Dona de um sorriso encantador, Tânia Ramos carrega aquele brilho nos olhos costumeiro nas pessoas que falam do que amam. Entre as suas paixões, estão os seus filhos, a luta pela comunidade onde vive e a Sociedade Recreativa e Cultural Unidos da Coloninha. Ela é cria da Coloninha, comunidade periférica da região continental da capital catarinense, e foi uma das fundadoras do Partido Socialismo e Liberdade na cidade. Aos 58 anos, nesta sexta-feira (27), será a primeira mulher negra a assumir a titularidade de uma cadeira no legislativo do município em quase 300 anos. 

Nas eleições de 2020, ela recebeu 1581 votos, ficando como primeira suplente do seu partido na Câmara Municipal. Com a saída do vereador Marquito para assumir como deputado estadual na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, ela assume o mandato até o fim de 2023. Dois anos antes, ocupou a mesma cadeira por 30 dias, durante um rodízio parlamentar. Na década de 1990, na gestão da Frente Popular, participou do Núcleo Gestor do Plano Diretor do Continente e foi Secretária Executiva da Secretaria Regional do Continente. 

Também participou de diversos movimentos em defesa da Saúde e da Educação e contribuiu com o movimento por moradias em locais de disputa social. Já participou do Conselho Municipal de Habitação de Florianópolis, do Fórum Catarinense contra as Privatizações e do Fórum Catarinense de Mulheres na Política. Exerceu atividades de assessoria parlamentar na ALESC e na Câmara Municipal. Foi presidenta da Associação Cultural Creche A Casa do Povo, na Coloninha, e membra do Conselho Municipal de Saúde de Florianópolis, além de diretora da União Florianopolitana de Entidades Comunitárias (UFECO).

Tânia também é reconhecida pela sua trajetória na comunidade do samba e do Carnaval. Desfilou pela primeira vez na Unidos da Coloninha aos 10 anos e, desde então, passou a construir ativamente a escola. É a primeira mulher a exercer a presidência da Associação das Velhas Guardas do Carnaval de Florianópolis, a qual foi uma das fundadoras. Foi vice-presidenta da sua escola de samba e presidenta da Velha Guarda. 

Nesta entrevista, conversamos sobre suas lutas e as pautas prioritárias para estes dois anos de mandato, o machismo e o racismo que atravessam a sua vivência pessoal e política, a importância de se pensar na cultura do Carnaval para além do desfile e muito mais.

Depois de quase 300 anos, primeira vereadora negra toma posse em Florianópolis
Imagem: Bianca Taranti

Gostaria de iniciar essa conversa perguntando sobre a sua história, sua vida pessoal, o lugar onde você cresceu, onde se formou, os acontecimentos que mais marcaram a sua vida até aqui. 

Eu sou Tânia Ramos, moradora da Coloninha, onde nasci e me criei. Fui criada solta na rua, soltando pipa, andando de rolimã e de bicicleta. Tudo na Coloninha. Tenho um carinho muito especial pela minha comunidade. Não me vejo morando em outro lugar. Há uma coisa muito profunda. Quando você se identifica com um bairro, você se apaixona por esse lugar. É como uma escola de samba. Eu comecei a desfilar na escola, na ala das crianças, com dez anos. Se estás dentro de um ambiente onde consegues se identificar com as outras pessoas, é como se sentir em casa, com a tua família. É assim que eu me sinto com a minha escola, com a minha comunidade. Sou mãe de quatro filhos: Cristina, Cristiane, Ângelo e Willian. Fui mãe muito cedo, aos 14 anos, e de gêmeas. Mas eu tinha uma estrutura, minha mãe e meu pai, e consegui muita ajuda da minha família. 

A minha vida na comunidade era olhar para as pessoas e sentir o que elas estavam sentindo. Antigamente a nossa comunidade era muito discriminada, ninguém subia no morro da Coloninha. Nós transformamos isso em uma luta da comunidade para dizer que ali moravam pessoas, seres humanos, trabalhadores e trabalhadoras. Conseguimos descaracterizar esse preconceito. Tinha a mãe Gininhae a mãe Cristina, que eram de Macumba. Para eles [usa para se referir a pessoas brancas, burguesas] tudo isso é muito pesado. Nós conseguimos transformar isso em uma alegria, em vida.

