Há quase dois meses, a orientadora educacional Juliana Andozio, que atua na Escola de Educação Básica de Muquém, em Florianópolis, está afastada da unidade escolar. De acordo com a Secretaria da Educação (SED), ela foi retirada da escola pela sua segurança e integridade física, mas um processo administrativo foi instaurado para apurar a conduta da servidora, que teria faltado “com ética profissional”, fazendo “doutrinação político/partidária” e “referindo-se aos alunos como homofóbicos e machistas”. Professores, sindicatos e movimentos populares denunciam que a orientadora está sendo vítima de perseguição e violência política.

Especializada em gênero e diversidade, a servidora trabalha como funcionária efetiva na escola estadual do bairro Rio Vermelho há três anos. No local, desenvolve projetos integradores, principalmente vinculados aos direitos humanos, escuta, acolhe e orienta estudantes em inúmeras questões, organiza o grêmio estudantil, compõe o Núcleo de Educação, Prevenção, Atenção e Atendimento às Violências na Escola (Nepre), entre outras atividades. Desde outubro do ano passado, a situação, que até então era tranquila, começou a mudar. 

“O que acontece é que poucas famílias, que não estão acostumadas com projetos integradores e nem em seguir o regimento interno da escola, não estavam gostando da forma que eu estava atuando. Só que isso não foi trazido com uma conversa, não foi levado ao Conselho Deliberativo, eles partiram para a agressão. A primeira conversa com uma das mães foi bem agressiva, ela falou que ia me expulsar da unidade escolar. Eu tive que abrir um boletim de ocorrência, e isso foi se agravando”, conta Juliana Andozio em entrevista para o Catarinas.

Para Priscilla Rodrigues Simões, presidenta do Conselho Deliberativo Escolar — constituído por representantes da comunidade escolar que toma decisões sobre a escola —, os pais e responsáveis confundem o trabalho desenvolvido pela orientadora pedagógica, justamente por ela ser a primeira a assumir a função nesta escola. 

“São algumas famílias insatisfeitas com o trabalho da escola e da orientação, orientadas por uma ideia de que nós fazemos doutrinação de gênero e política. A gente percebe que as pessoas não têm informação sobre as legislações referentes à educação. Quando vamos fazer um trabalho na escola de conscientização a respeito de algumas datas e fatos sociais que não queremos que sejam reproduzidos pelas gerações futuras, como o caso da homofobia e do racismo, as pessoas interpretam o nosso trabalho como doutrinação”, diz Simões. 

Instauração do processo administrativo contra a orientadora

No ano passado, no mês das eleições, após uma primeira abordagem de uma mãe, Juliana contou ter sido denunciada por um suposto comportamento antiético. Ela teria, segundo a reclamação, chamado uma criança de homofóbica e machista. “O que eu não fiz, nunca violaria o direito de uma criança dessa forma”, afirma Andozio. A partir dessa denúncia, a orientadora buscou atendimento no Nepre da Coordenadoria Regional da Grande Florianópolis, que tem como função apoiar na prevenção de violência através da mediação de conflitos.  “Eu coloquei a minha situação e, a princípio, eles tinham entendido. Só que neste ano, essas mesmas famílias viram que eu estava na escola e procuraram a Secretaria da Educação falando de doutrinação ideológica, que eu estaria implantando banheiro unissex na escola e sexualizando crianças”, conta a servidora.

Nos primeiros dias de aula deste semestre, a orientadora educacional visitou as salas com o objetivo de passar algumas atividades que seriam desenvolvidas ao longo do ano, entre elas a constituição do grêmio estudantil. Ela também informou aos alunos sobre a existência do Disque 100, um serviço para denunciar graves violações de direitos humanos.

“Eu expliquei que qualquer criança que tivesse o direito violado, poderia chamar o Disque 100. Coloquei alguns panfletos em formato de corações na parede, com palavras sobre amor e compreensão, e com o número. Fiz o básico. Essas famílias não gostaram, disseram que eu estava fazendo um trabalho que não era meu, que eu não tenho que falar de democracia em sala de aula, nem do Disque Direitos Humanos”, relata Andozio. 

