminismo”, como explica o Pequeno Dicionário do SPW

“A extrema direita descobriu o potencial do pânico moral, que foi apropriado nessa perspectiva de ataque às instituições, ataque às políticas que enfrentam as desigualdades. O ataque é muito mais abrangente, sistêmico e estrutural, porque visa corroer as bases de uma perspectiva democrática de direitos”, aponta a educadora popular e coordenadora da Ação Educativa, Denise Carreira. 

Essa narrativa, que promove desinformação, preconceitos e medo, foi capilarizada pelo Escola Sem Partido (ESP) em 2015. 

“O Escola Sem Partido abraça oficialmente esse conceito quando coloca no seu modelo de Projeto de Lei a proibição da ideologia de gênero. Como essa questão era muito importante para os evangélicos, acredito que o movimento cresceu quando se aliou à essa luta”, analisa Renata Aquino, integrante do Professores Contra Escola Sem Partido (PCESP). 

Este projeto de lei foi escrito pelo procurador e idealizador do movimento, Miguel Nagib, sob encomenda de Flávio Bolsonaro, que era Deputado Estadual pelo Rio de Janeiro. 

Uma pesquisa realizada por Renata Aquino e Fernanda Moura, do PCESP, por iniciativa da Frente Nacional Escola sem Mordaça identificou 237 projetos de lei de censura à educação no país de 2014 até novembro de 2020. Sendo 214 projetos em nível estadual e municipal e 23 projetos no congresso federal. Dos projetos estaduais e municipais, 62 eram exclusivamente antigênero, enquanto 53 apresentavam alguma menção ao gênero em algum dos seus artigos. 

Infográfico: BeaLake

Para a doutora em educação e professora associada à Universidade de Brasília, Catarina de Almeida Santos, o Escola Sem Partido, desde a sua formação até os seus desdobramentos nas casas legislativas, é indissociável da lógica conservadora. 

“O conservadorismo se utiliza das questões morais e religiosas como agenda ou pano de fundo para conservação das estruturas de poder que nós temos, que é masculino, branco, heterossexual. Isso está na origem do processo de colonização, que é a lógica do poder de alguns poucos sobre continentes e países inteiros. E sobre a dizimação de determinados grupos da população para manutenção deste poder de alguns”, contextualiza.   

Constituição garante pluralidade de ideias 

Os princípios da educação escolar estão previstos em cláusulas pétreas, ou seja, imutáveis da nossa Constituição. Estabelecida em 1988, no início da redemocratização no país, ela assegura a liberdade de pensamento e de expressão  (Art. 5º, incisos IV, VIII e IX) e de ensino (Art. 206, incisos II e III).  A liberdade de ensinar e aprender é direito fundamental tanto do estudante, quanto do docente. 

De acordo com Rafael Kirchhoff, presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI (Anajudh LGBTI), a perseguição de educadores contraria o princípio democrático. “Ela tem sido usada para restringir conteúdos voltados à debates sobre desigualdade social e inclusão de teorias políticas, tanto na sociedade, nos espaços de poder, quanto na própria espacialidade da escola e no acesso à uma educação de qualidade”, defende.

O jurista destaca que a abordagem de temas relacionados à gênero, sexualidade, raça e outros marcadores de diferença está de acordo com os artigos gerais da Constituição. 

“O primeiro deles é a proteção da cidadania (art. 1º, incisos II e V). Outra cláusula geral da Constituição é o combate à pobreza e desigualdade social Art. 3º, inciso III), o combate à discriminação (art. 3º, inciso IV). Não se fala em orientação sexual e identidade de gênero, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) vai fazer uma interpretação posterior [ADPF 132 e ADI 4277] incluindo essas possibilidades”, acrescenta. 

Especificamente em relação à educação temos o artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 

Neste artigo, Kirchhoff observa um ponto crucial relacionado à função da escola de preparar o indivíduo para o espaço público e convívio com a diferença. 

“Para além do espaço familiar, a escola se coloca como uma possibilidade de estabelecer esses conflitos de perspectivas sobre o que é o mundo e o que é a diferença. Ela permite que estudantes tenham uma formação para o espaço público através da cidadania e do contato com pessoas que não pensam igual a sua família ou com seu círculo”, explica.

O Art. 206 também é essencial na defesa de professoras (es) e instituições educacionais contra a pretensão de censura de qualquer tipo, pois nele está previsto que o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (inciso II), “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (inciso III) e “valorização dos profissionais da educação escolar” (inciso V).

Rafael Kirchhoff atuou nas ações do STF envolvendo Escola Sem Partido e “ideologia de gênero”. Foto: Paula Calory

Leis salvaguardam o direito ao debate de gênero e diversidades

Além de ter base legal na Constituição, o direito à abordagem de temáticas sobre gênero, sexualidade e raça na educação encontra respaldo em diversas diretrizes da educação brasileira, assim como normas e tratados internacionais dos quais o país é signatário, como exemplifica o Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas, realizado com colaboração de mais de 80 entidades da educação e dos direitos humanos.  

“Nessa publicação podem ser encontradas orientações jurídicas e estratégias de como responder a novos tipos de ameaças. Também há descrições de estratégias político-pedagógicas de enfrentamento ao acirramento do autoritarismo na educação. Todas as orientações são baseadas em normas nacionais e internacionais e na jurisprudência brasileira”, explica Helena Rodrigues, assessora de Políticas Educacionais da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. 

