Em novembro de 2023, a advogada e feminista Ariane Leitão, 42 anos, ex-secretária estadual de Políticas para as Mulheres durante o governo de Tarso Genro (PT) no Rio Grande do Sul, apresentou ao Ministério Público uma denúncia de estupro e assédio sexual contra um militante partidário.

Apesar do anúncio recente, há quase um ano a advogada e feminista denunciava a violência da qual foi vítima nas instâncias internas do Partido dos Trabalhadores de Porto Alegre, em 27 de dezembro de 2022. No entanto, relata ter encontrado um ambiente silenciador e adoecedor.

“Em qualquer tipo de violência é difícil se dizer vítima, é difícil se reconhecer e aceitar isso e depois falar. Quando é violência sexual, eu digo como uma sobrevivente de violência sexual, é ainda pior, porque o nível de exposição é muito alto. Trata da tua intimidade mais profunda, mais íntima. Além da gente ter dificuldade de falar, os espaços não querem tratar sobre esse assunto”, afirma a militante do movimento de mulheres.

Nesta entrevista, Leitão descreve os impactos físicos e psicológicos da violência sexual que sofreu, bem como a dificuldade de denunciar e encontrar acolhimento nos espaços políticos que fazia parte, como a tendência interna do PT, Democracia Socialista. A dificuldade em obter justiça torna-se evidente quando Leitão revela que o agressor não recebeu punição, enquanto ela enfrentou desconfiança e ameaça por tê-lo denunciado.

Na denúncia apresentada à Comissão Executiva do Diretório Estadual do Rio Grande do Sul do PT, Leitão usa sua experiência na criação de políticas públicas para mulheres — como a implementação da Rede Lilás e a coordenação da Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios da Assembleia Legislativa — para recomendar a criação de um protocolo de atendimento com perspectiva de gênero, que valorize a palavra da vítima e o laudo psicológico.

Além disso, com o apoio da Themis, organização feminista e antirracista que atua para ampliar o acesso da mulheres à justiça e aos direitos humanos, ela defende a revisão da definição de violência política para incluir a violência contra aquelas que não são parlamentares.

Em nota enviada ao Catarinas, a presidenta do Partido dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul, Juçara Dutra, informou que os encaminhamentos que competem ao Partido estão em curso.

“A partir da data em que a filiada Ariane Leitão protocolou denúncia de estupro junto ao Partido, na primeira reunião posterior ao protocolo, a Comissão Executiva Estadual reuniu-se e deliberou algumas questões, como instaurar procedimento disciplinar interno; suspender cautelarmente a filiação do denunciado; convidar a vítima para participação em reunião de escuta e acolhimento junto ao partido; instalar Comissão de Acompanhamento pela Secretaria de Mulheres; formalizar procedimento investigatório junto ao Ministério Público Estadual informando a denúncia de fato tipificado como crime.”

Confira a entrevista com Ariane Leitão a seguir:

Fernanda Pessoa: Você poderia compartilhar um pouco da sua trajetória, principalmente relacionada à defesa do direito das mulheres?

Ariane Leitão – Eu sempre militei nesse campo, mas de forma mais contundente ocupei a Secretaria de Mulheres do Rio Grande do Sul. Eu fui a última secretária no governo do Tarso Genro. Depois da minha gestão, a secretaria foi extinta, porque trocou o governo. Depois disso veio a minha ida para a Assembleia, onde eu trabalhei seis anos, quando eu coordenei a Comissão de Direitos Humanos e de Serviços Públicos. Nas duas comissões, a gente organizou espaços importantes de escuta e grupos de trabalho para desenvolver pesquisas e debates sobre políticas públicas para as mulheres. Na Comissão de Serviços Públicos [2019 e 2020], eu criei a Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios, através da qual  tive bastante contato com o Portal Catarinas. Era a única iniciativa política no Estado durante um bom tempo para discutir políticas públicas das mulheres. 

Com a extinção da Secretaria, também foi extinto o Conselho Estadual de Mulheres e nós ficamos muito tempo sem nenhum espaço para falar sobre violência de gênero, sobre a necessidade de políticas. A Secretaria foi extinta em 2015. Em 2019, quando eu entrei para a Comissão de Serviços Públicos, a gente criou essa força-tarefa, que é um espaço institucional oficial, hoje, da Assembleia, porque ela é vinculada à Comissão de Segurança e Serviços Públicos. Eu coordenei a força-tarefa durante quatro anos. E saí da coordenação exatamente quando começou esse processo de me distanciar, porque eu comecei a adoecer. 