Dois dias depois do início do ano letivo, em 10 de fevereiro, uma mãe ameaçou agredir a servidora. Por precaução, a SED decidiu afastar a servidora por 60 dias, sem prejuízo na sua remuneração. Uma semana depois, 17 de fevereiro, a decisão foi divulgada no Diário Oficial. Mais sete dias passaram para a publicação da Portaria que estabeleceu o processo administrativo disciplinar (PAD) para apurar a conduta orientadora. 

Por meio de nota, a SED informou ao Catarinas que, atualmente, a etapa de instrução está sendo finalizada, ou seja, a junção das provas, documentações e testemunhos. Após análise, uma comissão constituída por profissionais da Coordenadoria Regional de Educação pode sugerir a absolvição e o arquivamento do processo, ou uma advertência, suspensão de até 30 dias ou demissão da servidora.

O secretário de assuntos educacionais do Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Santa Catarina (Sinte-SC), Luiz Carlos Vieira, também secretário de imprensa e divulgação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), acompanha este caso de perto. Ele explica que o departamento jurídico do Sindicato está atuando em defesa da orientadora, por entender que não há provas objetivas contra a servidora. “O que existem são fofocas em grupos de whatsapp, fake news, pressão de pessoas da comunidade que vão dentro da escola com questões infundadas e que tentam agredir a Juliana”, diz o secretário em entrevista ao Catarinas.  

Apesar do processo administrativo estar legalmente correto, conforme a análise do Sinte-SC, Vieira acredita que antes de abrir a sindicância, a SED deveria ter ido até a escola verificar a situação e buscar que o Nepre da Coordenadoria Regional aplicasse medidas para amenizar os conflitos na comunidade escolar.

“Não foi só ela que foi atacada na escola. Tem outros trabalhadores também que estão sendo acusados de várias questões, infelizmente estão sendo pressionados pela comunidade escolar para serem afastados da escola sem ter direito à defesa e ao contraditório”, afirma Vieira. 

Perguntamos à assessoria da SED se houve uma tentativa de mediação de conflito anterior à sindicância, e recebemos a seguinte resposta: “uma mediação sempre é feita por parte dos técnicos da coordenadoria regional”. Além desse caso mais recente, o Sinte-SC acompanha professores(as) e trabalhadores(as) da educação em Santa Catarina que vêm sendo atacados na sua liberdade de ensinar, um direito constitucional. O sindicato recebe ao menos duas denúncias de perseguições por mês, porém a maior parte dos casos nem chega ao conhecimento da organização. 

As denúncias contra a orientadora e a escola chegaram aos parlamentos municipal e estadual. Na Câmara Municipal de Florianópolis, o vereador João Paulo Ferreira (União Brasil), conhecido como Bericó, disse em sessão pública que está sendo “empurrada goela abaixo uma ideologia” na escola, em seguida criticou o uso da linguagem neutra. 

Na Assembleia Estadual de Santa Catarina, o caso foi comentado pelo deputado Sargento Lima (Partido Liberal), que afirmou ter escutado relato de que crianças estavam sendo induzidas à sexualização. “Crianças deixaram de ir ao banheiro desde que o local se tornou unissex, há relatos de xingamentos racistas, professor com camiseta partidária em sala de aula durante a campanha eleitoral”, destaca o texto publicado na sua rede social. Entramos em contato via e-mail com a assessoria dos parlamentares, mas até a publicação desta reportagem não tivemos retorno sobre o posicionamento de ambos sobre o caso. 

Orientadora é afastada de escola por defender democracia e direitos humanos
Reunião do Comitê de Defesa da Escola de Muquém na Alesc em 30 de março. | Imagem: Sinte-SC

Confiança entre a comunidade escolar é rompida 

O clima na comunidade escolar da EEB de Muquém é de tensão. Priscilla Simões, professora de literatura portuguesa para o ensino médio e ensino fundamental II, atua há cinco anos na escola e descreve um cotidiano de conflito constante.

