Sumário

“Se você olhar o Escola Sem Partido, o homeschooling e a militarização, todos seguem a mesma lógica. Não são projetos em separado. São faces de uma única moeda”, aponta a doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), Catarina de Almeida Santos, em entrevista para o Catarinas. 

Desde o início das ofensivas antigênero no Brasil, na década de 2010, a disputa se deu com mais evidência na educação brasileira, conforme mostra o relatório “Ofensivas antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação, mobilização social” de  2021. O que antes eram mobilizações sociais e campanhas passou a ser política de Estado, a partir de propostas legislativas e programas de governo.

“As propostas das escolas cívico-militares e da educação domiciliar são desdobramentos, que nascem da campanha inicial, que era mais específica e estava voltada para gênero e ideologia na educação. Isso cria um ambiente favorável para proposições que são muito mais sistêmicas e estruturais, e estão inspiradas na mesma matriz ideológica”, explica Sonia Corrêa, pesquisadora associada à Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA). 

O Escola Sem Partido (ESP), apresentado na primeira reportagem do especial Gênero na Escola, colocava em primeiro plano o direito dos pais de decidirem sobre os conteúdos debatidos em sala de aula. O mesmo argumento é o cerne do Projeto de Lei que pretende regulamentar a educação domiciliar (homeschooling), aprovado pela Câmara dos Deputados em maio, e que deve ser votado no Senado até o fim do ano.

Renata Aquino, professora e pesquisadora que estudou a fundo o movimento junto com os Professores Contra Escola Sem Partido (PCESP), acredita que o ESP serviu como um nó central para pensar a política educacional sob uma perspectiva conversadora, a partir dele outros projetos surgiram.

“O Escola Sem Partido é conveniente para quem é anarquista, para quem é ultraliberal, para quem é muito afeito à armas. Ele tem porta de entrada para todos os vértices da direita, tanto que ela foi se consolidando junto com ele”, analisa a professora. 

Enquanto o homeschooling confirma a ideia de que o direito dos pais é superior ao direito das crianças e adolescentes, da sociedade e aos princípios do próprio Estado, as escolas militarizadas atuam para controlar os corpos, combater a suposta “doutrinação”, “ameaça comunista” e “ideologia de gênero”. 

Essas novas modalidades alteram os pilares fundamentais da educação pública e democrática. Não à toa, a educação domiciliar é uma promessa de campanha assumida por Bolsonaro em 2018, e o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) foi criado pelo poder executivo um ano mais tarde.

Ziggiotti considera o ensino domiciliar um retrocesso no direito das crianças e adolescentes. Foto: Instituto E-lucidate

Pacto para promoção dos direitos das crianças e adolescentes

Segundo a doutora em Direitos Humanos e Democracia, Lígia Ziggiotti, vice-presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI (Anajudh LGBTI) para entender o retrocesso dessas modalidades de educação é necessário analisar o direito das crianças e adolescentes antes e após a Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). 

“Dentro do texto constitucional se produz um salto de entendimento sobre as crianças e os adolescentes que é absolutamente inédito. Eles passam a ser considerados sujeitos de direito. Se você buscar a legislação anterior à essa data, você vai ver pouca referência ao que era o direito de uma criança e um adolescente. Vamos ter um Código de Menores, que era formatado basicamente para punir e jogar em uma instituição”, explica Ziggiotti. 

Com a implementação do ECA foram revogadas as Leis n.º 4.513, de 1964, e 6.697, de 10 de outubro de 1979 (Código de Menores), ambas vigentes desde o período militar. Essas legislações basicamente dividiam a infância em duas categorias: menores que eram responsabilidade do Estado e menores que eram responsabilidade da família.   

“O código falava o que era para fazer com crianças e adolescentes que causavam problemas sociais. Não era só tratado sobre menor infrator, era desde criança em situação de rua, até uma criança com deficiência, de um espaço periférico da cidade, ou que não se adequava na escola. Se a família não desse conta, era jogada na Febem. Era um modelo para colocar crianças em instuições muito parecidas com penitenciárias de adultos”, analisa a doutora em direitos humanos. 

Esse entendimento foi superado pela Constituição Cidadã. O art. 227 determina que a criança, o adolescente e o jovem têm absoluta prioridade ao “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. 

