Inseridos em todas as esferas do poder (Legislativo, Executivo e Judiciário), fundamentalistas religiosos ditam desde pautas moralistas de comportamento até cargos por critérios religiosos. Lógicas cristofascistas avançam. Acompanhe a análise de especialistas e relatos de grupos sociais atingidos pelas cruzadas contemporâneas nesta série de quatro publicações.

Em 2018, presenciamos o conservadorismo religioso transformar-se em plataforma eleitoral presidencial no âmbito das políticas de Estado no Brasil. Jair Bolsonaro (sem partido) foi eleito através da coalizão entre forças conservadoras religiosas e neoliberais. Com dois anos de governo, os efeitos desastrosos dessa união podem ser claramente vistos na crise econômica, sanitária e humanitária que atravessa o país. 

“Minha campanha eleitoral atendeu ao chamado das ruas e forjou o compromisso de colocar o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos. (…) Na economia traremos a marca da confiança, do interesse nacional, do livre mercado e da eficiência”. Janeiro de 2019, discurso de posse de Jair Bolsonaro. 

Em 2021, o Brasil enfrenta desemprego em alta; fome; inflação; armamento em massa; perseguição política de ativistas; colapso do sistema de saúde; genocídio da sua população, com mais de 460 mil mortes e média diária de quase 2 mil; negacionismo e anticientificismo como estratégia do governo federal, que desde o início da gestão bolsonarista ataca as universidades e a produção do conhecimento científico. Durante a pandemia, Bolsonaro negou a gravidade do coronavírus, sabotou as medidas de distanciamento e isolamento social, incentivou o uso de remédios cientificamente comprovados como ineficazes para o combate da Covid-19 e desestimulou a vacinação.

A narrativa de Bolsonaro é fortalecida e propagada por lideranças do movimento evangélico, as quais incentivam que os fiéis continuem indo aos cultos e que combatam o vírus com uma “guerra espiritual” de jejum e oração. Campanhas que convocam “o exército de Cristo para a maior campanha de jejum e oração já vista na história do Brasil” têm circulado via whatsapp desde abril de 2020. Inseridos no Legislativo, no Executivo e no Judiciário (cuja expressão máxima será a indicação de um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal -STF, por Bolsonaro), representantes do movimento evangélico advogam para garantirem a abertura dos templos e a realização dos cultos, mesmo com um altíssimo número de mortes.

“Não há Cristianismo sem vida comunitária. Não há Cristianismo sem a casa de Deus. Não há Cristianismo sem o dia do Senhor. É por isso que os verdadeiros cristãos não estão dispostos, jamais, a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”, afirmou o Advogado-Geral da União, André Mendonça, durante sustentação oral no STF, em abril de 2021.

No meio da crise humanitária, a máxima “liberal na economia e conservador nos costumes” se materializa na gestão bolsonarista. Mulheres, negros, indígenas, trabalhadores, povos do campo perdem direitos arduamente conquistados enquanto representantes do governo Bolsonaro “passam a boiada” – aprovando reformas e leis que ameaçam a existência da maioria da população. Somos 99%. Um cenário distópico que faz Gileade, da série The Handmaid’s tale (O conto da Aia), parecer acreditável hoje. 

A ruptura democrática que tornou possível a eleição de Bolsonaro e a implementação de suas políticas de morte têm sido tramada há anos por grupos conservadores diversos, entre eles, fundamentalistas religiosos. Inseridos em todas as esferas do poder, fundamentalistas religiosos avançam na formação de uma teocracia: no Brasil de Bolsonaro, a mistura entre um Estado teoricamente democrático e cristianismo alcançou uma dimensão inédita desde a redemocratização. 

No Palácio do Planalto, fundamentalistas ditam desde pautas moralistas de comportamento até cargos por critérios religiosos. “É o objetivo do governo Bolsonaro, não sei se conseguiriam oficialmente (instalar um Estado teocrático), pois tudo no Brasil é abrasileirado”, afirma Jackson Augusto, 26 anos, integrante da coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico, em entrevista ao Catarinas. 

“Eles querem dominar as instituições e como o bolsonarismo vem fazendo não há necessidade de mais um golpe. Os fundamentalistas já estão no poder”, Jackson Augusto, Movimento Negro Evangélico.