O mandato que eu estava também disse que eu teria que sair. Deram outra responsabilidade para mim, mas eu adoeci e saí.  O afastamento da vítima faz parte do processo de assédio moral que tu sofres quando resolves denunciar uma situação. 

Eu fui perdendo os espaços os quais eu pensei, organizei, mobilizei. É interessante ver todos os espaços que tu mesmo montaste, continuando todos iguais. A vida continua para as pessoas como se nada tivesse acontecido. Sem nenhum remorso. Muitas vezes, eu publico as coisas sobre a minha denúncia e não tem nenhuma fala de solidariedade.

Ariane Leitão em entrevista para Jornal Sul21, em dezembro de 2023. Foto: Luiza Castro/Sul21

Quais foram os impactos da violência sexual na sua saúde física e mental?

Foi a pior situação que eu passei em toda minha vida. Eu achei que quando meu pai morreu, tivesse sido o pior momento da minha vida, em 2018. E não foi, porque naquele momento de dor absurda, eu fui acolhida. Super acolhida por essas pessoas todas do trabalho da Assembleia, dos amigos. Eu só recebi carinho. A situação que eu passei é mais cruel, porque faz parte do processo enlouquecer a vítima. Faz parte do processo questionar: será que eu estou passando por isso mesmo? Várias vezes eu me perguntei se eu era realmente vítima. Eu perguntei para mim mesmo se eu não estava imaginando coisas.

Quando tu passas por um processo de trauma neste nível, tu consegues ver o quanto o cérebro tem mecanismos para te apagar as situações para se defender. E, ao mesmo tempo, tu acabas perdida nessa própria situação que o cérebro cria. É uma máquina realmente muito perfeita. Essa coisa que acontece da gente perder memória, da gente duvidar da própria sanidade mental é puramente sobre o cérebro lidando com o trauma. Esse é o ambiente interno. 

Outra é o ambiente externo sendo inóspito. Tu vais adoecendo ainda mais, porque tu procura ajuda e as pessoas não dão importância para o que tu diz. Muitas amigas pessoais me disseram ‘ah, mas agora tudo é assédio’. Pessoas que eu tinha na minha alta conta, porque, além de ser uma questão de violência sexual, tu começas a mexer com a estrutura, quando tu denuncias alguém que está dentro da tua rede de relações. Mesmo que eu não tenha tido uma relação próxima, ele [o agressor?] era um militante partidário. Quando tu começas a fazer movimentos, as pessoas começam a questionar a tua sanidade mental.

Após você denunciar o agressor e a violência sexual dentro dos espaços de poder que você ocupa/ocupava, qual foi a postura dos seus companheiros e companheiras e do partido?

Desde 2022, na campanha eleitoral, eu procurava dirigentes da organização interna do partido, que eu fazia parte, dizendo que alguns homens estavam passando do ponto com companheiras. Eu mesmo me senti atacada em alguns momentos. A diferença é que hoje a importunação sexual é crime. Há pouco tempo não era. Para os homens, isso não mudou. Para eles, colocar a mão na tua cintura e parar atrás de ti é normal. Isso aconteceu comigo e com várias outras. Só que eu era referência nesta área dentro da organização e as mulheres vinham me falar. Foram várias. 

Eu comecei a fazer os movimentos em agosto de 2022, fiz a primeira denúncia para os meus superiores de que tinha um cidadão que estava passando dos limites com várias mulheres. Descobri mais de um dentro dessa organização. Fazia denúncia e sempre tinha uma desculpa. Um era porque ele era assim mesmo, outro porque bebia demais. Eu percebi que era uma prática diminuir a questão dos assédios, da importunação sexual que as mulheres sofrem no seu cotidiano, sobretudo durante o período eleitoral. Era um ano que o Brasil estava saindo da pandemia, que o país todo estava com explosão de casos de violência sexual dentro e fora de casa. Eu senti isso no cotidiano e as companheiras vinham dizer. Em 2022, eu fiz mais de uma denúncia na Democracia Socialista, uma tendência interna no partido. 

No final do ano passado, comecei uma iniciativa voltada para as mulheres dentro da organização. O objetivo era criar um mapa das mulheres com experiência em gestão pública para apresentá-lo à direção da empresa. Isso foi super mal visto. Eu vinha de um processo de violência e tentativa de silenciamento, mas o meu corpo começou a dar os efeitos mais sérios quando eu fui vítima da violência sexual em 27 de dezembro. Combinou essa violência política e esse silenciamento em relação à reclamação das outras mulheres, do silenciamento em relação a não aceitarem que ocupassem espaço, ou seja, que se organizassem. 

