A ativista e sindicalista Creuza Oliveira recebeu em 24 de novembro, o título de doutora honoris causa, concedido pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Oliveira é uma das pioneiras na luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil e foi protagonista na aprovação da PEC das Domésticas, emenda constitucional que garantiu direitos trabalhistas à categoria, em 2013.

Nascida em Santo Amaro, no Recôncavo baiano, ela começou a trabalhar como empregada doméstica antes dos 10 anos de idade. A rotina intensa só permitiu que se alfabetizasse aos 15 anos e nunca terminou o ensino fundamental. “Uma patroa permitia que eu estudasse, a outra não permitia. Mesmo aquela que permitia, era muito cansativo trabalhar o dia todo, ir para a escola, e quando eu voltava tinha que arrumar a cozinha porque a patroa não permitia que ‘dormisse’ prato sujo na pia”, conta. 

Na adolescência, mudou-se para Salvador onde continuou a exercer a função até que descobriu, ouvindo uma entrevista no rádio, que outras trabalhadoras se encontravam para debater melhores condições de trabalho. A partir daí, engajou-se na luta pelos direitos da categoria e já acumula mais de 30 anos de dedicação à causa e  contra a exploração do trabalho infantil, realidade da qual também foi vítima. 

Oliveira fundou a Associação das Empregadas Domésticas da Bahia, em 1986, além de contribuir para a fundação do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico/BA), do qual foi a primeira presidente em 1990. Além disso, integrou a comissão brasileira que contribuiu para a adoção da Convenção 189, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre o trabalho doméstico. Atualmente, também é presidenta de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). 

Uma vida dedicada à luta por direitos em prol de uma classe fundamental no grupo de profissões que movimentam a economia do cuidado. Ao Catarinas, ela conta sobre como recebeu a indicação, reverencia antecessoras e colegas de militância e fala sobre os desafios e demandas atuais da categoria. Confira a entrevista. 

Creuza Oliveira recebe título de doutora honoris causa na UFBA. Foto: Divulgação.

Como você recebeu essa indicação e qual o simbolismo que ela carrega?

Eu recebi com muito prazer e orgulho, sabendo que esse título não é só meu, mas sim de toda uma história. É um reconhecimento da luta coletiva. Afinal de contas, a organização das trabalhadoras domésticas no Brasil tem mais de 80 anos, começando com Dona Laudelina de Campos Melo, na década de 30, e seguindo com outras mulheres que deram continuidade à luta pelos direitos, dignidade e cidadania da categoria. Então, é uma luta de longa data. Tivemos avanços importantes, mas se não fosse a Laudelina naquela época, não estaríamos aqui hoje. Laudelina, Lenira Carvalho e várias outras. 

Você contribuiu para a elaboração da PEC das Domésticas, marco legal que estabeleceu direitos importantes à categoria. Dez anos após a legislação, qual o cenário atual das trabalhadoras domésticas brasileiras?

Infelizmente, tanto no desgoverno de [Michel] Temer e quanto no desgoverno de [Jair] Bolsonaro, nós da classe trabalhadora perdemos muitos direitos na questão sindical, especialmente com as reformas [Previdência e Trabalhista]. Estávamos caminhando para termos o direito à contribuição sindical, mas acabou para os outros trabalhadores e nós nem chegamos a ter.

Agora, o cenário é mais otimista mesmo a gente sabendo que não é fácil. A população elegeu o presidente Lula como presidente, mas sabemos que o Senado e a Câmara não estão a favor da maioria da classe trabalhadora ou de lutas contra o racismo e o machismo, por exemplo. É um cenário que nos dá mais esperança, mas estamos conscientes de que não depende só do presidente. Ele está cercado de questões que dificultam que projetos voltados às demandas das trabalhadoras, das mulheres e das populações negra e indígenas sigam em frente. Além disso, temos as guerras no meio, e todas as situações que acontecem no mundo que, de certa forma, o Brasil é impactado. Então, são várias coisas que dificultam, porém temos esperança. Até porque se não tivermos esperança não conseguiremos continuar caminhando.