Jackson é membro da Igreja Batista Imperial e esteve toda sua vida conectado à igreja evangélica. “Minha avó já era da igreja, fui criado nesse contexto”, conta. Ele ainda alerta que o movimento está utilizando o rito democrático para construção de uma teocracia. “Esse projeto vai se colocando por meio de ferramentas democráticas: ocupam cargos, encontram brechas dentro das instituições, violam aspectos da Constituição. E nada ocorre. Em alguns pontos, a teocracia já é uma realidade. Veja, estamos sendo guiados por versículos bíblicos”, ressalta. 

Jackson Augusto é articulador social, evangélico, fundador do canal ‘Afrocrente’ e militante do Movimento Negro Evangélico/Foto: Débora Oliveira.

O fortalecimento dessa ala nos espaços de poder é um processo histórico que vem sendo construído desde a redemocratização do Brasil na década de 1980. “Não emergiu em 2013, nas Jornadas de Junho, nem em 2016, no golpe que tirou a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) do poder”, explica Isabela Kalil, antropóloga e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), em entrevista ao Catarinas. 

“Tem uma série de disputas na Constituinte envolvendo questões religiosas, inclusive a própria laicidade do Estado. Tem a ver com direitos. Quando tratamos de fundamentalismo religioso, estamos falando de igrejas e de atores sociais que estão atuando no campo religioso, no Legislativo, agora no Executivo e no futuro que se desenha no Supremo Tribunal Federal”, contextualiza Isabela.

Nesta série sobre “Fundamentalismos no Brasil”, o Catarinas se debruça sobre os fundamentalismos religiosos, com foco no evangélico, que colaboraram com o enfraquecimento da democracia no país e com o avanço de políticas antidireitos. São quatro publicações que abordam: o crescimento do movimento evangélico na política; a vocação antidireitos e as políticas antigênero do movimento fundamentalista religioso; o fundamentalismo na base da formação cultural brasileira; e a nova cruzada cristã contra os povos indígenas.

Entendemos como fundamentalismos religiosos movimentos organizados que possuem estratégias coletivas para avanço de seus valores nos espaços de poder. Sabemos também que outros fundamentalismos foram importantes para eleição de Bolsonaro, como: armamentistas, intervencionistas militares, paramilitares, anticorrupção e lavajatistas. “Esses últimos foram peça fundamental no ativismo contra a suprema corte”, pontua Isabela.

A ascensão do movimento evangélico aos espaços de poder

Antes de começarmos é preciso situar que os evangélicos não são um bloco homogêneo. O livro “Evangélicos y poder en América Latina”, coordenado pelo sociólogo peruano José Luiz Pérez Guadalupe, divide os evangélicos em três principais vertentes: protestantismo histórico (igrejas Luterana, Batista, Presbiteriana, Metodista), pentecostais (Assembleia de Deus, Congregação Cristã, Igreja do Evangelho Quadrangular) e neopentecostais (Igreja Evangélica Petencostal Brasil para Cristo, Deus é Amor, Universal do Reino de Deus). 

Nas entrevistas com as especialistas feitas pelo Catarinas, três razões foram unânimes para o fortalecimento do poder político do movimento evangélico no Brasil: 1) surgimento das igrejas neopentecostais com a teologia da prosperidade; 2) expansão das igrejas neopentecostais através dos meios de comunicação; 3) crescimento do número de pessoas autodeclaradas evangélicas.

Simony dos Anjos, 34 anos, antropóloga e integrante do Coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero, da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, viu de perto o crescimento da fé cristã evangélica e ascensão do movimento aos espaços de poder. 

Simony dos Anjos é antropóloga, feminista, evangélica e integrante do Coletivo Evangélicas Pela Igualdade de Gênero/Foto: Morgani Guzzo.

“Essa previsão de disputa do poder público entre a igreja católica e a evangélica, principalmente Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), é antiga. A IURD centraliza suas estratégias para atrair fiéis da igreja católica através de narrativas que são mais atrativas que as perpetradas pela igreja católica, por exemplo, apologia ao acúmulo de dinheiro”, afirma. 

Entre as igrejas históricas e pentecostais há uma diferença doutrinária relacionada ao modo como se interpreta a Bíblia. “Os presbiterianos estão mais alicerçados na doutrina da predestinação (crença que Deus escolheu de antemão os que serão salvos e os que serão condenados), já a doutrina pentecostal está mais ligada aos dons do Espírito Santo (falar em línguas, por exemplo)”, explica Simony.

As igrejas neopentecostais são dissidência das pentecostais, para além das distinções doutrinárias com as históricas há também diferenças litúrgicas. “O modo como se realiza o culto é muito diferente. São igrejas focadas na Teologia da Prosperidade. Então, no culto há uma linguagem muito financeira. Arrecadar os dízimos e as ofertas, por exemplo, se torna parte central do culto”, contextualiza Simony.

