Um bilhete enviado aos pais para que as crianças vestissem roupas coloridas, pois haveria uma apresentação sobre o tema diversidade na escola, foi compartilhado em grupos de whatsapp e chegou a um pastor vereador que, escandalizado, pediu providências à Secretaria de Educação. Escola, alunas/os e professoras/es foram expostas/os sob o argumento de que os temas diversidade sexual e de gênero não deveriam ser tratados no ambiente escolar. A proposta para que as crianças cantassem e dançassem uma música sobre as diferenças entre as pessoas, que sequer mencionava questões de gênero ou sexualidade, integrava o “Um por Todos e Todos por Um! Pela ética e cidadania”, iniciativa do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) em parceria com o Instituto Maurício de Sousa.
O caso aconteceu na rede de Educação Infantil de Curitiba e é um dos onze descritos no “Manual de defesa contra a censura na escola” que propõe maneiras de lidar com a escalada de cerceamento na educação brasileira. Apoiada pelo Fundo Malala da ativista paquistanesa Malala Yousafzai — a mais jovem ganhadora do Nobel da Paz por defender o direito das meninas à educação —, a publicação on-line tem o aval de mais de 60 organizações sociais e conta ainda com o apoio da Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão (PFDC) e do Ministério Público Federal.
Ainda que as discussões sobre gênero sejam as mais acionadas para promover o pânico moral, o alvo dos defensores do escola sem partido é amplo, voltado a conter qualquer debate que coloque em xeque a ideia de meritocracia — de que a condição social das pessoas está diretamente relacionada ao esforço individual — como explica Denise Carreira, coordenadora executiva da Ação Educativa, organização que idealizou o manual.
Em defesa de uma suposta neutralidade diante do que chamam de doutrinação ideológica à esquerda, pais e alunos são incitados a gravarem as aulas e perseguirem professores em sala e nas redes sociais. Ao contrário do que pregam, porém, as bases do movimento são marcadamente ideológicas, basta olhar para a trajetória do seu fundador e coordenador, Miguel Nagib, atual procurador do Estado de São Paulo. Nagib foi membro do Instituto Liberal de Brasília e articulista do Instituto Millenium, organizações que atuam para promover ideias neoliberais com o apoio de grandes grupos econômicos.
Segundo levantamento do Movimento dos Professores contra o Escola Sem Partido, são mais de 180 leis aprovadas ou projetos de lei em tramitação em municípios e estados. Há também casos de municípios que aprovaram leis, algumas vinculadas aos planos municipais de educação, que proíbem especificamente a abordagem de gênero e sexualidade nas escolas. O Estado de Alagoas foi o primeiro a ter uma lei aprovada, a n. 7.800/2016 suspensa liminarmente em 2017 por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Leia o voto do ministro Luís Roberto Barroso.
Em nível federal, o primeiro projeto apresentado, o PL 7180/2014, de autoria de Erivelton Santana (PSC-BA), ao qual estavam anexadas outras dez propostas, foi arquivado no fim do ano e desarquivado no último 19 de fevereiro pelo deputado federal que também é pastor evangélico, Alan Rick (DEM/AC). Recentemente, o PL 246/2019 foi apresentado pela deputada federal eleita Bia Kicis (PSL/DF), cunhada de Nagib.
“Essa neutralidade que eles pregam, na verdade eles defendem uma ideologia concentracionista, sexista e tudo mais. A Constituição é explícita na questão da superação das desigualdades”, afirmou a representante da Ação Educativa em entrevista ao Catarinas.
Denise Carreira é umas das três brasileiras que recentemente passaram a integrar a Rede Gulmakai do Fundo Malala em defesa da igualdade de gênero e de raça na educação. É educadora popular, mestre e doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Feminista antirracista e ativista de direitos humanos há mais de trinta anos, trabalha pela promoção da igualdade de gênero e raça nas escolas e nas redes educacionais do país. Confira a conversa que tivemos com ela.
Catarinas: Os defensores do escola sem partido têm atuado em todas as frentes: municipal, estadual e federal. Como você avalia que a atuação seguirá em 2019, agora com o apoio do presidente eleito?
