Na próxima sexta-feira, 9 de fevereiro, às 19h, os Blocos Afros de Florianópolis – Africatarina, Arrasta Ilha, Baque Mulher e Cores de Aidê – realizam o quinto desfile ao redor da Praça XV de Novembro, no centro histórico da capital catarinense.

Apesar dessa reunião para uma noite de apresentação ser recente, ela carrega a força da ancestralidade, da resistência e da cultura negra da cidade, além da tradição dos blocos – alguns possuem mais de duas décadas de existência.

A iniciativa de promover um único desfile veio do mestre Edinho Roldan, músico fundador do bloco de samba-reggae Africatarina, junto com a professora do Departamento de Artes Cênicas da Udesc e esposa Fátima Lima. “A união dos blocos é importante para manter a cultura negra brasileira aqui no Sul do Brasil, o que não é tarefa fácil”, diz Roldan.

Neste ano, os quatro coletivos decidiram reforçar o plural de Blocos Afros, nos desfiles anteriores eram antes nomeados no singular. Os blocos se dividem entre os estilos de samba-reggae e maracatu, que surgiram na Bahia e em Pernambuco, respectivamente.

“A ideia é destacar a pluralidade da cultura afro-brasileira. No desfile, conseguimos perceber as diferentes manifestações, que representam também as diversas tradições, povos e culturas da África”, explica a produtora do desfile dos Blocos Afros, Daniella Cândido.

No Carnaval, os blocos encontram a oportunidade de demonstrar o trabalho que desenvolvem ao longo do ano, que envolve desde oficinas percussivas e de dança até a participação em rodas de conversa e apresentações culturais. A preparação movimenta ainda formas de economia solidária para fazer acontecer os desfiles.

“O Carnaval é uma das primeiras celebrações a dar visibilidade à cultura afro-brasileira, abrindo alas para que os nossos corpos se articulem para ocupar os espaços públicos da cidade – a rua, enquanto lugar de lutas, aprendizados e conexões”, diz Marga Vieira, integrante fundadora e uma das coordenadoras do Baque Mulher Floripa.

Xanda Alencar, integrante do maracatu Arrasta Ilha, onde é a Rainha, enxerga essa festa de catarse coletiva como um momento de suspensão de papéis do cotidiano e das normas da realidade.

“Nas Nações que, em geral, são constituídas em comunidades negras periféricas, é o momento deles serem reis e rainhas. Possibilita esse protagonismo, essa visibilidade estética e social a essas pessoas que, no dia a dia, muitas vezes têm relações de subserviência ou de violência nos seus contextos sociais urbanos”, avalia Alencar.

O palco do desfile no centro de Florianópolis é carregado de simbolismos. Na Praça XV de Novembro eram realizados os desfiles das escolas de samba até a década de 1980. Na época da escravidão, o trajeto entre a igreja do Rosário e São Benedito, construído por escravizados, africanos e afrodescendentes membros da Irmandade do Rosário, e a Catedral Metropolitana, era o percurso de procissões religiosas da comunidade negra. Desde o seu início, em 2002, o Arrasta Ilha faz parte do seu cortejo no mesmo trajeto.

Xanda Alencar, doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, explica que o grupo de maracatu inconscientemente desenhou esse circuito. Para ela, é como se o maracatu, mesmo vindo de fora, trabalhasse “a serviço de uma ancestralidade que foi subsumida historicamente”.

“O Maracatu tem forte relação com as religiões de matriz africana e com o catolicismo popular. As rainhas eram coroadas dentro da igreja católica. Hoje, elas passaram a ser coroadas em frente. Tem essa relação também com as Irmandades”, diz.

Africatarina teve início como projeto social em 2001. Foto: Divulgação.

Rumo à visibilidade dos blocos no pré-Carnaval 

Esta prévia do Carnaval trouxe algumas novidades aos Blocos Afros, possibilitando uma maior visibilidade. A convite do Africatarina, os grupos apresentaram-se ao longo de janeiro em ensaios abertos realizados no Instituto Arco-Íris, na região central da cidade.

Em uma parceria com a Liga das Escolas de Samba, entidade representativa das escolas da Grande Florianópolis, os quatro abriram os tradicionais desfiles de Volta à Praça XV das escolas de Samba, que relembra o antigo trajeto dos desfiles no coração da cidade.