Fundada no estado do Rio de Janeiro, na segunda metade da década de 1970, a Igreja Universal do Reino de Deus é a grande representante do neopentecostalismo no Brasil. Um dos pilares da sua doutrina é a Teologia da Prosperidade e a “guerra santa” contra “demônios” – o que na prática resulta em intolerância religiosa principalmente contra fiéis das religiões afro-brasileiras, mas tendo também alcançado católicos tradicionais e os seus rituais.

Originária dos Estados Unidos, a Teologia da Prosperidade traz a promessa de prosperidade divina para o presente. Enquanto o protestantismo histórico valoriza o trabalho, os neopentecostais se alinham à ideologia neoliberal de enriquecimento através do esforço individual e do mérito: para alcançar a prosperidade basta ser fiel a Deus materialmente e espiritualmente. Não é incomum pastores dessas igrejas pedirem que os fiéis doem tudo que tem, pois Deus “restituirá com bênçãos sem medidas”. 

É a partir da década de 1980 que a Universal alcançou notoriedade, especialmente por promover grandes eventos em estádios de futebol, os quais arrecadavam um alto volume de dinheiro. É no final dessa década também, em 1986,  justamente no período de redemocratização do país e da eleição da Assembleia Constituinte, que surge uma “bancada evangélica”. Embora já estivessem ocupando cargos no Legislativo, durante a maior parte do século 20 os evangélicos tiveram uma presença discreta na política partidária brasileira. 

Em 1986, composta por políticos evangélicos de distintas verntentes, o ponto em comum que uniu esses parlamentares foi o ativismo conservador: sua entrada na disputa eleitoral estava associada com o temor ao crescimento da defesa dos direitos da população LGBTQI+; dos direitos sexuais e reprodutivos (em especial a legalização do aborto); do avanço das ideias comunistas e feministas; entre outros, conforme o sociólogo Reginaldo Prandi, no artigo “Quem tem medo da bancada evangélica?”.

Atualmente, o grupo, oficialmente chamado de Frente Parlamentar Evangélica, é suprapartidário e composto por congressistas ligados a igrejas evangélicas históricas, pentecostais e neopentecostais. Os congressistas evangélicos se unem aos católicos e espíritas kardecistas (interessados também em defender pontos de vista de suas religiões) formando a chamada Bancada da Bíblia.  

É na década seguinte, de 1990, que o fundamentalismo religioso tornou-se uma força política no Brasil, sobretudo com o investimento das igrejas neopentecostais em prol da eleição de seus pastores. 

O crescimento das igrejas evangélicas nas periferias se deu no mesmo período e é apontado como um dos fatores que colaborou para o fortalecimento do movimento evangélico nos espaços do poder. “Existe uma facilidade de abrir novos templos porque a igreja evangélica é fragmentada, ou seja, qualquer pessoa pode abrir uma unidade. Isso tem favorecido a presença delas, principalmente as pentecostais e neopentecostais, nas periferias”, pontua Simony.

Sendo as favelas espaços precarizados e invisibilizados pelo Estado, Simony conta que as igrejas evangélicas se tornam um espaço de socialização e organização da vida comunitária. “Elas oferecem aquilo que o Estado não oferece”, ressalta. Em 2018, a Universal (IURD) possuía 15 projetos sociais no Brasil voltados para presidiários, dependentes de álcool e de drogas, idosos, moradores de rua, mulheres vítimas de violência, caminhoneiros, entre outros. Segundo dados oficiais da própria Igreja, no mesmo ano, cerca de 11 milhões de pessoas – adeptos e não adeptos da Universal – foram atendidas por esses projetos. 

Inseridas nas comunidades periféricas, essas igrejas legitimam a ideologia neoliberal e reforçam que o quadro de desigualdades sociais não será transformado a partir da luta por justiça social, mas pela intervenção divina. “A maioria delas também reflete o discurso meritocrático e antidireitos que é produzido nas mídias”, destaca Simony. E continua:

“Existe uma relação internacional entre governos neoliberais, o empresariado e a propagação das narrativas da teologia da prosperidade que vem desde os Estados Unidos. Temos o Billy Graham (pastor estadunidense), conselheiro espiritual de vários presidentes nos Estados Unidos, que é considerado o maior evangelista e impulsionou em toda América Latina as teologias evangélicas”, analisa. 

