No Brasil, Damares Alves e Paulo Guedes são parte do mesmo projeto bolsonarista. As políticas antigênero e econômicas são complementares: a “família tradicional” é uma instituição necessária para o plano de austeridade e privatização dos serviços públicos, aponta especialista.
Nas últimas semanas de abril deste ano, um registro jornalístico chamou a atenção: Angela Gandra Martins, Secretária da Família do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, afirmou em evento internacional, com presença de representantes de partidos de extrema-direita da Europa, que as autoridades brasileiras estão comprometidas em expandir a agenda ultraconservadora pelo mundo, levando as pautas antiaborto e de combate ao que chamam de “ideologia de gênero” para organizações internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
“Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre das amarras ideológicas”. Janeiro de 2019, discurso de posse de Jair Bolsonaro.
Uma ofensiva antigênero é possível ser vista desde o início do mandato de Jair Bolsonaro (sem partido), o Ministério dos Direitos Humanos até mudou de nome para Ministério da Família, Mulheres e Direitos Humanos. Sob o comando da ministra Damares Alves, ele tem sido fundamental para cumprir a agenda ultraconservadora da gestão Bolsonaro, articulando as demandas em nível nacional e internacional. Nos anos de governo Bolsonaro, a agenda antigênero tem sido diluída na agenda “pró-família”. Na defesa e valorização da família, no entanto, está incluída apenas a família “tradicional” ou “patriarcal”, ou seja, de moral cristã, branca e heteronormativa.
Como situamos na primeira reportagem da série “Fundamentalismos no Brasil”, nas disputas políticas no período da Constituinte já se podia observar um desejo conservador de tornar o Estado promotor de suas crenças morais: as controvérsias sobre políticas de gênero e de sexualidade (envolvendo legalização do aborto, direito ao casamento civil homoafetivo, educação sexual, etc) estão na gênese de nossa Constituição e do próprio período de redemocratização.
Sabendo que a ofensiva antigênero é um fenômeno transnacional e anterior às eleições de 2018, o Catarinas apresenta a trajetória conservadora que nos trouxe onde estamos neste momento: uma cruzada contra os movimentos feminista, LGBTQI+ e todos os demais progressistas que lutam por direitos humanos. Vamos conosco?
Fundamentalismos religiosos e a vocação antidemocrática
Estamos falando de fundamentalismos religiosos, mas você sabe como o termo surgiu? O teólogo Ricardo Gondim, pastor da Igreja Betesda de São Paulo, em sua tese de doutorado, explica que no final do século 19 para o 20, nos Estados Unidos, a palavra “fundamentalista” foi utilizada para designar pessoas pertencentes ao movimento protestante conservador da época. Um grupo que era contrário à modernidade, às ideias liberais na teologia e à ciência. Alguma semelhança com o contexto atual?
Resumidamente, o movimento fundamentalista: entendia a Bíblia de forma literal, ou seja, era contra qualquer forma de contextualização dos textos bíblicos (contra teólogos liberais que estavam em diálogo com as ciências, como a História); cria no caráter divino de Jesus nascido de uma virgem (contra a dimensão humana e histórica desenvolvida pela teologia moderna); acreditava que o mundo tendia ao caos e a destruição apocalíptica (o “Juízo Final”) e que era necessário salvar as almas através da evangelização.
O apego a essas ideias colocava o movimento em luta contra teólogos que dialogavam com a ciência e eram abertos às transformações sociais pautadas pela justiça social. O movimento ecumênico foi oposição aos fundamentalistas. Você pode saber mais sobre o assunto clicando aqui.
Podemos dizer, então, que há uma vocação anticientificista e antidireitos na gênese do movimento fundamentalista religioso estadunidense. No Brasil a semelhança também existe. Em 2012, a professora e antropóloga Isabela Kalil começou a pesquisar o movimento Ocupa Wall Street, nos Estados Unidos. No ano seguinte, o trabalho também se estendeu aos movimentos de rua no Brasil. “Inicialmente, trabalhei com movimentos progressistas e não conservadores. Depois, comecei a observar a resposta conservadora, bastante violenta, a essas manifestações”, narra.
Isabela explica que o conservadorismo religioso é mais antigo que as movimentações de rua na década de 2010. “Nos anos de 1980, no processo de redemocratização brasileiro após a ditadura militar, já havia uma série de disputas envolvendo a formulação da Constituição Federal”, lembra.