Aí eu comecei com a cistite, a candidíase, que são diretamente vinculados à violência sexuais. Eu tive grau máximo de bruxismo e muita gastrite. Foram todas as coisas ao mesmo tempo. Também comecei a ter pesadelos. Eu dormia e acordava muito cansada. Tinha pesadelos que iam pegar o meu filho e que iam me atacar. Em fevereiro de 2023, eu voltei para a Assembleia e comecei a topar com o cara. Os pesadelos começaram a ficar muito piores, ou seja, o contato com o agressor começou a me despertar gatilhos. Eu comecei  a ver que tinha outros homens que as mulheres reclamavam e estavam ali nomeados na nova legislatura. Foi mais adoecedor. 

Em março, paralisei o lado inteiro do meu corpo que é a imobilidade tônica, também consequência do estupro. Em maio, eu tive uma menstruação que eu não saí da cama. Combinou as dores da endometriose que eu descobri e da cistite intersticial [inflamação da bexiga]. Eu ficava toda contraída, e tudo foi na pelve, onde eu fui atacada.. Esses foram os sintomas físicos. 

De fevereiro até maio [2023] foram muitos movimentos de violência política comigo, de assédio moral. De eu falar e não ser encaminhado nada.

No meio desse processo, eu fui chamada para construir um projeto de um espaço público federal, do Governo Lula. Na última reunião do projeto, depois que eu construí, disseram que eu não ia executar o projeto, que estava fora. O meu projeto foi plagiado e não me chamam para o cargo. Apresentaram para a ministra um projeto sem o meu nome. É tudo para adoecer a gente até pirar.

Começou a ficar banal eu procurar as pessoas para reclamar das coisas, e ninguém dava bola, ninguém tomava atitude, eu era cada vez mais vitimizada. Depois que eu não fui indicada, eles disseram que era porque estava louca e desequilibrada. Eu ouvi dessa organização: abaixa a cabeça e vai trabalhar. Só que eu não aceitei. E nisso começam os sintomas psíquicos. Eu comecei a perder minha memória, a não conseguir elaborar frases. Aí eu tive depressão, ansiedade generalizada, dores absurdas no corpo inteiro. Eu achava que era um processo físico, mas era tudo emocional. 

Na terapia, fizemos uma linha do tempo das violências. Em junho, comecei a psicoterapia e a fisioterapia pélvica, que salvaram a minha vida. A fisioterapia foi o espaço que, em algumas sessões, eu me descobri vítima de violência sexual. Eu achava que era um assédio sexual, eu me neguei a ler o tipo penal do estupro. Eu não queria aceitar. Elas foram com muito cuidado me mostrando o que eu vivi.

As mulheres estão tão acostumadas a ter uma carga emocional tão cruel na vida delas, que antidepressivo e ansiolítico está na receita básica para aguentar o cotidiano. 

Até tu entender que isso é uma violência agressiva, demora. Eu me dei conta que eu vinha em um ambiente de violências. O estupro é uma tortura, tanto que é comparado a um crime hediondo. Ele não prescreve. De junho a agosto, eu consegui entender. Em agosto, quando voltei do recesso parlamentar, eu estava decidida a denunciar. Eu procurei mulheres históricas dirigentes da organização para contar e o que eu ouvi? ‘Tira um ano sabático, quem sabe tu vais fazer concurso, vamos falar desse caso mas não vamos dizer que é tu.’ As terapias me ajudaram a me colocar no meu lugar, que é de vítima, mas não é em casa, como querem. Aí eu fui pedir ajuda para denunciar, e não recebi nenhuma. Tentaram me silenciar, como era a prática da organização que eu só vim a conhecer depois. Eu comecei a procurar e reclamar e começaram a aparecer mulheres afastadas por doenças físicas e mental ou foram para outro estado. Eles afastavam as mulheres que denunciavam. 

No mês de agosto eu avisei o dirigente da tendência que eu iria denunciar e contratei o escritório de advocacia. As advogadas assumiram a linha de frente e começaram a negociar com o partido para organizar a denúncia interna primeiro. Elas me convenceram de que não era uma questão entre mim e o agressor, era o PT contra o agressor. Não foi num espaço particular meu e do agressor, foi em um espaço de trabalho partidário. Era uma celebração em que ele me pediu uma carona e me atacou. 