Entre 2007 e 2014, a Billy Graham Evangelistic Association (BGEA) investiu pelo menos US$ 21 milhões na América Latina. A organização é liderada pelo filho de Billy Graham, Franklin Graham – um defensor declarado de Trump, que afirmou que Deus esteve por trás das eleições de 2016.

Billy Graham faleceu em 2018 e era conhecido como o “pastor televisivo da América”. Ele pregou a literalidade da Bíblia por distintos meios de comunicação. Seguindo o modelo de Billy Graham, no Brasil os pastores fizeram o mesmo caminho. Em 1989, por exemplo, o bispo Edir Macedo comprou o Grupo Record e a Record TV, uma das maiores emissoras de televisão do Brasil. 

“Essa perspectiva tem que ser pensada, as das redes de comunicação midiática e as articulações dos empresários. A igreja evangélica tem algo que a católica não tem: os meios de comunicação e grandes figuras públicas artísticas como Aline Barros e Eyshila”, Simony dos Anjos, Rede de Mulheres Negras Evangélicas.  

Em 2005, Edir Macedo também criou o partido político Republicanos. “Ele é o único que tem um projeto bem estruturado, organizado e que não depende do bolsonarismo. O Republicanos é o segundo maior grupo da bancada evangélica atualmente e possui uma faculdade (Faculdade Republicana Brasileira)”, lembra Jackson.

Em 2006, apesar disso, a tendência de crescimento no Congresso foi interrompida devido aos escândalos de corrupção envolvendo representantes da Universal. É em 2010 que a representação evangélica volta a crescer, a Bancada da Bíblia se fortalece ao representar o pensamento conservador diante do avanço de políticas públicas envolvendo ampliação de direitos humanos para mulheres, negros, indígenas, população LGBTQI+. 

Em 2010, o último Censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) identificou que a população evangélica brasileira aumentou 61% em 10 anos. Em 2000, 26,2 milhões de pessoas se declararam evangélicas, o que representava 15,4% da população. Em 2010, o número subiu para 42,3 milhões, isto é, 22,2% dos brasileiros. O IBGE também calculou que são abertas uma média de 14 mil igrejas evangélicas por ano no país. Se a tendência de crescimento dos evangélicos for mantida, em 2022, eles ultrapassam o número de católicos. Possivelmente não teremos essa informação, já que o governo Bolsonaro cancelou o Censo Demográfico.

Fonte: IBGE/ Infográfico: Portal Catarinas

“Foi em 2010 que os pastores avançaram no parlamento. Tivemos Flordelis, Marco Feliciano e isso se deve ao crescimento de evangélicos. Naquela época éramos quase 23% no país”, lembra Simony. A antropóloga evangélica recorda que nessa época havia também campanha nas igrejas para que os fiéis fizessem o voto confessional.

“Naquele ano foi lançada a máxima:  ‘Se nós não estivermos no poder, eles estarão!’. Quem eram eles? As feministas, os comunistas, os esquerdistas. E havia um imaginário de que eles estariam trabalhando contra a  igreja e a família. Então, era melhor eleger os evangélicos”, Simony dos Anjos, Rede de Mulheres Negras Evangélicas.  

A ideia polarizada de “nós x eles” narrada por Simony e o medo do avanço de políticas voltadas para o fortalecimento dos direitos humanos de grupos socialmente subalternizados se consolidaram. Um suposto perigo comunista, feminista e a uma improvável doutrinação LGBTQI+ nas escolas (traduzida na “ideologia de gênero”) se tornaram inimigos comuns dos “cidadãos de bem” e da “família”. 

As narrativas bélicas (“guerra santa”) e de culpa (“medo de ir para o inferno”) foram apontadas nas entrevistas como as principais responsáveis pelo “exército de evangélicos na luta por votos” nas eleições de 2018. “São tecnologias importantes para manter os fiéis quietinhos dentro da igreja. Bolsonaro se apropriou dessas narrativas e se tornou o representante na terra que irá lutar contra a homossexualidade, as drogas, a ideologia de gênero. Ele soube conversar com o medo das pessoas”, afirma Simony. 

As narrativas de medo estão associadas ao que o sociólogo Stanley Cohen chama de “pânico moral”. Ao votar em Bolsonaro por medo, parte dos evangélicos estava defendendo o país do avanço das pautas progressistas dos últimos anos por direitos sociais e civis.