Além disso, também define que é obrigação não somente da família, mas da sociedade e do Estado assegurar estes direitos, além de colocar o menor a salvo de “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A ideia é ter agentes estatais, família e sociedade em uma cooperação que garanta o pleno direito dos menores.

Catarina de Almeida Santos em audiência pública sobre educação no Distrito Federal. Foto: Nina Quintana

Educação domiciliar é estratégia para corroer direitos 

No primeiro semestre de 2021, a violência contra crianças e adolescentes atingiu o número de 50.098 denúncias no Disque 100, um dos canais da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (ONDH/MMFDH). Desse total, 81% das violências ocorreram dentro da casa da vítima e foram praticadas por pessoas próximas ao convívio familiar. 

Um dos papéis fundamentais da escola é justamente proteger integralmente alunas e alunos contra diversos tipos de abusos, inclusive a violência sexual e trabalho infantil, que pode ocorrer dentro de casa. E, com o ensino domiciliar, essas violências ficariam ocultas ou difíceis de serem identificadas. “É uma violação muito frontal e explícita aos direitos das crianças e adolescentes”, aponta a professora Renata Aquino, integrante do grupo de pesquisa Professores Contra a Escola Sem Partido. 

Especializada na temática do direito à educação, Catarina de Almeida Santos adverte que é necessário questionar os motivos que levam pais e responsáveis a não quererem que seus filhos frequentem a escola. 

“Que medo é esse que se tem da escola? O homeschooling não quer encarar a diversidade, quer esconder todas as mazelas e violências que essas crianças e adolescentes sofrem, querem a manutenção dessa estrutura”, assegura Santos. 

Uma reportagem da Agência Pública, de julho deste ano, acendeu um alerta sobre o perfil de quem apoia esse projeto, revelando que um treinamento oferecido pelo maior grupo de promoção da educação domiciliar promove a violência física como ferramenta educativa, contrariando a lei brasileira de 2014, que estabelece o direito da criança e do adolescentes de serem educados e cuidados sem uso de castigos físicos ou de tratamento cruel e degradante. 

Ao contrário do que defendem grupos conservadores e religiosos, o homeschooling é rejeitado pela maioria da população. Oito a cada dez pessoas (78,5%) discordam dos pais terem o direito de tirar seus filhos da escola para ensiná-los em casa, segundo uma pesquisa da Datafolha, realizada com o  Cesop-Unicamp sob a coordenação da Ação Educativa e do Cenpec. 

Em um país onde a fome atinge 33 milhões de pessoas, e a merenda escolar é a única refeição de muitas crianças e adolescentes, o Governo insiste que a educação domiciliar é a sua prioridade na educação. E, se aprovada, a nova modalidade estaria competindo a distribuição de recursos com a tão sucateada educação pública. 

A doutora em educação, Catarina Santos, acredita que esse projeto está vinculado com a intenção do Estado de negar a sua obrigação de garantir a escola e a valorização docente. “Essa ofensiva de cortes na educação, de ataques, de desvio do pouco dinheiro que já tem para a escola, é a partir desses lugares que esse projeto é defendido. O Estado que sequer faz o censo para garantir que toda criança esteja na escola, que nega as condições para que elas estejam na escola, imagina se ele vai acompanhar se tem gente estudando em casa ou não!?”, questiona. 

Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), apenas 15 mil crianças acessam o estudo formal em casa. “Mas não é somente uma questão de minorias como os defensores dessa lei dizem, o que eles querem modificar na legislação abre a porteira para várias violações e mexe com os princípios básicos da educação”, alerta Denise Carreira, coordenadora da Ação Educativa.

A concessão que o Estado pode abrir para a família decidir, também pode abrir para segregar: tanto em relação a gênero, raça, sexualidade, orientação, como também em relação a pessoas com deficiência. 

“No contexto de crescimento desses grupos [conservadores e religiosos], as crianças ficam subordinadas. A educação domiciliar ataca os direitos das crianças e adolescentes e tantos outros direitos, além de reafirmar as culturas tradicionais de gênero”, garante Denise. 

Sob essa modalidade, os responsáveis teriam controle sobre todos os aspectos da vida da criança e do adolescente, podendo restringir o aprendizado à sua visão de mundo, impedindo esse sujeito de ter uma formação plena e diversa. 