Denise Carreira: Eles têm uma estratégia múltipla que tem complementado toda a batalha dentro do Congresso, nos estados e municípios. Há a dimensão cultural do processo que independente das decisões do próprio STF, como a liminar do ministro Luís Roberto Barroso e do Dias Toffoli. Eles continuam um movimento cultural estimulando a desinformação. Mesmo nas câmaras municipais e estaduais a gente não observou o movimento de recuo. Independente de virar ou não uma lei municipal ou estadual, o próprio processo gera ganhos políticos para esse grupo. Eu acho que eles vão atuar também em nível federal, ainda mais com a força política que esse grupo tem agora. A nossa briga foi para que o STF se posicionasse. O julgamento sobre o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5.537 (lei estadual de Alagoas que institui o Escola Livre) foi tirada de pauta. Fizemos pressão pública, lançamos abaixo-assinado, fizemos várias ações em novembro e dezembro. A liminar do Barroso (que suspendeu a lei de Alagoas) é a mais consistente em termos de argumentação jurídica, entra no mérito e apresenta pontos que são fundamentais para fazer a disputa. A liminar do Toffoli aborda mais as questões de responsabilidade, se cabe ao município ou ao Estado tomar a decisão.
Qual o papel dos grupos religiosos nessa frente pelo escola sem partido?
Nessa perspectiva de sacar os grupos religiosos na sua diversidade, tem aqueles grupos que são aliados de uma atuação pela laicidade do Estado. Então é sempre importante dizer isso que tem grupos religiosos anti-fundamentalistas e que têm sido importantes aliados desde a discussão da intolerância religiosa nas escolas públicas, até a ADI do ensino religioso. Essa frente democrática evangélica tem várias lideranças interessantes, que foram do processo de ocupação que a gente acompanhou de perto. Acho muito legal mostrar que tem uma disputa interessante rolando, mas claro que o jogo é desigual. Esses grupos fundamentalistas religiosos estão dentro da igreja católica, mas também entre os evangélicos e tiveram uma atuação forte juntos naqueles pontos lá do kit escola, da descontinuidade do programa saúde na escola e distribuição de preservativo nas escolas de ensino médio. No cotidiano, principalmente os evangélicos fundamentalistas atuaram muito contra a implementação da Lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira. Nesse manual que lançamos a gente tentou mostrar quais são as bases jurídicas para essa disputa. Como ameaçam, eles trabalham com a desinformação e a ignorância. A partir do manual, vamos trabalhar outros materiais que sejam acessíveis a mais públicos.
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O movimento ESP coloca em cena uma possível disputa entre a neutralidade e a ideologia. Qual é o centro do debate no enfrentamento ao escola sem partido?
A nossa defesa está muito centrada na Constituição. A Constituição afirma a pluralidade pedagógica, a liberdade de cátedra, e que a missão fundamental da educação é o enfrentamento das desigualdades e da discriminação, independente da questão de gênero ou não, são esses os princípios constitucionais. Uma escola pública tem que ser o espaço da dúvida, da pergunta, da pluralidade, da pesquisa, tem seu espaço inclusive do conflito de visões. Por isso que também a gente questiona a educação domiciliar, porque as crianças, os adolescentes não são propriedades das famílias. Cabe à escola possibilitar que crianças, adolescentes, jovens e adultos entrem em contato com outras visões de mundo. Que possa ser de fato em um espaço de contato com a pluralidade e isso está ancorado na Constituição. Eu acho que esse é o ponto: não existe uma educação neutra. Quando a Constituição afirma a pluralidade pedagógica, a gente tem que entender que a escola é um espaço de conflito mesmo e do encontro de diferentes visões. As bases curriculares têm como objetivo, com base na Constituição e na legislação educacional, trazer elementos, componentes que devem ser abordados no currículo, as diferentes visões de mundo, teorias. Mas a educação como a gente defende, como um direito social, é uma educação comprometida com o enfrentamento das desigualdades, que é o objetivo maior da Constituição.
Qual é a educação adequada para o país superar sua desigualdade? Uma educação que de fato possa discutir as raízes da desigualdade, como ela se constrói historicamente e quais são os possíveis caminhos de transformação. A Constituição é um documento posicionado em prol do enfrentamento da desigualdade, da afirmação de direito. E a Constituição tem que ser assim em um país desigual como o nosso.