Escola de samba é vida, é cultura. Terreiro é cultura. É você conhecer a sua ancestralidade, conhecer a sua vida, a vida do outro na sua comunidade. Essa foi uma formação que me marcou. A luta dentro da própria comunidade, estou falando de trazer conquista para a comunidade, de transformá-la, de tirar esse preconceito.

Comecei nesta luta desde os meus 14/15 anos, mesmo tendo as minhas filhas cedo. Eu parei os meus estudos e logo voltei. As minhas filhas estavam entrando para a primeira série e eu estava terminando a oitava série. Estudava na mesma escola que elas, na escola Irineu Bornhausen. Foi o meu desafio. Eu gosto muito de falar disso, porque eu me sinto orgulhosa. Geralmente somos mães, e desistimos dos estudos para cuidar dos filhos. Antes de estudar no Irineu, estudei na Otília Cruz, a única escola estadual que tínhamos no bairro e que, infelizmente, fecharam para poder transformá-la em um reformatório para menores infratores. Na época, a Secretaria de Segurança Pública precisava de um espaço para colocar os menores infratores, e fecharam a nossa escola como tantas outras. Mas nós não permitimos que eles transformassem a escola em um reformatório. Tínhamos uma organização na comunidade. Eu me via e as pessoas também me viam como uma liderança. Naquela época eu já era vice-presidente da escola de samba Unidos da Coloninha.

Vejo a escola de samba como uma parte muito importante dentro de uma comunidade, ela não é só o Carnaval. Ela é formadora de opiniões, das nossas crianças, tem um trabalho social muito importante.

Na época, travamos a luta dizendo que ali não seria um reformatório. Não tem lógica fechar uma escola para abrir uma “cadeia”. Foram três anos de luta para conseguirmos  municipaliza-lá. Eu acabei levando a Coloninha para dentro da escola Otília Cruz, através de projetos sociais, pensando no futuro da escola de samba e da própria comunidade. Tínhamos cursos de mestre sala e porta bandeira, teatro, ritmista, as baianinhas. Eu tinha vários projetos pensando no futuro da escola de samba, e ocupamos esse espaço com esses projetos Ali circulavam crianças o dia inteiro no contraturno. Foram três anos de luta. Só entregamos depois de uma grande audiência pública feita dentro da própria escola, onde ficou decidido que ela seria municipalizada para virar uma creche. Hoje, temos a creche Otília Cruz, que atende 266 crianças. Eu fico muito feliz, porque vemos que, trabalhando com as bases, sendo sólidos na nossa base, e não perdendo a nossa identidade, a gente conquista. E o povo sabe o que quer.

Imagem: Bianca Taranti

Quais papéis políticos e sociais você desempenhou e, agora, gostaria de destacar e relembrar?

É muito importante ter mais mulheres nesse espaço de poder, e que as mulheres discutam a política realmente. É uma luta que eu travo desde há muito tempo. Eu fui a primeira mulher a me filiar no PSOL, sou uma das fundadoras do partido em Florianópolis. Fui a primeira mulher preta a se candidatar pelo partido, e de lá para cá sigo sendo candidata, porque acredito nesta construção, acredito que as mulheres têm que estar juntas. Articulamos várias organizações dentro do próprio partido e fora também.

Sabemos que para nós mulheres pretas e periféricas, tudo é mais difícil. Eu tive condições e oportunidade para fazer o que eu faço, mas muitas mulheres não têm a mesma oportunidade. E como ajudar? Temos que ter um olhar para aquilo que é invisível para o Estado. O que nós mulheres pretas vivemos, só a gente sabe. Por isso a importância de estarmos inseridas.

