Leia reportagem anterior sobre o caso aqui.
“O que eu não quero é correr risco de vida”. A frase proferida pela orientadora educacional Juliana Andozio, em entrevista ao Catarinas, dá a dimensão da violência que a educadora vem sendo vítima nos últimos meses. De acordo com a Secretaria da Educação (SED), ela foi afastada da Escola de Educação Básica de Muquém (EEB de Muquém), de Florianópolis, pela sua segurança e integridade física. Após passar por um processo administrativo, ela retornou à unidade escolar no dia 28 de abril. No entanto, um grupo de pais, mães e alunas/os contrários à sua permanência ameaçam a integridade da servidora e da comunidade escolar. Desde o seu retorno, a violência tem se intensificado: fogos de artifício foram direcionados à escola, ovos e xingamentos foram lançados contra a orientadora e pessoas que a apoiam.
Panfletagem contra a violência nas escolas termina em conflito
Um dia antes do retorno da orientadora educacional às suas funções, o Comitê de Defesa da EEB de Muquém, composto por entidades sindicais, populares e da área da educação, organizou uma panfletagem contra a violência nas escolas, pelo direito à liberdade de cátedra e pela volta da educadora em frente ao colégio, no bairro Rio Vermelho. A equipe do Catarinas esteve presente para conversar com a comunidade escolar.
O ato aconteceu entre os intervalos de saída do período da manhã e de entrada do período da tarde, reunindo cerca de cinquenta pessoas. A vereadora Tânia Ramos (Psol) esteve presente e defendeu o diálogo entre mães, pais e responsáveis com a escola.
“A educação parte de você transformar uma criança, dela entender o diálogo. Nós estamos aqui na luta com a professora Juliana, porque ela vem sofrendo muitas violências embutidas dentro de várias questões políticas, que a estão prejudicando. Temos que abrir um debate para discutir que mal esta professora está fazendo ao invés de estarmos preocupados com a segurança nas escolas, a segurança dos nossos profissionais e das nossas crianças? Não deveríamos estar perseguindo uma professora”, afirma a parlamentar.
A manifestação seguiu pacífica até a chegada do vereador bolsonarista João Paulo Ferreira (União Brasil), popularmente conhecido como Bericó, que já havia criticado a orientadora educacional em sessão pública na Câmara dos Vereadores, dizendo que estaria sendo “empurrada goela abaixo uma ideologia” na escola e criticando o uso da linguagem neutra. Pouco antes de falar com a reportagem, o parlamentar enviou mensagem a um grupo de apoiadores no whatsapp: “Galera, estou aqui no colégio Muquém, está tendo uma manifestação da CUT [Central Única dos Trabalhadores], se puderem vir para cá, eu agradeço”, disse.
De acordo com o parlamentar, ele foi procurado por cerca de quinze pais e mães que repudiam a presença de Andozio na escola. “Chegou a mim que a Juliana tenta doutrinar as crianças. A minha linha de pensamento é que o professor tem que transferir conhecimento. Não cabe a ela ou a qualquer outro professor, sob qualquer aspecto ou ideologia, querer doutrinar os filhos”, disse em entrevista ao Catarinas. Para o político, doutrinar significa “tentar instigar uma criança de seis/sete anos que ela pode ser o que ela quiser”. Ele acusa a orientadora de aplicar “ideologia de gênero”.
Bericó relembra um episódio que teria ocorrido com o seu filho no ano passado na mesma escola: “Teve uma professora que tentou pintar a unha dele, de todos os meninos. Eu estava na Câmara quando a minha mulher me ligou, dizendo que ele chegou incomodado com a situação, de que a professora insistiu, e ele tinha dito várias vezes que não queria pintar. E ela instigava”. Ele diz não achar esse tipo de comportamento adequado.