Imagina: ‘ex-secretária de mulheres denuncia um colega do PT’. Isso viraria um elemento para a extrema-direita usar contra o partido, e eu sairia como ruim. Então, nós negociamos com o partido para que reconhecessem essa violência. Nós conseguimos que o PT representasse antes de mim ao Ministério Público, ele fez isso obrigado e me ameaçando. Eles queriam que eu fizesse BO sozinha, mas as minhas advogadas insistiram. Embora o estatuto estivesse totalmente desatualizado, ali dizia que o partido tinha que fazer isso. No entanto, na representação, eles não colocaram o nome do agressor, ou seja, ele continua sendo protegido. Eles só botaram o meu nome. Seguiu a revitimização.

Em junho, eu considerei a internação com a minha psiquiatra pelas dores, eu não conseguia falar, meu cérebro bugou total. A segunda vez que eu considerei a internação foi quando o PT disse que, ou eu fazia a denúncia ou não teria Comissão de Ética. Como é irônica a vida. Além de eu ter sido Secretária de Mulheres por este partido, ter sempre ocupado espaços públicos vinculados a direitos humanos e direito das mulheres, eu tinha sido eleita, em 2022, a Secretária de Mulheres do PT.  A posse seria em 21 de dezembro de 2023. Nem sendo eleita para esse cargo eu fui respeitada. Imagina como é para uma militante de base, que não é dirigente? Aí eu considerei me internar novamente porque tudo ruiu. Primeiro a organização me abandonou, depois o PT. A diferença é que o PT tem o Estatuto. 

Eu entendi que isso tudo é um extremo silenciamento de vítimas de violência. Não só mulheres, mas vítimas de racismo, LGBTfobia, assédio moral na sua maioria. Várias nem chegam a denunciar, porque não tem espaço para atender as vítimas e o espaço que tem, a Comissão de Ética, é totalmente inóspito.

Ato pela volta da Secretaria de Mulheres e da Rede Lilás no marco dos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher de 2023. Foto: Arquivo Pessoal.

Como uma mulher que foi vítima de violência sexual e tem experiência na construção de políticas para mulheres vítimas de violência, quais mudanças você considera essenciais na estrutura dos partidos, neste caso o PT, e nos espaços da política institucional para garantir proteção e as condições para que  vítimas de violência sexual possam denunciar e serem acolhidas?

O que a gente reivindicou nesta denúncia? Um protocolo com perspectiva de gênero. A gente reivindica a valorização da palavra da vítima, valorização do laudo psicológico. Há um grau de ausência técnica do partido e das pessoas que são destacadas para a tal da Comissão de Ética. 

Como Secretária de Mulheres eu criei a Rede Lilás que existe até hoje. Dentro da Assembleia idealizei a Força-Tarefa. Tanto no executivo como no legislativo, eu pensei, escrevi e idealizei. Eu cobrava por um protocolo, uma política para atender as vítimas de violência. Mas eu não era secretária, não poderia tocar. Eu fui eleita, e não pude assumir porque fui vítima de estupro. Eu sabia que precisava dessa tal política, e não pude assumir a secretaria, porque eu fui a vítima. Eu abdiquei de estar nesse ambiente, porque não quero estar em um ambiente que me adoeça. 

O PT é o maior partido de esquerda da América Latina, um dos maiores do Brasil. É óbvio que existem várias situações de violência interna. É óbvio que vai ter mais no PT do que no Psol, que é um partido menor. Ele é um reflexo de uma organização da sociedade brasileira de trabalhadores, de LGBTQA+, de negros, de pessoas com deficiência, feministas. Se a sociedade tem essa face violenta, isso vai acontecer também ali dentro. Só que tem uma dificuldade do partido reconhecer que nas nossas organizações nós temos criminosos. Criminoso não é só corrupto. Tem corrupto no PT, assim como em qualquer outro partido, mas isso não é o principal tipo de crime, que é contra a vida, a dignidade de filiadas e filiados.

Eu defendia que fosse feito um protocolo de atendimento para vítimas de violência, mas não sabia como faria, eu só dizia que estava à disposição para montar. Seria uma política de prevenção à violência e atendimento às vítimas. Qualquer tipo de política sobre violência contra a mulher precisa estar vinculada sempre à prevenção. Isso, inclusive, economiza dinheiro e assegura a dignidade das vítimas. Não podemos trabalhar somente em consequência, porque nós não somos um caso de polícia. Somos um caso de direitos humanos.

O patriarcado estabeleceu que a política pública para a mulher começa na polícia, isso está errado. 