“Nós entendemos que esse tipo de parceria acontece por algo maior, acima dos blocos e das escolas de samba. A gente precisa unir forças e estar junto de quem pensa como a gente, de quem quer fazer algo pela nossa cultura, pelo nosso Carnaval de rua, ocupar esses espaços”, afirma Cândido.

Pela primeira vez, os Blocos Afros fizeram um ensaio técnico para combinar transições, gerenciar o tempo de cada um e testar a estrutura para o dia do desfile oficial. Essa conquista só foi possível com o apoio do deputado estadual Marcos José de Abreu (Psol), o Marquito, que forneceu o carro de som para a realização.

“Acredito que é fundamental apoiar as iniciativas da cultura afro em Florianópolis, tendo em vista o quanto essa cultura sofre processos de apagamento, de invisibilidade diante de uma perspectiva colonial, que enaltece outras culturas migrantes, especialmente as eurocentradas”, defende o parlamentar.

Marquito chama a atenção para a contribuição que os coletivos afros têm trazido, especialmente nos trabalhos sociais nas comunidades periféricas do município.

“Apoiar essas iniciativas é entender que, para além do Carnaval, esses blocos desempenham uma função social fundamental de visibilidade, resistência e trabalho social, além do potencial que possuem de ampliar o que já fazem”, diz.

A falta de recursos e apoio públicos ou privados é apontada por unanimidade como um dos principais entraves para os Blocos Afros se manterem no Carnaval ou fora dele.

“Quando a gente fala sobre possibilidades, palco, acesso, viabilidade, aí entram as maiores barreiras, porque a gente tem muita vontade, movimenta muito em prol disso, mas quando a gente se vê sem recurso, é uma forma de inviabilizar o movimento. Ficamos num risco de uma extinção o tempo todo”, afirma Dandara Manoela, cantora, coordenadora e regente geral do Bloco Cores de Aidê.

Marga Vieira e Xanda Alencar, ambas fundadoras do Baque Mulher Floripa. Foto: Divulgação.

A resistência frente à criminalização

A invisibilização e falta de apoio aos artistas dos Blocos Afros de Florianópolis enraízam-se no processo histórico brasileiro, marcado pelas feridas da colonização e da escravidão dos povos africanos. Essa herança perversa mantém desigualdades e marginaliza expressões culturais afro-brasileiras, negando-lhes o reconhecimento devido.

Xanda Alencar, do Arrasta Ilha, conta que o grupo passou por várias situações de criminalização de sua prática ao longo dos anos. Por isso, ela entende a prática como uma contribuição para a visibilidade, valorização e reconhecimento da população e cultura negra.

“Foram situações de desrespeito, de jogarem, por exemplo, balde de água na gente, garrafada, impedindo o nosso fazer. Essa luta por fazer essa prática foi dando pra gente uma dimensão da importância histórica do Maracatu aqui em Florianópolis, mesmo vindo de Pernambuco”, afirma.

Em maio de 2023, as aulas do maracatu foram interrompidas pela Polícia Militar por denúncia de perturbação do sossego. O episódio aconteceu dentro da Universidade Federal de Santa Catarina, com a qual se vinculam como um projeto de extensão e onde ensaiam há mais de 20 anos. Essa situação impactou diretamente na escolha do tema para o Carnaval deste ano: ancestralidade, território e encantamento.

“Ancestralidade porque sempre fazemos referência a quem veio antes de nós. E território porque temos passado por esses momentos de fragilidade, mesmo estando ali há 23 anos, num lugar que consideramos casa, tivemos a Polícia impedindo o nosso ensaio”, diz Alencar. A integrante do Arrasta Ilha explica que o encantamento entra no lugar de se deixar afetar pela dança e pela música: “Ele te possibilita aproximar-se e transformar a tua consciência”, diz.

No Carnaval daquele ano, mesmo com todas as autorizações necessárias para o desfile, a cavalaria da Polícia Militar interrompeu e entrou no desfile do Africatarina.