Jamais algum homem branco vai poder falar daquilo que a gente vive no nosso dia a dia. Quando eu coloco isso é porque eu queria que todas elas tivessem a mesma oportunidade de conseguir escolher o que querem para si. Eu quero ser professora, ser médica, eu quero ir para a política, eu quero discutir política. Nós somos a maioria neste país, e somos a minoria nas decisões, quem decide por nós são os outros. Quem decide por nós são os homens brancos. Mas quem pode falar das nossas pautas somos nós, ninguém mais. Com o povo preto não é diferente. Quem pode contar a nossa história, quem pode defender aquilo que eu sinto, que vejo, as mortes em massa das nossas adolescências, o encarceramento em massa, eu consigo ver isso. Eu como mulher, preta e periférica sinto isso todos os dias. A gente sente no coração das mães todos os dias esse sofrimento. Pode ser que não seja na minha geração, mas eu tenho confiança que, no futuro, vamos estar melhores. A luta das mulheres evoluiu muito, mas precisamos evoluir mais. Somos poucas nestes espaços de poder. Eu participei de vários espaços como Conselhos, dentro do próprio parlamento. Estamos há noventa anos sem uma deputada estadual negra. E nós temos parlamentares mulheres, mas que infelizmente não abraçam a causa das mulheres, das mulheres pretas. Nós temos que ter representatividade de mulheres pretas, de LGBTQIA+, do povo quilombola, do povo indígena. Isso é importante. Como eu vou representar uma comunidade se eu não vivo, não vou, não conheço ela? Nós não podemos decidir a vida de ninguém. As pessoas têm que decidir com a gente. Elas têm que mostrar o que elas querem. Eu critico muitos projetos que chegam ao parlamento sem serem discutidos com a própria comunidade. Como agora com o Plano Diretor. Por que esse cerceamento em escutar o povo dizendo o que quer? No bairro onde eu vivo, gostaria que tivesse uma reunião ampla para a nossa comunidade colocar as nossas prioridades. O que queremos? Saneamento básico, saúde, educação, o que precisa aqui nesse bairro? Por isso que, quando eu participei da gestão, na época do Grando e do Afrânio (1993-1996), que foi uma gestão popular, nós tivemos o orçamento participativo. São orçamentos que vêm para a Câmara Municipal, a gente estuda quanto tem para a cidade e levamos isso para discutir em cada comunidade.

Imagem: Bianca Taranti

Quais pautas e debates você quer trazer e/ou fortalecer dentro da Câmara durante os dois anos do seu mandato? 

Quero discutir também a questão da educação, as nossas creches, as creches comunitárias. Eu não concordo que o município, que diz que se dedica tanto à educação e mostra que não tem nenhuma criança fora da creche, somente trabalhe em meio período. Quero perguntar ao nosso Prefeito, quais são as mulheres periféricas que trabalham em meio período? Elas têm jornada dobrada. Mulheres que são professoras, da área da saúde, trabalham em duas, três escolas e em hospitais. Mulheres que trabalham como diaristas não trabalham meio período fazendo faxina em uma casa e vão para casa. Elas pegam duas três faxinas por dia. E os seus filhos ficam onde? É uma das lutas que eu vou travar dentro da Câmara Municipal. Nós temos que olhar para as famílias. Eu participei uma vez de uma audiência em que disseram que não iriam cuidar da família de ninguém. “Nós temos que cuidar da educação, não da família.” Mas como pensar em educação, em formação infantil, sem pensar na família? É isso que está acontecendo: as crianças estão na creche e acabou. “Te vira com o resto”. Não é assim! Não é essa construção e essa educação que temos que temos que fazer. 