Quando se cria o Ministério das Mulheres, as coordenadorias e secretarias, nós pensamos em políticas públicas para mulheres a partir da perspectiva de direitos humanos e começamos a virar o jogo. Isso porque os governos de direita, os liberais, não colocam os nossos direitos nessas condições, parece que direitos humanos é somente coisa da esquerda. Sempre falei que nós precisamos de um protocolo que trabalhe a prevenção e o atendimento a essas vítimas, que precisamos entender como acolher as mulheres na perspectiva de alguma reparação. 

Essas mulheres estavam fazendo campanha, construindo o partido. Foi dentro do espaço político, portanto foi violência política. A legislação de violência política é muitíssimo limitada, porque restringir a parlamentares é um absurdo completo. As mulheres que não são parlamentares são vítimas de violência e muito menos identificadas, até porque essas mulheres estão no cotidiano do partido, onde a câmera não pega. Estamos fazendo uma fala e todo mundo se levanta para tomar café. Vamos tentar falar e um cara nos interrompe, ele pega a tua ideia, que você comentou com ele antes de entrar na reunião. 

Tudo isso acaba desembocando nessa normativa legal que precisamos discutir. Desde 17 de novembro, que eu entreguei a denúncia no Ministério Público por assédio sexual, venho recebendo um apoio maravilhoso, que é da Themis. Uma organização feminista e antirracista, com mais de trinta anos de atuação. Elas prestam principalmente assessoria jurídica e acompanhamento técnico. A ideia é que a partir do meu caso, e de outras vítimas que estão me contatando, a gente monte um case, uma proposta de normativa, para apresentar aos partidos, que provoque  os legisladores nacionais de que precisamos aumentar o escopo da violência política. 

O tipo penal de violência política não pode se restringir a parlamentares. Têm que se dirigir a dirigentes, filiadas. E não somente partidos, mas sindicatos e associações. Tem que ser uma normativa semelhante ao que foi a Maria da Penha.

A relação partidária/trabalhista é semelhante à doméstica, como se fechasse uma porta e dissessem: daqui para dentro sou eu que mando.

É sobre criar uma política para atender mulheres, escutá-las e ajudá-las a fazer o encaminhamento com a polícia.  

Isso vai ter que acabar, porque os partidos, organizações e sindicatos não podem ter processos internos ao arrepio da lei, existe lei nesse país. Existe protocolo com perspectiva de gênero para os julgamentos, existem decisões do Superior Tribunal de Justiça que definem situações, por exemplo, de violência com autor conhecido, que reconhecem a palavra da vítima, o laudo psicológico, o tempo para denúncia, que não existe uma vítima perfeita, reconhecem a imobilidade tônica dos segundos ou minutos que você não oferece resistência. Aquilo não é um sim, a pessoa não se mexer não é sim. Tem jurisprudência. 

É parecido com uma violência familiar, porque o partido é extensão da família. No meu caso são 24 anos de atuação. Minha mãe foi fundadora do partido, meu irmão militou ali. Quando tu é vítima é que nem a família que não aceita que o familiar é o abusador. Se não vai por bem, tem que ser por constrangimento. E não é sobre o PT.

A misoginia, o machismo e o patriarcado não têm ideologia. O patriarcado é a estrutura da sociedade, assim como o racismo estrutural.

Isso é em todo lugar. Para enfrentar isso o PT fez paridade, fez cotas. Já estamos na frente dos outros partidos. Eu falo “estamos” porque continuo filiada. 

Quem sabe isso tenha como consequência uma nova lei ou uma mudança na lei de violência política. Dizem que daqui a pouco eu vou virar nome de lei, mas se para isso acontecer eu tenho que passar por tudo o que eu estou passando, eu ficaria no anonimato no resto da vida. A Maria da Penha teve que ser eletrocutada para ter uma lei no Brasil. Atualmente, acho que está levando menos tempo para que uma vítima de violência tão extrema, como o caso dela, para a gente convencer a sociedade e os dirigentes desse país que precisamos transformar isso em normativas que inibem a violência contra as mulheres. O próprio caso da Mari Ferrer foi mais rápido. No ano seguinte ao caso, tivemos a lei. 

Essas questões me dão a certeza de que quem faz as mudanças são os movimentos sociais, não são os partidos. Nós só conseguimos que a importunação sexual virasse crime, que o tipo penal do estupro aumentasse, que se tornasse um crime imprescritível e hediondo, porque as feministas não pararam de denunciar, constranger e exigir mudanças. Assim como outros movimentos, como o antirracista, o LGBTQIA+ em relação às políticas para essas populações. Se acontece alguma mudança no país é a luta de muitas pessoas nos movimentos sociais. Tem uma frase da Maria da Penha que eu vou repetir: quem está me salvando são as feministas.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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