A batalha moral pelos valores da família é também uma luta favorável ao racismo, ao elitismo, ao machismo, à homofobia e à intolerância religiosa. A cruzada moral coloca militantes feministas, negros, indígenas, de esquerda, LGBTQI+ também como principais alvos a serem combatidos pelas políticas bolsonaristas. A essa reação organizada fundamentalista Jackson chama de “cristofascimo” – uma cultura violenta e hegemônica através da linguagem religiosa . 

“Independente de um Estado teocrático oficializado, o cristofascimo já acontece, já está aí. Na política de Bolsonaro há um compromisso com os valores fundamentalistas da branquitude evangélica. Uma união entre Estado e religiosos que potencializa lógicas fascistas”, Jackson Augusto, Movimento Negro Evangélico.

Nas eleições de 2018, foram eleitos ou reeleitos 84 deputados federais e sete senadores evangélicos, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP). Nas últimas décadas, a Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus são as duas igrejas responsáveis ​​por boa parte dos parlamentares evangélicos no poder. Nesse mesmo ano, dos 35 candidatos oficiais lançados pela Universal, 21 foram eleitos (60%). Uma taxa alta que a coloca como um caso de sucesso eleitoral evangélico no Brasil. 

Infográfico: Portal Catarinas

“O movimento evangélico na Bancada da Bíblia possui projetos que trabalham juntos, mas que são diferentes. Os protestantes históricos estão mais inseridos na Educação, na Ciência e Tecnologia; os neopentecostais e pentecostais nos Direitos Humanos. A Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) já é outro projeto que nasce desse fundamentalismo ligado mais ao Judiciário, a Defensoria Pública da União. Em comum, esses grupos têm interesse em controle econômico, social e cultural. Querem o poder”, contextualiza Jackson. 

É justamente a sede de poder que permite uma aliança política entre fundamentalistas religiosos e a agenda neoliberal. O que está em disputa não é apenas visões religiosas, mas de Estado: da economia e de como as pessoas podem viver e se comportar.

“Eu comparo essa aliança entre fundamentalistas religiosos e neoliberais com a união entre Damares e Paulo Guedes. Eles se completam”, Isabela Kalil, antropóloga e professora da FESPSP.

Para a antropóloga, a agenda neoliberal presente no país não se reduz apenas a uma posição econômica ligada à redução do papel do Estado, mas também uma subjetividade que constrói o cotidiano. 

“Estamos falando de uma subjetividade neoliberal na qual há uma noção de que os atores sociais, a partir do seu próprio mérito e a partir dos processos religiosos, vão atingir determinada ascensão social. Isso tem muita afinidade com a teologia da prosperidade e com a gestão da pandemia: as pessoas precisam criar formas de se responsabilizar pelo cuidado de si e pelos seus durante a pandemia. O que tira a responsabilidade do governo federal em pensar estratégias de enfrentamento”, ressalta Isabela.

A análise de Jackson sobre a união entre neoliberalismo e fundamentalismo reforça a observação de Isabela. “É uma questão política de guerra cultural e econômica”, afirma ele. O articulador social evangélico ainda pontua que o lobby do movimento evangélico para manter os templos abertos está relacionado com a manutenção desse poder cultural e não com o lucro.

“Muita gente fala que é questão de dinheiro, mas esses caras conseguem fazer dinheiro dentro da internet e outros meios. O Silas [Malafaia] tem contrato com a TV. Manter os templos abertos faz parte da estratégia violenta do cristofascimo de usar a linguagem religiosa para que permaneça o caos, o genocídio, as políticas racistas, machistas e capitalistas. É preciso manter os fiéis debaixo da orientação direta da Igreja ou um pilar importante do poder religioso é quebrado”, afirma Jackson.

Os corpos evangélicos que estão nos espaços de poder

Em 2018, Isabela Kalil coordenou a pesquisa  “Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro” na qual oferece uma detalhada análise desses perfis. Nela, líderes religiosos e fiéis cristãos são apontados como parte da base bolsonarista. Perguntamos para Isabela se é possível afirmar hoje, em 2021, que o principal apoio de Bolsonaro é o movimento evangélico, já que é constante o número de pastores, cantores e outras lideranças que publicamente advogam em favor do presidente. “É difícil responder”, ela nos disse. 

Isabela Kalil é antropóloga e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)/Foto: Divulgação.