O vereador conta que incentivou que esses pais e mães, que participam de um grupo no whatsapp intitulado “Pais Conservadores Floripa”, buscassem a SED, mas confirma que não tentou dialogar com a servidora antes de criticá-la em público na Câmara Municipal. Ao ser indagado se essa postura não acaba induzindo a perseguição que a profissional vem sofrendo, ele disse que reitera tudo o que falou. “Não quero mais a Juliana nesse colégio. Ela não combina mais com esse colégio. Ela pode ser uma excelente profissional, mas não tem mais espaço para a Juliana. Ela não fez bem para essa escola”, afirma.
Em sua fala, o político diz incentivar o diálogo de ambos os lados, mas acredita que a presença da servidora pública em frente à escola, acompanhada por alguns representantes de sindicatos, não demonstra que ela quer dialogar. “Ela quer usar o movimento de esquerda a favor dela, e se ela quer usar o movimento de esquerda, nós vamos usar o movimento dos pais que querem que os filhos sejam respeitados”, afirma.
Indagado se é a favor do debate sobre machismo, violência de gênero e diversidade na escola, ele afirma ser 100% a favor. “Diversidade é uma coisa. Eu sou vereador bolsonarista e tenho três homossexuais trabalhando comigo. Tem uma sapatão trabalhando comigo. Não tenho preconceito contra nada. Agora tu aplicar ideologia de gênero para uma criança de seis anos está errado”, diz.
Logo após o bate-papo com o vereador, os ânimos começaram a mudar. De um terreno privado ao lado da escola alguém, que não conseguimos identificar, arremessou diversos ovos em direção às pessoas que apoiavam a orientadora educacional. Um grupo contrário ao retorno da servidora às suas funções se reuniu nas proximidades da escola.
Eles gritavam expressões ofensivas para a educadora como safada e vagabunda, além de frases carregadas de misoginia e preconceito como “vão lavar uma louça” ou “mama na teta do governo” para o outro grupo, composto maiormente por mulheres. Já o Comitê de Defesa da EEB de Muquém respondia com gritos como “respeita a educação”, “mais diálogo e menos violência”, “não à violência”. A Polícia Militar aumentou o seu efetivo no local para fazer uma mediação e conter a situação até a dispersão.
Durante o ato, a equipe do Catarinas foi tratada com hostilidade por mães e pais que protestavam contra a atuação da orientadora, cerca de cinco pessoas, e foi questionada por estar gravando toda a situação. Prezando pela nossa integridade e segurança, decidimos não os entrevistar naquele momento. Ainda assim, pedimos ajuda ao vereador Bericó para fazer essa aproximação, porém tampouco tivemos êxito por esse caminho. Anteriormente, enviamos mensagens via redes sociais para mães que faziam acusações contra a servidora, mas não tivemos resposta. Optamos, então, por disponibilizar grande parte da conversa com o vereador da União Brasil nesta reportagem, por entender que ele representa esse grupo conservador.
Rotina da orientadora educacional muda por conta da violência
Desde fevereiro, a servidora efetiva, especializada em gênero e diversidade, e moradora do bairro onde atua, viu a sua rotina totalmente alterada pela violência. “Não está fácil. Eu tenho dormido poucas horas. É um constrangimento, é humilhante”, conta Juliana. A situação tem mexido com toda sua família.
Durante a semana, ela tem ficado na casa da sua mãe, na parte continental da cidade. “Eu vou para minha casa só no final de semana, porque durante a semana tenho muito medo de ficar lá. Teve pessoas passando na minha casa e atirando coisas. Final de semana é mais tranquilo, porque como está todo mundo em casa, elas parecem evitar fazer isso, porque outras pessoas podem ver”, fala.
Afastada por 70 dias da escola, quinze deles pela suspensão, a servidora pública reclama do endividamento. Durante o processo administrativo, ela ficou sem vale refeição e com a punição não recebeu o salário.