Após 21 anos de regime autoritário, a Constituição Federal promulgada em 1988 representava o marco da transição para um Estado democrático. Construída coletivamente por grupos da sociedade civil organizada, inclusive por mulheres do movimento feminista, a Constituição surgiu como um avanço para a garantia dos direitos humanos e sociais. O documento que visa preservar a dignidade humana, no entanto, não foi elaborado sem resistência.
“Tem uma série de disputas na Constituinte envolvendo questões religiosas, como a própria laicidade do Estado”, explicita Isabela. Uma delas, tratava da inclusão ou não da palavra “Deus” no preâmbulo da Constituição, uma referência que permaneceu. Se a Constituição deu base para uma perspectiva sobre os direitos humanos no Brasil, após sua promulgação era necessário a construção de uma política articulada para que os direitos saíssem do papel.
No artigo “Políticas antiderechos en Brasil: neoliberalismo y neoconservadurismo en el gobierno de Bolsonaro”, Isabela também apresenta que houve três ciclos com tentativas de implementação dos preceitos da Constituição no Brasil. No primeiro (1988 a 2002) foram criados os Sistema Único de Saúde e o Sistema de Seguridade Social. No segundo (2003 a 2010) foram formulados programas sociais (como Bolsa Família) para combater as desigualdades e políticas públicas de gênero, raça e sexualidade. Nesse ciclo, as Secretarias de Direitos Humanos e Direitos da Mulher, que estavam sob a gestão do Ministério da Justiça, ganharam status ministerial, com orçamento próprio e autonomia administrativa. Também foi criada a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Além disso, foi elaborado o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).
Em entrevista, Isabela nos chamou atenção que a elaboração do PNDH-3 foi um ponto de virada no Brasil. “Para entender o atual cenário do conservadorismo brasileiro é preciso analisar o processo de feitura do PNDH-3. O Plano Nacional de Direitos Humanos é uma mobilização que acontece entre os anos de 2010 e 2011. E o PNDH-3 teve uma forte resistência no campo religioso, fortíssima”.
O PNDH-3 avançava em muitos pontos caros para os direitos humanos no país, ele preconizava políticas contra a violência doméstica; reconhecia a existência do racismo e apontava para políticas compensatórias; incluía o direito a livre orientação sexual e de identidade de gênero; propunha a descriminalização do aborto; a regularização da mídia; o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo; a criação da Comissão Nacional da Verdade; entre outros.
“Com o PNDH-3 se tem uma resposta religiosa que se articula fortemente entre 2009 e 2011. É nesse contexto que a figura do Jair Bolsonaro passa a ganhar destaque por conta dos ataques que ele faz aos materiais contra a homofobia, o chamado ‘kit gay’ – que se tornou uma das bases de sua campanha. Quando analisamos, os temas que elegeram Bolsonaro ganharam força nessa década”, Isabela Kalil, antropóloga e professora da FESPSP.
No terceiro ciclo (2011-2018), as reações contrárias ao PNDH-3 avançaram e se materializaram em agendas políticas da extrema direita conservadora: posições contrárias à laicidade do Estado; às políticas públicas de gênero (contrárias a discussão sobre diversidade e sexualidade nas escolas, por exemplo); à ampliação das políticas afirmativas (cotas); favoráveis à posse de armas; intervenção militar, entre outras questões.
É importante destacar que essas agendas orientam as práticas administrativas e declarações públicas de Bolsonaro até hoje.
A cruzada antigênero
No primeiro semestre de 2017, no meio da disputa reacionária contra o PNDH-3, veio à tona nacionalmente o processo civil solicitado por Ana Caroline Campagnolo, uma ex-orientanda (que hoje é deputada estadual pelo PSL de Santa Catarina), contra Marlene de Fáveri, na época professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC). Reconhecida nacional e internacionalmente por seu trabalho no campo dos estudos de gênero e feministas, a docente foi acusada de perseguição religiosa ao supostamente humilhar a ex-aluna por ela ser cristã e antifeminista.
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“Foi algo que me incomodou muito na época, principalmente porque no início eu não sabia muito o que fazer. E houve uma grande exposição do meu nome com o caso sendo lançado no Congresso em uma ação do movimento Escola Sem Partido”, relembra Marlene de Fáveri em entrevista ao Catarinas.