Então, os setores que fazem a frente “Escola sem partido” se posicionam contra essa educação transformadora que poderia mudar as estruturas da sociedade?
Eles se posicionam contra qualquer coisa que mexe na correlação de forças e poder da sociedade brasileira, uma sociedade extremamente concentradora de recursos. Essa política econômica de concentração de renda agora está lá no poder. Eles defendem uma educação para a obediência, uma educação para a hierarquia, uma educação que justamente não mexa nas relações de poder. Quando eu falo contigo eu falo das relações de poder do cotidiano, as relações familiares, relações de gênero, até a macro política econômica, então qualquer discussão sobre economia, desigualdade, eles colocam que o professor está querendo partidarizar.
O começo foi a comparação entre Che Guevara e São Francisco de Assis, feita por um professor da filha de Nagib, em 2004. Depois isso cresceu e agora a principal agenda é fundamentalmente uma posição contrária aos estudos sobre gênero.
É. Eles são assim. Porque assim, havia os grupos fundamentalistas religiosos que estavam batendo na tecla da questão de gênero e o movimento escola sem partido muito focado nas questões anticomunista, antipetista, anti qualquer discussão de desigualdade. Quando esses grupos se unem, aí vira isso, que é essa grande coisa que a gente tem visto nos países da América Latina. Quando há qualquer agenda de esquerda, de enfrentamento da desigualdade, os caras colam no discurso da ideologia de gênero e geram um pânico moral. Eles fizeram isso no acordo de paz da Colômbia. Não havia qualquer relação entre o acordo de paz e a discussão de gênero, mas como era um debate de esquerda, eles perceberam o potencial de pânico moral que essa agenda possui. Eles colam a questão de gênero para desqualificar qualquer pauta que mexe com as desigualdades nos países latino-americanos, profundamente desiguais. Dizem “a ideologia de gênero dá câncer”, ou seja, eles sabem que mobilizam pânico moral porque as famílias muitas vezes não sabem como lidar com todas essas transformações.
Há um movimento transnacional, fortemente posicionado na América Latina, contra os estudos de gênero. O “escola sem partido”, com essa nomenclatura, é uma particularidade do Brasil?”
É, que eu saiba com esse nome sim. Agora, o escola sem partido tem vários elementos muito próximos desses outros movimentos ultraconservadores que estão associados à essa campanha forte em muitos países da língua hispânica na América Latina “Con Mis Hijos No Te Metas”. Eles estão articulados e têm muito a ver com o “escola sem partido”.
Esta campanha contra os estudos de gênero foi um dos principais capitais políticos do atual presidente…
Exatamente, a gente sabe que é algo extremamente conflitivo. Hoje essa visão também está colocada no Ministério da Educação, mas é importante dizer que há muitos educadoras e educadores, gestoras em educação que são contrárias à essa visão. Nós temos lá no manual 60 organizações fundamentais da área de educação e direitos humanos contrárias ao escola sem partido.
Então, nós somos muitos também e estamos comprometidos com a Constituição, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e com o Plano Nacional de Educação. A Lei Maria da Penha também, em seu artigo oitavo, prevê explicitamente a obrigatoriedade da educação de gênero.
Como tem sido a organização para ajudar as pessoas a entenderem essa polarização?
A gente fez ações com outros parceiros, porque sempre trabalhamos junto, como o Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) e o Geledés – Instituto da Mulher Negra. Fizemos materiais, livros, folders para as escolas, atuamos em comunicação, articulação, nos dedicamos a um mapeamento, desenvolvemos cursos, oficinas em muitos lugares. Agora com essa parceria com o Fundo Malala passamos para outro estágio.
Essa parceria com o fundo é recente …
Essa foi a grande novidade. Sabe aquela carta no tarô que aparece e que você não esperava. O anúncio foi em julho quando ela veio aqui para o Brasil. Eles procuraram a gente em maio, nunca tinham entrado na América Latina e queriam apoiar um trabalho contra o fundamentalismo na educação. Veio também um convite pessoal para a gente assumir a rede. O recurso é pequeno, mas o apoio político foi muito importante, porque nesse momento que a gente só apanha ter uma força internacional que fala “olha estamos aqui com vocês” para apoiar uma agenda anti-fundamentalista.