“Minha vida está complicada por causa das dívidas. Não teve vale alimentação, eu tive que pagar boletos atrasados, agora eu vou ter que vender o meu carro, tem todo esse processo que não é barato, por mais que tenhamos assessoria jurídica, eu gasto com gasolina, com documentação, passo dias no cartório e correndo atrás de papeladas”, diz.
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Em 28 de abril, no primeiro dia de retorno à escola, Juliana recebeu flores e palavras de incentivo de parte da comunidade escolar contente com a sua volta. Uma aluna celebrou em um grupo de whatsapp acompanhado pela reportagem. “Que bom que está de volta, nesses três anos que estudo ali, ela nunca me incentivou a nada, nunca incentivou a votar na mesma pessoa que ela queria votar, só ajudou mesmo, conversando quando eu tinha dúvidas sobre o ensino médio e o futuro”, dizia a mensagem.
Mas naquele mesmo dia, no período noturno, a escola foi alvo de fogos de artifício. E, na terça-feira, dia 2, a saída da Juliana só foi possível com escolta da Polícia. Mesmo com a presença policial, o carro da servidora foi alvo de arremesso de ovos. As mesmas pessoas que a atacavam, ofendiam a orientadora educacional com xingamentos de vagabunda e filha da puta. Nos dias 4 e 5 de maio, as aulas da noite foram canceladas por falta de segurança.
Em nota publicada nas redes sociais, a direção da EEB de Muquém, que atualmente atende cerca de 1300 alunas/os, manifestou repúdio às agressões verbais e ao patrimônio privado dos servidores que atuam no colégio.
“Nos últimos dias, ocorreram diversas situações de desrespeito, calúnia, difamação e desacato dentro e fora do ambiente escolar. Situação essa incentivada por um grupo – organizado através de redes sociais e grupos de whatsapp – com o objetivo de difamar a escola através da criação de mentiras sobre a instituição e seus servidores”, começa o texto.
O documento ressalta que é dever da SED proteger a comunidade escolar desses grupos organizados a partir do discurso de ódio e que colocam em risco a integridade física e mental da comunidade escolar. “Os estudantes estão sendo prejudicados em seu processo de aprendizagem devido a esses incidentes violentos, bem como muitos servidores estão se afastando de sua função por motivos de saúde como estresse, ansiedade, síndrome do pânico, porque há um clima constante de tensão sob o qual temos atuado desde o início deste ano letivo”, diz um trecho.
A nota reforça que a principal tarefa da escola é o ensino e que somente a educação poderá formar a sociedade futura. Ainda relembra que a legislação vigente garante a liberdade de aprender e de ensinar, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. E faz um alerta: “para que possamos fazer nosso trabalho num ambiente de diálogo e respeito mútuo, como tem sido a atuação de nossa escola, em prol de toda a comunidade escolar (famílias, estudantes, servidores e profissionais terceirizados), precisamos que toda essa onda de desrespeito, calúnia e difamação tenha fim ou só se somarão mais prejuízos para toda a comunidade escolar do Muquém”.
Perguntamos à SED, por e-mail, quais medidas a entidade está tomando para manter a segurança dos/as profissionais da educação e das/os estudantes. No entanto, eles não responderam a essa questão.
As perseguições promovem a destruição da escola pública
No especial Gênero na Escola, aprofundamos as análises sobre os relatos de ameaças, perseguições e censuras a trabalhadores da educação de todo o país. Em comum estava a acusação de que esses profissionais estariam “doutrinando” estudantes por meio da “ideologia de gênero”, termo utilizado para incitar pânico moral sobre temas sensíveis na sociedade, as mesmas expressões utilizadas contra a orientadora Juliana neste caso.
Em entrevista para o projeto, a doutora em educação e professora associada à Universidade de Brasília, Catarina de Almeida Santos, explicou que o objetivo desse movimento é “conservar essa estrutura machista, patriarcal, racista, de desigualdade social, que serve muito à elite”. Ela afirma que isso é indissociável da lógica conservadora. “O conservadorismo se utiliza das questões morais e religiosas como pano de fundo para conservação das estruturas de poder que nós temos”, diz.