Para a antropóloga, é importante pontuar que o movimento evangélico não é um grupo homogêneo. “Existem setores religiosos que são progressistas. É complicado usar características mais abrangentes, porque não são um bloco uníssono. Há diferenças internas. Se estivermos falando de lideranças religiosas que concentram poder empresarial, de mídia e de política partidária é uma forma de analisar. Se estivermos falando de fiéis, pessoas que estão acreditando na boa intenção dessas pessoas, não podemos analisar da mesma maneira, pois seria um risco jogar na população de fiéis religiosos preconceitos de raça, de classe e de gênero”, pontua. 

A preocupação da Isabela é precisa. De acordo pesquisa Datafolha, divulgada em 2020, 58% dos evangélicos são mulheres, entre as quais 43% se identificam como pardas e 16% como pretas. A pesquisa ainda aponta que quase metade das pessoas que se declaram evangélicas ganham até dois salários mínimos.

Se Silas Malafaia, Edir Macedo e outros pastores brancos são os rostos mais reconhecidos na mídia, inclusive na hora de declarações duvidosas favoráveis ao governo Bolsonaro, na vida cotidiana o rosto predominante nos templos evangélicos é o de uma mulher negra.

No Brasil estruturado no racismo, no capitalismo e no patriarcado, os corpos que ocupam os espaços de poder no movimento evangélico são homens, brancos, pertencentes a elite econômica do país, como aponta Jackson.

“Existe um pacto narcísico entre os homens brancos que controlam as estruturas de poder e isso se repete dentro do movimento conversador que sobressai da igreja”, Jackson Augusto, Movimento Negro Evangélico.

“O bolsonarismo é um projeto identitário, ou seja, branco, hetero, cis. Basta olhar a foto dos pastores jovens que se reuniram para orar com Bolsonaro, são maioria brancos: dos 25 que tinham ali, apenas um era negro. Pretos e mulheres não estão no processo de decidir os caminhos políticos que a igreja pode tomar. Há um silenciamento a partir dessa supremacia”, explica. 

Para ele, o perfil da bancada evangélica no governo não representa a igreja evangélica. “Foram eleitos para cumprir uma agenda que prejudica seus fiéis”, sentencia.  Hoje ele é uma das lideranças que faz resistência ao conservadorismo dentro do movimento evangélico. 

“Minha atuação é dentro de um aspecto de direitos humanos e justiça social. Estou inserido dentro do Movimento Negro Evangélico e em outras redes. Fazemos ações na periferia não visando assistencialismo, mas numa perspectiva de projeto político. Por exemplo, neste final de semana vamos até o território de algumas igrejas entregar cesta básica. Tentamos conversar sobre a luta pela segurança alimentar e não deixar isso como uma ajuda”, diz. 

Além de cuidar para não realizar análises generalizantes, Isabela explica também que a pandemia tornou mais desafiadora analisar os perfis bolsonaristas, pois modificou de forma acelerada o campo. A antropóloga ainda lembra que os evangélicos não são os únicos fundamentalistas cristãos. “Tem um conservadorismo católico fundamentalista que é histórico no Brasil e no mundo”, atenta. 

Simony alerta que invisibilizar os distintos cristianismo que compõem o fundamentalismo religioso é uma estratégia eficaz para naturalizar grupos que estão no poder há séculos. 

“O fundamentalismo é plural, não é só evangélico. Essa articulação é muito mais profunda do que se imagina. Desde a colonização, a igreja católica está diretamente enraizada no poder. Quando se naturaliza, porque sempre esteve lá, também é perigoso: ela tende a continuar no poder. Há muitas movimentações contra os direitos, principalmente os sexuais e reprodutivos, do movimento católico e espírita”, explica. 

Simony é professora da Escola Bíblica Dominical, membro da Igreja Presbiteriana Independente e nasceu num lar evangélico. “Meus pais são pastores”, conta. Hoje se insere em redes ativistas evangélicas que disputam as narrativas bíblicas do movimento. “Me insiro nesse contexto do estudo coletivo da Bíblia, de leitura popular. Hoje há produções de livros evangélicos com perspectiva feminista, feminista negra, queer”, narra.

“Há um entendimento progressista que para se combater o uso indevido da religião evangélica, para conseguir capital político, dominação política e para oprimir as pessoas, tem que se ter acesso a Bíblia. Se as pessoas têm acesso a leitura e a interpretação do texto bíblico, Silas Malafaia não prosseguirá sem ser questionado”, conclui Simony. 

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  • Inara Fonseca

    Jornalista, pesquisadora e educadora. Doutora (2019) e mestra (2012) em Estudos de Cultura, pela Universidade Federal de...

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