Temos que lutar dentro do orçamento para que tenham mais políticas públicas dentro das nossas comunidades. A questão da habitação é muito séria. As pessoas precisam morar, precisamos ter essa discussão. Dentro do nosso Plano Diretor atualmente não tem essa discussão, não tem projetos habitacionais. A Prefeitura em quatro/cinco anos nunca entregou um projeto do Ministério da Cidade para se construir casas populares, sabendo que nós temos milhares de pessoas inscritas. E o projeto de aluguel social não alcança toda a população. Depois eles perguntam: “o que aquela família está fazendo embaixo da ponte?” E mandam tirar aquele povo debaixo do viaduto porque “é feio para a nossa cidade”.  Aquele pai, aquela mãe, fazendo plaquinha dizendo que quer trabalhar, que está com fome ou até mesmo pedir. Para uma cidade turística, eles consideram horrível, eles mandam para qualquer lugar, mas para onde essas pessoas vão, eles nem querem saber. Isso me deixa muito triste, não é uma cidade humana, que pensa na vida das pessoas. Temos que começar a ter esse olhar para o lado, ver que tem uma família, uma pessoa, precisando morar, precisando de acolhimento. Como se resolve isso? Temos que abrir esse debate com o município, com a sociedade, por mais que a gente não consiga resolver tudo. Não é só mais um vagabundo que está ali. Não é só colocar no abrigo para dormir e colocar na rua no outro dia. O problema continua. Como se trabalha isso? Ideias nós temos. Vamos lutar pelo orçamento, mas o executivo tem que bancar esse ônus e saber que a cidade precisa de ajuda. Estou aqui para dizer que temos que pensar na vida das pessoas.

Imagem: Bianca Taranti

Você tem uma relação íntima com a escola de samba Unidos da Coloninha. O seu primeiro desfile foi aos dez anos de idade. Ali você foi presidenta, conselheira e integrante da direção. Na Grande Florianópolis, você foi pioneira no samba, sendo a primeira mulher presidente da Associação das Velhas Guardas do Carnaval de Florianópolis. Como essa relação com a escola de samba e o Carnaval interferiram na sua formação e na sua forma de fazer e pensar política?  

Essa relação mostra o quanto esses caminhos nos ajudam a resolver problemas que, às vezes, achamos que não têm solução. Você olhar para dentro da escola de samba e ver, dentro daquele leque, várias alternativas para atender várias pessoas dentro da comunidade. Falando de Carnaval, tem o giro econômico que o evento traz para o município. A economia que gera dentro do próprio bairro com as nossas costureiras, nossas artesãs. Nós temos profissionais belíssimas dentro das nossas comunidades, não precisa buscar fora. O nosso espetáculo pode ser feito pela nossa comunidade e pela nossa escola de samba, pensando neste sentido da riqueza que tem a cultura do Carnaval – o samba, o batuque, os instrumentos. Hoje temos ritmistas e diretores dentro da Coloninha, que eram do nosso projeto social. Ensinam outras pessoas a trabalharem com os instrumentos, a desfilar na escola de samba. Dentro de uma escola não se pode ver só samba, Carnaval, fevereiro, desfile na passarela. Não. É maior que isso. O nosso primeiro mestre sala e a nossa porta-bandeira eram do nosso projeto na Otília Cruz. São o nosso primeiro casal, nota dez nos últimos quatro/cinco anos. São o futuro da escola. 

Eu passei por todos os setores da escola, desde os dez anos. Confeccionei fantasia, fui coordenadora de ala, vendi fantasias, fui vice-presidente e conselheira da escola. Perdi noite de sono, virei o dia na escola, dormi no galpão, fiz comida, limpei, carreguei as coisas para o Carnaval, desfilei. Hoje, eu faço parte da Velha Guarda da Coloninha, canto na Velha Guarda Show. Fui presidente, duas vezes eleita, da Velha Guarda da Coloninha. Na escola de samba não podemos ter um olhar individual.  Com essa formação toda, você aprende a olhar para outras pessoas também. Conservando com várias escolas, a gente via as Velhas Guardas muito isoladas, cada uma no seu canto, não tinha aquela união, aquele envolvimento. Nós sabemos que elas são pessoas históricas que construíram a sua escola, foram fundadoras, sabem a história da sua comunidade. Um dia, conversando com várias pessoas mais velhas do que eu, eles me propuseram fazer uma Associação das Velhas Guardas. No Rio de Janeiro funciona, eles têm todo um trabalho em conjunto.Tive a oportunidade de ir ao Rio a passeio, e busquei saber como era a organização da Associação. Eu conversei, peguei o estatuto, entendi como se organizavam, trouxe para discutir com todas as Velhas Guardas, conseguimos reunir na Coloninha mais de cento e poucas pessoas. Criamos todas as condições e formamos a Associação das Velhas Guardas da Grande Florianópolis, que hoje está com sete anos. Hoje, todas as Velhas Guardas somos amigas e amigos, todos nos ajudamos. Quando tem desfile vamos cumprimentar umas às outras. Somos rivais somente no dia do Carnaval, mesmo assim vamos lá desejar boa sorte e reverenciar. Não há mais a rivalidade, porque construímos essa união. É isso que eu penso para as próprias escolas de samba, eles podiam olhar para as Velhas Guardas. 