“Quando o homeschooling aparece para dizer que a escola se torna uma opção dos pais, você está dizendo que as crianças são objetos de escolha novamente. Elas não são mais sujeitos de direito à educação, à profissionalização, à cultura, à saúde. E, sim, passa-se mais uma vez a colocar esses direitos como um cardápio de escolhas de adultos, sobre o que eles querem fazer com essas crianças e adolescentes que estão sob sua autoridade”, critica a jurista Lígia Ziggiotti. 

Ela acrescenta: “O Governo Bolsonaro diz que as escolas estão deformando a mentalidade das crianças e adolescentes, que os pais estão sendo saqueados nos seus direitos, promovendo uma tensão nessa aliança [Estado, família e sociedade] que é muito estratégica para desfigurar direitos”. 

Em defesa dos direitos das crianças e adolescentes e pelo investimento nas escolas públicas, mais de 400 entidades e redes da sociedade civil assinaram um manifesto contra a educação domiciliar.

As escolas cívico-militares são uma das faces da cruzada antigênero.
Mural da Consciência Negra na CE da Estrutural no DF que associa a Polícia Militar ao racismo. Foto: Arquivo Pessoal

Militarização: controle dos corpos e comportamentos 

Enquanto o homeschooling insiste em priorizar o direito dos pais, tratando as questões no ambiente privado e doméstico, o projeto das escolas cívico-militares reforça a ideia de que algumas infâncias são responsabilidade do Estado. No caso, um Estado ditatorial.  

“O projeto das escolas cívico-militares é sobre colocar policial militar aposentado nas escolas de crianças e adolescentes pobres. É a reiteração do imaginário de que as crianças e adolescentes estão sujeitos a um Estado autoritário, que não está para garantir direitos, mas para colocar na rédea curta, impor uma disciplina, implementar um cotidiano de violência”, declara a jurista Lígia Ziggiotti.  

Apesar de não serem uma novidade, as escolas cívico-militares ganharam um incentivo nos últimos anos pelo Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), lançado em 2019. No modelo, a gestão escolar administrativa e de conduta seriam de responsabilidade de militares e/ou profissionais de segurança, enquanto a gestão pedagógica permaneceria sob os cuidados de pedagogos e profissionais da educação.

“As formas de militarização são diferentes em cada estado. O que permanece em comum é a pedagogia do quartel, a rigidez das normas. Quando você olha os princípios da área da educação, eles são diametralmente opostos. O princípio da área de segurança é obediência e hierarquia. O da educação é o contrário: é liberdade de ensinar e aprender, igualdade de acesso e permanência, gestão democrática”, reforça a educadora Catarina Santos, coordenadora da pesquisa “Expansão da Militarização da Educação no Brasil” desenvolvida na Universidade de Brasília. 

O discurso favorável à implementação dessas escolas acaba incitando o medo em relação a determinados temas como “gênero”, “comunismo” e “doutrinação” para promover uma necessidade de implementar uma escola que tenha como função disciplinar e manter a ordem. 

Para Denise Carreira, da Ação Educativa, a militarização das escolas acaba reeditando esse falso combate à “ideologia de gênero”, que na verdade é a busca permanente pela normatização de privilégios:

“A militarização no sentido mais bruto, afirma essa masculinidade tóxica que é hostil às mulheres, às garotas, à população LGBTQIA+, aos jovens negros que questionam determinados poderes de autoridade”, afirma. 

“A escola se alimenta da dúvida e da pergunta, a formação crítica e criativa exige pesquisa, questionamento e pensar livre. O poder militar não favorece nada disso, pelo contrário, entende isso como uma ameaça, como uma afronta. É por isso que eu chamo de educação formada para uma ordem desigual”, complementa Carreira. 

Em abril deste ano, uma menina negra de 13 anos foi impedida de entrar na sua escola cívico-militar, na região metropolitana de Salvador (BA), por estar sem o coque, penteado padrão exigido pelo colégio. A proibição foi dada por um dos instrutores, um policial reformado, segundo reportagem da Folha.

“A lógica do quartel é que todos vestem a mesma roupa, têm o mesmo corte de cabelo, fazem formação. O quartel uniformiza os corpos e comportamentos, se você descaracteriza, você é punido, e a mesma lógica é levada para a escola”, comenta Catarina Santos. 