O manual também será impresso?
Por enquanto está disponível no site, a próxima etapa é imprimir e fazer parcerias para formações voltadas a sindicatos e jornalistas. O manual traz onze casos típicos de como eles atuam. A gente trabalhou em equipe, cada um ficou responsável por mergulhar em alguns casos, eu fiquei mais com as questões de gênero. Além da formação sobre o manual, vamos produzir materiais para meninas e meninos de coletivos juvenis, e para grupos familiares. O que nos interessa é reposicionar a discussão de gênero dentro do debate da qualidade educacional, porque a discussão de gênero nesses anos ficou muito sequestrada pela política sem que houvesse debate, sem ser enquadrada como eixo de qualidade educacional. Então a gente quer reposicionar a agenda.
Qual a resposta às/aos professoras/es que pedem ajuda da organização para enfrentar a censura?
Há muitos pedidos, mas não temos estrutura para isso. Fizemos um acordo com a PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão) para tentar encaminhar essa quantidade de casos e construir uma estratégia articulada junto com os sindicatos, Ministério da Justiça e outros parceiros. Tem a nossa turma dentro dessa rede que puxa mais a área internacional. Recebemos a comissão interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA), junto com outras parceiras preparamos um documento sobre o escola sem partido.
Como você avalia decisões como essa da desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta, da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que suspendeu a liminar que impedia a deputada estadual, Ana Carolina Campagnolo, de manter o canal de denúncias?
Um retrocesso, algo que fere frontalmente a base jurídica prevista na liminar do Ministro Roberto Barroso e fere o que já existe acumulado em termos de legislação. A decisão da desembargadora estimula mais uma atmosfera de perseguição, de ameaça no ambiente escolar. Então é um grande retrocesso, que vai contra o que a gente tem de jurisprudência e de acúmulo. Então, o nosso temor é que isso repercuta para outros lugares.
E o que representa a decisão do ministro do STF, Luiz Edson Fachin, de suspender a cautelar da desembargadora?
A decisão do Fachin vai muito ao encontro ao que o ministro Barroso fez em liminar sobre a Lei Escola Livre, de Alagoas. É uma decisão que recoloca o limite para esse tipo de ação. Se a decisão da desembargadora fosse mantida abriria um precedente, então foi importante o STF reafirmar pontos da decisão anterior.
E com esse clima agora de ameaça, você já foi ameaçada ou sofreu algum tipo de perseguição?
Olha, nós estamos nos preparando para isso. Quando a comissão do escola sem partido me convidou para falar lá, foi algo extremamente tenso. Depois eles fizeram desqualificação pública nos canais deles e tudo mais. A nossa estratégia é mostrar que nós somos muitos, somos um coletivo, por isso o manual foi assinado por 60 instituições: para mostrar que é um material que tem um ancoradouro político. A gente tem, inclusive como estratégia de autodefesa, reforçado sempre esse protagonismo coletivo para a gente poder sustentar também o trabalho. Nós tivemos um caso aqui em São Paulo. A gente deu um curso sobre gênero e enviaram uma comunicação que estava proibido discutir gênero na cidade, porque eles tinham conseguido que o tema saísse do plano municipal. Também tivemos ameaça de um dos vereadores pedindo um pente-fino nas nossas contas, nas nossas coisas na prefeitura, como a licença de funcionamento do prédio.
É todo um processo intimidatório…
É um pessoal que joga duro, pesado, não é à toa que nós estamos nos organizando, fazendo essas oficinas de segurança física, jurídica e digital. Realmente, o Fundo Malala também está preocupado com isso e as nossas parceiras internacionais também estão. Eu acho que o nosso caso, que a gravidade da situação é um pouco diferente da situação dos outros países. Todos estão em uma situação complicada, mas esse nível de violência, de agressão e de ameaça que nós defensores e defensoras de direitos humanos estamos vivendo aqui é bem grande.
Atualizada às 13h24 de 20 de fevereiro.