Parecer do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil) aponta para graves violações dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos da jovem.

Nesta segunda-feira (30), o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil) divulgou parecer técnico sobre o caso da jovem Andrielli Amanda dos Santos, 21 anos, separada compulsoriamente da filha após o parto, no Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, em Florianópolis. O documento aponta graves violações aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos da jovem à luz da Constituição Federal, da Lei do Planejamento Familiar e dos Tratados Internacionais, dos quais o Brasil é signatário. Ao ter sido impedida de amamentar a bebê após o parto e submetida à esterilização involuntária pelo Estado, a jovem sofreu tratamento desumano e degradante, equivalente à tortura psicológica, avalia o Comitê.

Leia o parecer na íntegra!

Andrielli está há 32 dias separada da filha que pegou nos braços por apenas três horas. No último domingo (29), ela conseguiu visitar a bebê que está internada há mais de uma semana no Hospital Infantil Joana de Gusmão. Diante do problema de saúde, a autorização judicial para visitar a filha, no entanto, já havia sido dada há cerca de cinco dias, mas a mãe precisou se enquadrar às regras do hospital que só permite visitas aos domingos. “A espera foi angustiante, pensei que por ser mãe eu teria o direito de ficar os dias de semana com ela, mas não me deixaram”, afirma Andrielli.

Como reportamos nesta matéria, Suzi tem apresentado problemas broncoaspiração, que é a entrada de alimentos e saliva na via respiratória, após a alimentação. Os sintomas começaram em 11 de agosto e têm sido investigados como resultado de laringomalácia, anomalia congênita da laringe. Na primeira fase da internação, Andrielli só foi informada depois de alguns dias que a bebê estava no hospital. O fato da bebê ter sido submetida à alimentação artificial também acarreta maior risco de broncoaspiração, como explicou a pediatra Amanda Ibagy, especialista em aleitamento materno.

“Foi muito triste porque não pude amamentá-la. Reparei que o cabelo está raspado do lado porque eles estavam tentando achar a veia para ela tomar o remédio, além disso, ela está com aparelho no pé para medir a pressão. Consegui pegá-la no colo e ficar uma hora com ela”, relatou Andrielli sobre a visita. 

“Os dias têm sido muito difíceis pra mim longe dela, eu só queria amamentá-la e ser a melhor mãe do mundo”, acrescenta.

Segundo recurso elaborado pelo defensor público Marcelo Scherer da Silva que a assiste no caso, a decisão da juíza Brigitte Remor de Souza May, da Vara da Infância e da Juventude da Comarca da Capital, de manter o acolhimento levou em conta relato do Conselho Tutelar de que a mãe teria sido negligente durante a gestação ao não realizar corretamente o pré-natal, fazer uso de drogas e/ou álcool e viver em alguns momentos da gestação em situação de rua.

Fatos que são contestados pelo defensor público. Segundo ele, a justiça não considerou que Andrielli atualmente tem residência fixa e se preparou para o nascimento da filha com um enxoval. Além disso, a jovem está matriculada em um centro de Educação de Jovens e Adultos (EJA), onde tem 100% de frequência. A defesa solicitou a realização de um exame toxicológico para comprovar que a jovem não faz uso de substâncias psicoativas.

Imagem: Parecer do Cladem

Violações aos direitos

O Cladem demanda que o Estado restitua o poder familiar de Andrielli “imediatamente para cessar o sofrimento de mãe e filha acarretado pela separação violenta logo após o parto”. “Tal medida tem caráter de urgência uma vez que recentemente a imprensa noticiou que a bebê foi hospitalizada, sem que Andrielli tivesse sido informada, por apresentar problemas em relação a sua alimentação”. 

Segundo o comitê, o caso apresenta graves violações aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos previstos na Constituição Federal, tais como o direito à igualdade e não discriminação, o direito à saúde, o direito à privacidade, o direito à informação, direito à saúde, direito ao consentimento informado e o direito a viver livre de violência. 

“Andrielli por ter sido moradora de rua, ser negra, jovem, sofreu discriminação interseccional e violência obstétrica, trato desumano e degradante equivalente à tortura psicológica na assistência, tendo sido privada de amamentar e permanecer com sua filha após o seu nascimento. Além disso, foi esterilizada logo após o parto sem o seu consentimento de forma ilícita”, afirmam as advogadas.

Conforme explicam, o conceito de direitos reprodutivos inclui o direito de decidir livremente e responsavelmente sobre o número de filhos e a receber informação, educação e os meios necessários para que se possa decidir. “São direitos que têm duas faces complementares. Por um lado, relacionam-se à liberdade e autodeterminação reprodutiva, livre de discriminação, coerção e violência, fundamental para o controle e decisão sobre a fecundidade. De outro lado, o exercício destes direitos só ocorre na prática se houver políticas públicas para assegurar o gozo da saúde sexual e reprodutiva”.

Os fatos apontam ainda para violação às liberdades e garantias fundamentais expressas nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal. “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”, diz o artigo 6º.

Segundo explicam no parecer, é direito da criança não ser separada dos pais contra a vontade dos mesmos, como dispõe a Convenção dos Direitos da Criança em seu artigo 9º, com correspondência no artigo 227º da Constituição Federal e nos artigos 4º e 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Já o direito ao planejamento familiar, disposto no artigo 226, Parágrafo 7o, regulado pela Lei de Planejamento Familiar (Lei no. 9.263/96), garante que “o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

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Foto dos poucos minutos que Suzi ficou no colo da mãe, Andrielli, antes de ser levada pelo Conselho Tutelar, em Florianópolis/Foto: arquivo pessoal.