O fato, entretanto, não foi uma mera exceção. No ano de 2017, outros casos relativos a processos de coerção e perseguição a docentes começaram a surgir – não somente universitários, mas também do ensino básico. Em comum entre os casos, estava o pensamento de que as professoras estariam em sala “doutrinando” estudantes por meio da “ideologia de gênero”. Era a volta da caça às bruxas, mas desta vez das bruxas do gênero.
“O processo me consumiu. Foram 6 audiências muito difíceis, mas eu saí fortalecida e levei a bandeira que não é só minha, mas da educação, do gênero, da liberdade de cátedra. No final, em 2019, o parecer do processo foi favorável a mim. Foram quase 4 anos vivendo esse contexto de ataques, mas saí muito fortalecida”, afirma Marlene.
“A tentativa de me silenciar, me amordaçar, me constranger não foi frutífera. Estou mais aguerrida e falando cada vez mais sobre feminismo, gênero, sexualidade”, Marlene de Fáveri, historiadora.
A ideia de “ideologia de gênero” surgiu na década de 1990 quando fundamentalistas católicos reagiram violentamente ao uso do conceito de gênero nas conferências das Nações Unidas dedicadas aos direitos das mulheres. “Ideologia de gênero” é justamente o ataque a teorias e ativismos que refutam a forma como a doutrina da Igreja Católica entende gênero, sexualidade e reprodução, conforme define a filósofa Gabriela Arguedas Ramírez, no artigo “Ideologia de gênero, neointegrismo católico e fundamentalismo evangélico: a vocação antidemocrática”.
Sonia Corrêa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch), no artigo “A “política do gênero”: um comentário genealógico“, conta que presenciou esses ataques.
“Numa das salas de trabalho, assisti um delegado do Sudão exigir, vigorosamente, o ‘colcheteamento’ da palavra e ser apoiado por outros países islâmicos, sem que a coordenadora da sessão conseguisse conter seu longo e agressivo discurso. Nessa cena, as mãos nem tão invisíveis do Vaticano eram detectáveis, pois embora a Santa Sé não tenha se manifestado, as delegações de Honduras, Nicarágua e El Salvador, seus aliados fieis, apoiaram a posição sudanesa. Essa tensão inesperada em torno a gênero também parecia confirmar que, tal como suspeitávamos, estava em curso uma inédita e preocupante aproximação entre o Vaticano e os estados islâmicos”, trecho do artigo de Sonia Corrêa.
A partir dos anos 2000, a “ideologia de gênero” tornou-se um mal a ser combatido oficialmente pela igreja católica. O papa Bento XVI chega a citar, em um discurso de Natal em 2012, a filósofa feminista Simone Beauvoir ao exortar sobre o papel do homem, da mulher e da família “constituída autenticamente por pai, mãe e filho”.
Como já vimos na primeira reportagem desta série, nessa mesma época, nos anos 2010, o movimento evangélico estava em franco crescimento no cenário político brasileiro. Foi quando fundamentalistas católicos e evangélicos se uniram contra o reconhecimento de direitos das mulheres e da população LGBTI+, disfarçado de repúdio à “ideologia de gênero” e de valorização da “família tradicional brasilieira”.
Ativistas na oposição ao direito ao aborto, na compreensão inclusiva de famiília, os parlamentares fundamentalistas se aliaram a outras forças conservadoras no Congresso, como os latifundiários e os defensores dos armamentos, formando a bancada “BBB” – do Boi, da Bíblia e da Bala.
Por trás da ameaça da “ideologia de gênero” estava uma estratégia de controle do Estado e das suas instituições por meio dos próprios mecanismos da democracia formal, conforme alerta Isabela. “Uma vez estabelecidos no interior do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, torna-se mais fácil para os fundamentalistas imporem a sua própria visão social e econômica”, pontua.
A partir de 2013, bancadas conservadoras no Congresso Nacional, ligadas a fundamentalistas religiosos, tramitaram inúmeros projetos de lei no Legislativo e no Senado Federal do tipo que censuravam o ensino de gênero nas escolas e estimulavam a denúncia de professoras que ousavam promover o debate de gênero – como foi o caso de Marlene.
A ofensiva antigênero ganhou ampla divulgação midiática nos anos seguintes, principalmente quando o movimento evangélico e o católico se aliou ao Escola Sem Partido. Criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, o movimento tinha como premissa a “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado” e seu principal instrumento de atuação era a internet.