“Desde que montamos o desfile dos Blocos Afros, toda vez que a gente queria chegar na Praça, havia uma resistência, porque fecham a estrutura e os acessos dela. Chegava no momento, a Ambev [patrocinadora do Carnaval na cidade] não queria deixar a gente passar”, comenta Edinho Roldan, do Africatarina. Neste ano, o bloco de samba-reggae quer transmitir a resistência em manter seus projetos e o desfile, através do enredo “O Carnaval dos carnavais”.

A união dos quatro coletivos no mesmo desfile tem como intenção somar potências frente a tantas barreiras.

“A coletividade é um princípio afrocivilizatório que nossos ancestrais nos legaram. Usar desse princípio é estar mais fortes diante de forças que querem negar nossas presenças. Juntos podemos lutar pelo direito de fazer essas práticas ancestrais negras que, por meio da festa carnavalesca e alegria, nos ensinam a criar pertencimento”, defende Marga Vieira, do Baque Mulher, mestre em Educação pela UFSC.

5ª desfile dos Blocos Afros de Florianópolis celebra resistência e ancestralidade
Cores de Aidê conta com mais de 170 integrantes atualmente. Foto: Ana Brandalise.

Carnaval em ritmo feminista

Formados em junho de 2016, os blocos Cores de Aidê e Baque Mulher Floripa trouxeram novos debates às práticas culturais dos blocos afro a partir de uma perspectiva feminista.

Nascido no Morro do Quilombo, Cores de Aidê reúne cerca de 170 mulheres e pessoas não-binárias ao ritmo do samba-reggae. Ao longo de sua existência, aproximadamente 1500 pessoas, principalmente mulheres cis, passaram pelo grupo.

“A gente tem um ano inteiro de envolvimento coletivo com rodas de conversa sobre assuntos pertinentes às lutas do bloco. Realizamos diversas apresentações em escolas das redes municipais e estaduais, assim como eventos e manifestações sociais que têm alinhamento com o nosso posicionamento político”, explica Sarah Massignan, idealizadora, coreógrafa, regente de dança e coordenadora geral do Cores de Aidê.

Neste Carnaval, o bloco Cores de Aidê traz o enredo “Malandragem: a Potência das Ruas”. Inspirado na energia de Exu, Pombagiras, Ciganas, Malandras e Malandros, o bloco vai integrar cerca de 250 pessoas, integrantes e convidadas, ao redor da Praça XV.

“A gente quer levar justamente a potência que é estar nas ruas e a potência das pessoas que constroem a rua, que vivenciam esse espaço com sua beleza de viver, sua beleza artística, sua beleza malandra. A gente vai trazer várias referências da malandragem e da cultura popular que trabalham a alegria”, diz Massignan.

O Baque Mulher Floripa integra o Movimento Nacional de Empoderamento Feminino Baque Mulher – Feministas do Baque Virado, de cunho social e político da cultura negra, integrado por mulheres. Ele foi idealizado e fundado por Mestre Joana D’arc Cavalcante, liderança comunitária símbolo de resistência da cultura popular afro-pernambucana e força para a cultura negra nordestina.

Ao todo, são 38 filiais espalhadas por território nacional e internacional, que têm como propósito fomentar a disseminação da cultura negra do Maracatu de Baque Virado entre mulheres; a valorização e o respeito aos fundamentos e as matriarcas nas tradições da religião de matriz africana; a potencialização da expressão feminina; e o enfrentamento e a superação das diversas formas de opressão e violências contra as mulheres.

“Sentimos a força do patriarcado que muitas vezes emudece nossas vozes e ironiza nossa coletividade. Colocar nossa presença Rosa e Laranja [cores que representam o coletivo] abençoada pelas yabás Oyá e Obá é demarcar essa presença e fazer dos nossos corpos em movimento uma ação de resistência contra esses sistemas de opressão”, diz Marga Vieira, coordenadora do coletivo em Florianópolis.

No desfile dos Blocos Afros, o Baque Mulher Floripa traz uma mensagem de amor e união. “Essas bandeiras representam o nosso movimento nacional e as premissas básicas para qualquer construção do empoderamento feminino”, afirma Vieira. Neste Carnaval, elas irão contar com a presença das mulheres do Baque Mulher Itajaí/Balneário Camboriú.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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