Em 2014, a Lei 13.005/2014, que consiste no Plano Nacional da Educação (PNE),  foi construída sob muitas disputas de narrativas, com forte incidência do movimento Escola Sem Partido e de fundamentalistas religiosos com a intenção de retirar o termo gênero do texto final.

“Tinha uma previsão específica sobre o combate à desigualdade no ambiente escolar baseada em vários marcadores de diferença que colocava gênero, raça, sexualidade, orientação sexual e até mesmo identidade de gênero. Mas, nas discussões legislativas bastante agitadas por pessoas mais conservadoras e movimentos políticos que estavam explorando essas questões, essas previsões foram retiradas”, destaca Kirchhoff. 

A construção do PNE foi realizada com base em discussões em conferências municipais, estaduais e nacionais. A retirada dessas expressões foi utilizada por estes grupos antigênero como uma proibição de abordar essas temáticas. No entanto, no segundo artigo está mantida uma cláusula geral que prevê a implementação de programas e políticas educacionais destinadas a combater “todas as formas de discriminação” existentes nas escolas.     

A Lei Maria da Penha, de 2006, também estabelece a necessidade de ter programas educacionais voltados ao respeito da dignidade humana com a perspectiva de gênero, raça e etnia para combater a violência de gênero. Rafael Kirchhoff destaca o Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852/2013, Art.17, inciso III, V, VI): 

“Nos seus artigos iniciais, o Estatuto impede a discriminação com base na orientação sexual, na raça, no sexo, na etnia, na deficiência, entre outros marcadores. E determina a inclusão de conteúdos relacionados a esses marcadores de diferença na formação de agentes públicos da informação.”, complementa. 

Especificamente para o debate de raça nas escolas, em 2003 tivemos a aprovação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996), tornando obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira em toda a educação básica.

Precedentes jurídicos estão contra a censura e a favor dos princípios democráticos. Foto: Diorgenes Pandini

STF decide por inconstitucionalidade de leis antigênero e do tipo “Escola sem Partido”

Em diversas decisões, o Supremo Tribunal Federal (STF) vetou a censura de debates de gênero nas escolas. De acordo com o Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas, 16 ações judiciais questionando leis ou práticas de censura inspiradas no Escola sem Partido ou em movimentos antigênero tramitaram no STF nos últimos anos. 

O Manual aponta que em dez desses casos, há julgamento definitivo do plenário do STF a favor da liberdade de ensino e do pluralismo, dos direitos de docentes e estudantes e contra a censura: “As decisões também afirmam a laicidade do Estado e o dever de promover, via políticas públicas de educação, o combate a todas as formas de discriminação por gênero e orientação sexual.”  

O presidente da Anajudh LGBTI, Rafael Kirchhoff, ressalta que a suprema corte se pautou de forma geral nos fundamentos da liberdade de aprender e ensinar. “A liberdade de expressão aparece em muitos deles. A educação democrática é acionada em todas as decisões, além da pluralidade de perspectivas pedagógicas e da vedação à censura”. Em 2019, em uma decisão histórica, o STF equiparou as agressões contra a população LGBTQIA+ com o crime de racismo,  até que seja aprovada uma norma específica para tal. 

No primeiro semestre de 2020, julgou quatro ações que tratavam sobre legislações municipais que proibiam a abordagem de temas relacionados a gênero e orientação em sala de aula. 

A primeira decisão foi com a ADPF 457, em abril daquele ano pelo ministro Alexandre de Moraes, que questionava a Lei n. 1516, da Câmara Municipal de Novo Gama (GO). 

Em maio, a relatora e ministra Carmen Lúcia concluiu o julgamento da ADPF 526, que questionava a legalidade do Art.162 da Lei Orgânica do Município de Foz do Iguaçu, acrescido pela emenda n.47/2018. 

No mesmo mês, foi julgada a ADPF 467, referente a uma legislação de Ipatinga (MG) que excluía da Política Municipal de Educação qualquer referência à diversidade de gênero e à orientação sexual. “O dever estatal de promoção de políticas de igualdade e não discriminação impõe a adoção de um amplo conjunto de medidas, inclusive educativas, orientativas e preventivas, como a discussão e conscientização sobre as diferentes concepções de gênero e sexualidade”, afirmou o ministro Gilmar Mendes no seu voto.

A ADPF 460, de junho de 2020, por sua vez, se referia ao art. 2º do Plano Municipal de Educação de Cascavel (PR). Na decisão, o ministro Luiz Fux chamou atenção para a perseguição de professores (as): 

“A proibição genérica de determinado conteúdo, supostamente doutrinador ou proselitista, desvaloriza o professor, gera perseguições no ambiente escolar, compromete o pluralismo de ideias, esfria o debate democrático e prestigia perspectivas hegemônicas por vezes sectárias.” 

Estes são apenas quatro exemplos dos dez casos julgados. As decisões do STF produzem um conjunto de precedentes importantes contra a censura nas escolas, apontando a inconstitucionalidade destas ações, que violam os princípios democráticos, de tolerância e convivência com a diversidade. 

Leia as outras reportagens da série

Assista ao vídeo do especial Gênero na Escola, nele explicamos porque as perseguições aos professores e professoras são inconstitucionais e o que docentes podem fazer caso sejam alvos de censuras, ameaças e perseguições por abordarem gênero, sexualidade e raça em sala de aula.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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