Através de um site, o Escola Sem Partido divulgou sistematicamente suas ideias e ofereceu instrumentos para denúncias e disseminou práticas de vigilância – numa clara criminalização, principalmente, de docentes. Miguel Nagib era o nome central do movimento e foi o propulsor de projetos de leis com base no programa da Escola Sem Partido. O advogado disponibilizava anteprojetos de lei (um estadual e outro municipal) bastando a deputados e vereadores de qualquer lugar do Brasil acessar o site, copiar a proposta e apresentá-la como suas nas Câmaras. O resultado foi centenas de leis municipais e estaduais contra gênero na educação, muitas delas aprovadas ainda hoje.
Clique aqui para ver o mapa com o avanço do Escola Sem Partido no Brasil.
Em 2015, devido à pressão das bancadas religiosas (evangélicas e católicas), oito estados excluíram dos Planos de Estaduais de Educação metas ligadas ao combate da discriminação por identidade de gênero, por sexualidade e até mesmo por questões étnico-raciais. É importante destacar que, historicamente, os setores conservadores tentam controlar as políticas curriculares na tentativa de regular e orientar crianças e jovens dentro dos padrões morais que consideram corretos.
Em 2018, os ataques impulsionaram a campanha eleitoral de Bolsonaro. O imperativo de negar qualquer medida política ou legal destinada a compensar as injustiças de classe, gênero e/ou sexuais, e raça se institucionaliza no Executivo. Em uma união entre neoliberalismo, representado por Paulo Guedes, e ultraconservadorismo, representado por Damares Alves, Bolsonaro venceu.
A antropóloga Isabela pontua que a família foi central para a aliança entre as forças neoliberais e conservadoras. “Paulo Guedes e Damares fazem parte do mesmo projeto. Não são apenas afinidades, eles se completam”, explica Isabela.
No modelo em que vivemos hoje a “valorização da família” se torna fundamental para o regime econômico de austeridade: o Estado reduz os investimentos em educação, saúde e previdência, e transfere essas responsabilidade para a família. “No Brasil, as políticas de gênero e econômicas são dependentes. A família é uma instituição necessária para privatização dos serviços públicos, tem que se analisar as políticas antidireitos por essa perspectiva”, pontua Isabela.
A “valorização da família” tem sido utilizada ao mesmo tempo para eliminar o debate de gênero das políticas públicas e dos documentos oficiais, como para alterar o próprio significado de direitos humanos. “Damares Alves, com seu ministério, se engajou numa agenda de reformulação dos direitos humanos. É complexo, pois ela utiliza a própria linguagem dos direitos humanos para fazer isso”, alerta Isabela. E continua:
“A ministra Damares Alves se coloca como alguém que é contra a violência contra mulher, um posicionamento desejado. A questão é: como se faz isso? De uma maneira que se esvazia a noção de gênero, no lugar se tem uma noção mais estrita do que é ser mulher. As políticas vão ficando mais restritivas, entende-se por mulher a cis e heteressoxeual”, exemplifica Isabela. É importante destacar que durante o ano de 2020, menos de 3% do orçamento que seria usado para iniciativas para mulheres pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos foi, de fato, gasto, segundo levantamento da Gênero e Número.
Nesse contexto, as concepções de pluralidade, equidade, autonomia caras aos direitos humanos vão se perdendo. Isabela pontua que o mesmo movimento ocorre na reformulação do Plano Nacional de Direitos Humanos 4 (PNDH-4). “O PNDH-4 está sendo proposto pela Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos). Pelos materiais, nota técnica e como os integrantes se posicionam, o texto representaria uma série de retrocessos do ponto de vista de direitos humanos. A defesa é de uma noção mais estrita de família, que não se baseia em afetos ou sociabilidade, mas se baseia fortemente em uma noção de consanguinidade e matrimônio”, alerta.
Recentemente, o projeto Escola Sem Partido foi considerado inconstitucional, mas não há o que comemorar. “Os fundamentalistas se apossaram da política no Brasil e o cerceamento continua em pauta. Nós temos no Brasil uma ministra, a Damares, que advoga com toda força contra os estudos de gênero e contra o feminismo”, lamenta Marlene. A Anajure tem atuado como grupo de pressão no Poder Legislativo e Judiciário brasileiro, principalmente nas pautas relacionadas a discussões sobre aborto, liberdades religiosas e homofobia. A destruição da democracia no Brasil segue.