No mesmo sentido, o secretário de assuntos educacionais do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina (Sinte-SC), Luiz Carlos Vieira, acredita que a destruição da escola pública é a intenção por trás das perseguições.
“Na verdade, a pauta é a destruição da escola pública, porque mesmo que eles [pais, mães, políticos] não entendam, eles estão a serviço da mercantilização e da privatização da educação. Quando eu desvalorizo a escola pública, eu desvalorizo os seus profissionais, esvazio o seu currículo, eu contribuo também para a violência, porque essa violência que nós estamos sofrendo, ela submete a população mais pobre a viver como se fossem dependentes ou escravos de uma elite”, fala.
Conforme Vieira, que também integra a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), há pelo menos vinte casos de perseguição como esse em SC, em que o sindicato atua na defesa do/a trabalhador/a. “Esse Comitê que está em funcionamento em defesa da escola de Muquém, também deve funcionar para que possamos denunciar e organizar ações de proteção e cobrança do Governo para os trabalhadores da educação e contra a violência que está ocorrendo nas escolas. Esses ataques de Blumenau, e de vários outros lugares do Brasil que já ocorreram, é resultado dessa política nefasta que está colocada não só aqui como em outros países”, afirma o sindicalista.
Entenda o caso
Simultaneamente com o afastamento, a SED instaurou um processo administrativo para apurar se a orientadora educacional teria faltado “com ética profissional”, fazendo “doutrinação político/partidária” e “referindo-se aos alunos como “homofóbicos e machistas”. Desde o começo da investigação, professores, sindicatos e movimentos sociais denunciavam que as acusações contra Andozio eram movidas por perseguição e violência política.
Como resultado desse processo, que ouviu todas as partes envolvidas e reuniu provas documentais, a servidora foi suspensa por quinze dias, conforme publicação no Diário Oficial, sem direito a receber remuneração.
“Eles [SED] decidiram que não tinha doutrinação partidário-ideológica. O que aconteceu foi que eu usei a camiseta do sindicato, prática que não é proibida, mas alguma família pode interpretar algo a partir dela. Também colocaram que usei um linguajar inapropriado, quando utilizei de metáfora para me referir ao Disque 100”, relata Andozio.
A orientadora conta que, ainda na primeira semana de aulas, passou nas salas se apresentando e explicando algumas atividades desenvolvidas por ela como uma das coordenadoras pedagógicas. A partir do sexto ano, além da existência do Disque 100, serviço para denunciar violações de direitos humanos, a orientadora também falou sobre o grêmio estudantil.
“Disse que iríamos fazer o grêmio neste ano e que eles iriam aprender a democracia na prática. Surgiu a pergunta de como seria isso na prática, como eu já estava sendo perseguida, usei fruta como exemplo pedagógico. Eu falei que se você gosta de melancia e o outro gosta de banana, você não vai brigar com o seu colega por causa das frutas que vocês gostam, vocês vão continuar comendo as suas frutas preferidas, vão continuar conversando, que isso é democracia”, detalha Andozio.
O departamento jurídico do Sinte-SC, que atua na defesa da profissional, deve entrar com um recurso para reverter a suspensão.
“A justificativa da SED é que ela foi afastada para a sua própria proteção, depois houve toda uma pressão político-partidária e a SED resolveu afastá-la por 15 dias. Nós, enquanto sindicato, vamos recorrer da decisão. Isso não pode ficar na ficha funcional dela, além de não ter base nenhuma. Nós entendemos que a punição foi fora daquilo que estavam querendo acusar. Não provaram nada”, afirma o secretário de assuntos educacionais do Sinte.
Em nota, a SED informou que não divulga o resultado do processo, de acordo com as determinações da Corregedoria Geral do Estado, que estabelece o sigilo de todas as informações.