Em outro caso de novembro de 2021, no Centro Educacional 01 da Estrutural, no Distrito Federal, um mural feito por alunos para o Dia da Consciência Negra incomodou a direção militar do colégio. As imagens, que ilustravam a Política Militar com atitudes racistas e com símbolos nazistas, desagradaram um dos agentes que trabalhava na escola, que pediu sua retirada. Recentemente, a vice-diretora que recusou retirar os trabalhos foi exonerada do cargo.  

“Quando temos civil e militar, sabemos quem dá a última palavra. Não por um acaso a vice-diretora foi demitida e o policial permaneceu na escola”, assegura Santos. “A liberdade de ensinar e aprender não está dada. Quando uma escola militarizada vai discutir racismo? E poder dizer que a polícia é racista e mata jovens, pretos, periféricos, meninos?”

Em outro caso em uma escola de Goiás, estudantes foram proibidos de usarem casacos que não fossem os uniformes, mesmo sob temperaturas chegando a 6ºC. Segundo relatos de alunas(os), eles foram colocados do lado de fora do colégio e obrigados a tirarem o agasalho que descaracterizava o uniforme. O subcomandante teria dito que aquele que não tinha dinheiro para adquirir o agasalho da escola “não é merecedor do colégio militar”. 

“Quando a polícia vai para a escola, o que ela quer? Ela quer que a escola funcione como quartel, e os estudantes se comportem como soldados. Mas os estudantes não são soldados, e a escola não é quartel. Aqui começa o conflito. A escola militarizada é a antiescola”, argumenta a doutora em educação.   

A entrevistada constata que nesse modelo de escola, implementado principalmente em áreas periféricas, são criados mecanismos de transferências educativas e compulsórias para expulsar quem foge ao padrão estabelecido. Existem normativas e manuais específicos para cada instituição, e o comando disciplinar analisa caso a caso. 

“Existe um padrão hétero, branco, masculino na nossa sociedade que precisa ser questionado pela escola pública. Quando você se uniformiza, você mata aqueles que são diferentes”, ressalta.

Somada a todas estas questões, segundo pesquisa encomendada pelas organizações Cenpec e Ação Educativa, publicada em junho, sete a cada dez brasileiros confiam mais em professores que em militares para atuar dentro da sala de aula. Além disso, a disciplina não está entre os principais problemas na educação apontados pelas pessoas entrevistadas (10%), que se preocupam mais com a falta de investimento do Governo (28%) e a baixa remuneração de professores (17%).

Infográfico: BeaLake

Novas modalidades ameaçam a democracia 

As ameaças e perseguições a professores e instituições de ensino, a avalanche de legislações a partir do modelo Escola Sem Partido e contra o debate de gênero, assim como essas propostas de modalidades de ensino domiciliar e cívico-militar são iniciativas que corroem direitos fundamentais e humanos e a própria democracia. 

A Gestão Democrática da Escola, princípio definido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Art.3º. Inciso VIII) e pela Constituição Federal Art. 206. (Inciso VI) que consiste na construção da educação através da participação horizontal de toda a comunidade escolar, fica absolutamente comprometida no homeschooling e nas escolas cívico-militares. A função do docente e sua valorização (Constituição Art.206, Inciso V e LDB, Art. 67) é esvaziada de sentido. 

Um dos grandes pensadores da educação pública democrática brasileira, o educador baiano Anísio Teixeira, já havia entendido a importância da educação em um Estado democrático em 1936, em seu livro Educação para a Democracia: “Só existirá uma democracia no Brasil no dia em que se montar a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a escola pública”. 

“A educação é o direito dos direitos, porque vai nos dizer que temos direito e vai nos dar as ferramentas para lutar por ele. Se você garante uma educação pública básica de qualidade que consegue desenvolver plenamente cada sujeito, formar para viver em sociedade de maneira diversa, você mexe nessa estrutura e tira a naturalização da barbárie com que nós vivemos”, defende Catarina dos Santos.

Na visão da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), todos estes ataques fazem parte de um projeto maior do Governo Federal, e seus apoiadores, para acabar com a escola e o ensino público. 

“Ser estudante de escola pública não muda só nossa vida individual, muda todo o Brasil. Para além de ser uma coisa que a gente não aprende só o português, matemática, filosofia e todas essas matérias são muito importantes para nossa formação. A gente aprende a viver em sociedade, a ter pensamento crítico. E é por isso que a escola é tão importante. Então, a quem interessa que a gente esteja fora da sala de aula?”, indaga Jade Beatriz, presidente da Ubes.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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