“A autoridade do professor vem sendo questionada diariamente em todas as turmas, e estamos com bastante dificuldade em fazer o nosso trabalho, porque a relação de confiança foi quebrada. Há esse discurso de que a escola não faz nada [em relação às denúncias], e que qualquer um pode fazer o que quer lá dentro. E sabemos que não é assim! Tem um movimento de alguns alunos de depredação do patrimônio, eles escrevem ameaças nas paredes. Estamos muito tristes, porque sabemos que a escola é uma das poucas instâncias de proteção da criança e do adolescente”, lamenta a professora.

Em 27 de fevereiro, a manifestação de alguns pais impediu a realização da assembleia de pais, um momento em que a escola escutaria as famílias e apresentaria o seu projeto político-pedagógico. No dia 28, um aluno do período noturno ameaçou uma assessora escolar e a professora de português. “Ele estava muito alterado e violento, ele nos ameaçou fisicamente, chamou a gente de puta e vagabunda, de defensora de assediador, porque os boatos que surgiram depois da assembleia foram de estupro, que estaríamos pintando as unhas dos alunos, que estaríamos mandando os meninos darem beijo na boca um do outro, que se um aluno não se dissesse homossexual ele seria perseguido na escola. Essas não são e nunca foram práticas da escola”, diz Simões.   

Movimentos pedem volta da orientadora e defendem liberdade de cátedra  

Diante do cenário conflituoso na comunidade escolar, o Conselho Deliberativo emitiu uma carta aberta à comunidade manifestando o seu repúdio às agressões físicas e verbais sofridas pelas/os profissionais da escola, afirmando estarem sendo vítimas de uma campanha difamatória e caluniosa, e reafirmando o seu compromisso em ser um ambiente acolhedor e seguro para as crianças e os jovens. “Temos a imensa maioria de pais que não acredita em nada disso, seguem mandando seus filhos para a escola, entenderam quando enviamos a carta aberta que a escola está fazendo o seu trabalho”, comenta Simões. 

Orientados pela SED a fazerem um trabalho sobre os valores da escola, sobre o respeito e a importância da boa convivência, também fizeram uma carta intitulada “Somos apoiadores da EEB de Muquem”, que recebeu quase quinhentas assinaturas até o momento. O documento destaca o Art. 206, essencial na defesa de professoras(es) e instituições educacionais contra a pretensão de censura de qualquer tipo. Ele prevê que o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (inciso II), “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (inciso III) e “valorização dos profissionais da educação escolar” (inciso V).

Quase duas mil pessoas também se comprometeram com o abaixo-assinado em defesa da EEB Muquém e da orientadora Juliana Andozio, uma iniciativa da organização Diálogo e Ação Petista (DAP) que pede, entre outras questões, o arquivamento do processo administrativo instaurado contra a orientadora. Foi criado o Comitê de Defesa da Escola de Muquém com representante de diversas entidades em defesa da liberdade de cátedra e por respeito aos professores/as. Uma moção de apoio à orientadora e repúdio à perseguição foi escrita e disponibilizada em um perfil sobre o caso. 

“Querem proibir discussões sobre gênero, orientação sexual e diversidade dentro da escola. E também a questão da mulher, da democracia, do grêmio estudantil. Só que temos uma série de documentos que nos orientam a fazer o debate sobre as diferentes famílias, nos orientam a acolher todas as pessoas, independente da sua orientação, da sua raça. É constitucional. Além de ter a proposta curricular de Santa Catarina com a diversidade como princípio formativo, também tem a Constituição Federal, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica e a Base Nacional Comum Curricular”, diz Andozio.

Os movimentos a favor de uma escola democrática demonstram preocupação com a institucionalização da perseguição aos professores, evidenciado com a sanção da lei 18.637/2023, que institui o programa do Escola Sem Partido (ESP) no estado, declarado inconstitucional em ao menos dez decisões do Supremo Tribunal Federal. Enquanto no âmbito federal o Ministério da Educação extinguiu a diretoria responsável por fomentar as escolas cívico-militares –  que reforçam a perseguição a minorias sociais e aos debates de direitos humanos –, em Santa Catarina seguem as discussões para implantação de novas unidades. “Estamos trabalhando totalmente contra a maré. Isso é um reflexo da política conservadora de direita ou extrema direita, porque não dizer assim, que temos em SC, e temos que vencê-la”, afirma Vieira.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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