Violência obstétrica

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alertou que a “violência obstétrica afeta principalmente as mulheres negras e tem sido uma prática normalizada, mantida invisível por grande parte dos países da região.” A CIDH considerou que “a violência obstétrica compreende todas as situações de tratamento desrespeitoso, abusivo, negligente ou negação de tratamento, durante a gravidez e a fase anterior, e durante o parto ou pós-parto, em centros de saúde públicos ou privados”. 

“Os fatos ocorridos com Andrielli apontam para violência obstétrica sofrida durante a assistência ao parto, quando os órgãos do Estado retiraram de forma ilegal, pois sem consentimento, a sua filha recém-nascida da maternidade e impediram a amamentação como forma de evitar a construção do vínculo materno-filial. Tais atos causaram sofrimento psíquico/emocional em Andrielli, caracterizando-se como forma de tortura psicológica”, diz o parecer.

Apesar de não contar com legislação nacional sobre violência obstétrica, vários estados promulgaram leis para coibir a prática. É o caso de Santa Catarina que conta com a Lei Estadual Nº 17.097, de 17 de janeiro de 2017. Entre as ações consideradas violência obstétrica, conforme o artigo 3º, está “retirar da mulher, depois do parto, o direito de ter o bebê ao seu lado no Alojamento Conjunto e de amamentar em livre demanda”.

A lei define ainda como violência: “fazer qualquer procedimento sem, previamente, pedir permissão ou explicar, com palavras simples, a necessidade do que está sendo oferecido ou recomendado”. O que inclui a esterilização involuntária como uma forma de violência obstétrica. 

“Espera-se que seja aplicada a legislação estadual de violência obstétrica nesse caso com a devida responsabilização pelas arbitrariedades e violações de direitos humanos sofridas por Andrielli”, defende o parecer.

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Foto: Paula Guimarães

Violações podem levar à denúncia internacional

Em caso de as instâncias judiciais do país não levarem em conta as violações cometidas contra Andrielli e sua bebê, a situação pode ser denunciada às cortes internacionais. Para acionamento desses mecanismos, é preciso esgotar os recursos judiciais internos e comprovar que não foram eficazes para reparar as violações, como explicou Beatriz Galli, integrante do Cladem Brasil e relatora da Plataforma Dhesca Brasil.

“É um caso importante para um futuro litígio ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos ou Comitê de Direitos Humanos da ONU. Além da situação de separação da filha da mãe na hora do parto, ela foi esterilizada, depois do parto, sem consentimento. São várias violações. É uma prática que tem sido recorrente em populações de rua, tem característica de ser caso emblemático, no sentido de que representa um padrão de violações contra uma determinada população em situação de vulnerabilidade”, assinalou Galli. 

O parecer técnico lembra que este agosto completa 10 anos da decisão paradigmática do Comitê pela Eliminação de Discriminação contra a Mulher (Comitê CEDAW) sobre a mortalidade materna e os direitos humanos das mulheres no caso de Alyne da Silva Pimentel Teixeira. O Comitê CEDAW considerou o Brasil responsável pela morte de Alyne, destacando que as políticas de saúde materna do Brasil não garantiam o acesso das mulheres a cuidados de qualidade durante o parto e não atendiam às necessidades de saúde específicas e distintas das mulheres. 

“Este caso tem sido essencial para promover o reconhecimento dos direitos reprodutivos no Brasil, América Latina e em todo o mundo. É particularmente importante para o reconhecimento dos direitos humanos relacionados à maternidade segura e para o acesso das mulheres a serviços de saúde de qualidade sem discriminação”, diz trecho do documento.

O Comitê CEDAW dispôs em seu relatório que uma proibição legal explícita sobre violência obstétrica alinharia a legislação do Brasil com outras de outros países da América Latina. “No caso Andrielli, as violações sofridas referem-se à prática de violência obstétrica e racismo estrutural reforçados na atuação complementar dos órgãos do estado, além do serviço público de saúde, como o Conselho Tutelar, o Ministério Público e o Judiciário”, diz o parecer.

Entre os casos levados às cortes internacionais, destaca-se ainda o que resultou na Lei Maria da Penha, considerada, hoje, uma das três melhores no mundo pelas Nações Unidas (ONU) por prever mecanismos inovadores de prevenção à violência doméstica.

Imagem: Parecer Cladem

Demandas às autoridades responsáveis

No parecer sobre o caso Andrielli solicitam que autoridades tomem medidas para garantir:
– Políticas sociais para a justiça reprodutiva que garantam a escolha informada pelas mulheres de seus projetos de vida e o exercício da maternidade de forma segura;
– Mecanismos para denúncia e responsabilização dos responsáveis pela violência obstétrica e pelo racismo institucional contra as mulheres negras durante gravidez e parto;
– Instauração de procedimento administrativo para investigação e apuração responsabilidade pelos atos de violência obstétrica e a esterilização involuntária sem consentimento de Andrielli;
– Reparação em relação às violações de direitos humanos sofridas por Andrielli através da apresentação de ação judicial para assegurar ou restituir do seu poder familiar e o imediato retorno da bebê para a mãe;
– Apresentação de ação de indenização por danos morais contra o Poder Público pelas violações sofridas no âmbito da assistência em saúde.

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