As mulheres são a maioria da categoria, ocupando 92% das vagas de trabalho doméstico no Brasil, sendo 65% delas, mulheres negras. Como isso se reflete nos sindicatos?

Os sindicatos que nós temos no Brasil são administrados por mulheres. São poucos os que têm homens na direção. No geral, são as mulheres, mães solo, que têm que dividir o tempo de trabalho com o tempo do sindicato e não é fácil. Sem falar na dificuldade que temos de formar novas lideranças. É muito difícil, mas o movimento sindical da nossa categoria tem avançado. Nós costumamos dizer que o movimento sindical das trabalhadoras domésticas não é como o movimento sindical de outras categorias que lutam por reposição salarial, por data base, etc. 

Nós lutamos contra o racismo, contra o preconceito de classe, contra o machismo. Então, é uma luta muito mais difícil porque não fomos educadas para fazer política e estar à frente de um sindicato, se organizando, é fazer política. 

Quais as principais demandas da categoria? 

Na ponta da lista da prioridade está acompanhar a questão do trabalho análogo à escravidão, acompanhar os resgates dessas pessoas. Inclusive, na semana passada, uma audiência nos Estados Unidos sobre o trabalho escravo abordou casos aqui do Brasil, o caso de Madalena e outras situações que estão sendo encaminhadas para a OEA [Organização dos Estados Americanos]. A Fenatrad tem acompanhado tudo isso. 

Além disso,

estamos lutando para que o trabalho doméstico de diarista seja reconhecido como vínculo empregatício a partir do primeiro dia, algo que a Convenção 189 garante, mas esse tratado ainda não foi implementado no Brasil.

Muitas levam cinco, seis, até dez anos trabalhando um ou dois dias na semana e eles dizem que não tem vínculo. Sabemos que tem outras categorias que trabalham um dia só na semana e são reconhecidas, como é o caso dos professores, dos médicos e outras categorias. No caso da doméstica, a lei só reconhece a partir de três dias da semana. 

Também trabalhamos muito com a formação de novas lideranças, a divulgação da luta da categoria em nível nacional, e, com certeza, todas as pautas são importantes.

E com quais desafios você se deparam nessa organização?

Os desafios são muitos. Um deles é que a categoria é uma categoria dispersa. Chegar até elas não é fácil. Organizar uma categoria que está dentro de uma empresa, onde estão todos ali juntos, é uma coisa. Já organizar uma categoria que está cada uma em uma residência à qual não temos acesso sequer ao condomínio em que a pessoa trabalha, não é fácil. Temos feito esse trabalho lentamente. Temos buscado parcerias porque isso ajuda bastante na luta. Então, temos parcerias com o Movimento de Mulheres, com o movimento negro, com ONGs, com o Fundo Elas, que tem apoiado muito a nossa luta. Temos parceria também com a Themis, que inclusive criou junto com a Fenatrad o aplicativo Laudelina, onde a trabalhadora pode saber dos seus direitos e fazer cálculos relativos a férias, por exemplo.

Também temos realizado cursos de formação online. Recentemente, concluímos um curso de alfabetização digital aqui na Bahia com 40 trabalhadoras domésticas e em alguns outros estados também. Temos feito esse trabalho de formar a categoria.

Creuza, o que você sonha para si mesma e que sonha para o coletivo?

A gente nunca para de sonhar. Quando pararmos acho que nossa existência deixa de existir. Acho que a maioria da nossa juventude negra não sonha e isso é muito triste. Apesar da minha idade, tenho 65 anos, eu sonho. Sonho para minhas colegas, para os filhos delas, para os netos delas. Com certeza, tenho o sonho de ver nossas crianças, nossos adolescentes, nossa juventude, sendo capaz de ter um futuro digno, de não ser morto pela bala da polícia ou pela bala que se diz perdida, mas ela é direcionada, não é isso? Meu sonho é esse.

Para mim mesma não tenho um sonho, não. Mas, para a juventude, para o meu povo, eu tenho o sonho de ver o melhor, de ver o avanço no crescimento, nas políticas públicas, nas universidades. Sonho não ver nenhuma criança trabalhando, mas sim nas escolas. É isso que eu quero para o nosso povo.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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