Só que existe um plano maior dentro das escolas que é discutir que Carnaval queremos para Florianópolis? Um Carnaval patrocinado por quem? Vendido por quem?

As pessoas que promovem essa cultura de Carnaval, que é uma cultura preta e dos pretos, são brancas. Quando chega a época de Carnaval, ficamos na expectativa se vai ter ou não, porque é o branco que vai me dizer se vai. Não é a minha comunidade, que está ali o ano inteiro trabalhando com o Carnaval.

Infelizmente, ainda está nas mãos de quem administra tudo isso. Enquanto não tivermos a nossa liberdade, vamos continuar penando e tornando o Carnaval apenas a parte econômica e financeira, neste momento de desfile. Tem que trazer isso para o debate. Discutir de igual para igual.

Se traz uma economia de R$3 milhões para o município, eu continuo sendo escrava. Nós colocamos a escola de samba na Avenida e só. Os ônus e bônus estão nas mãos dos brancos, que decidem o Carnaval por nós. O povo tem que trazer o Carnaval de volta para o povo de direito. Se tem uma passarela hoje, foi uma conquista das escolas de samba. Hoje, as escolas de samba não têm nada.

A Coloninha tem uma sede que conseguimos com a gestão popular. Uma área que foi desapropriada, mas e as outras escolas? Precisamos de galpões para guardar os nossos carros, o nosso patrimônio, o patrimônio cultural e público da população. Eu tenho uma crítica muito pesada à essa nossa posição nas escolas, de nossos presidentes admitirem esse tipo de tratamento, de acharem que precisam ficar esperando uma decisão sobre o acontecimento do Carnaval ou não. Temos que ser independentes. 

Imagem: Bianca: Taranti

Em 2021, você se tornou a primeira mulher negra a ocupar, por 30 dias, a cadeira no legislativo da capital de Santa Catarina. Em quase 300 anos, nesta semana você também será a primeira mulher negra titular na Câmara. Qual a importância da sua representação neste espaço e o que significa a ausência de mulheres negras aqui por tanto tempo?  

É uma reflexão que a nossa sociedade tem que ter, é um reflexo vivo do preconceito racial. Esse espaço é machista, de homens brancos opressores. Temos que trabalhar muito para que possamos estar inseridas aqui. Este espaço nos traz muitos desafios, e serão grandes. Nos meus trinta dias, as mulheres me acolheram bem, já os homens disseram seja bem-vinda, mas mantiveram a distância. Tu tens que ter um punho forte e firme para saber aquilo que tu queres, para poderes ter vez e voz aqui dentro. Viram a violência que aconteceu com a vereadora Carla Ayres? Para eles isso é natural. Também é normal aqui dentro cortarem o teu microfone. “Tu já falou demais, tem outras pessoas que querem falar.” As outras pessoas quem são? Homens. Isso acontece e temos que bancar. “Liga o meu microfone, senão a reunião termina, não terá mais reunião.” Você tem que responder na pressão também, porque é dessa forma que eles trabalham. A nossa posição diante de um parlamento branco racista tem que ser firme e forte.

Temos que dizer para o que vimos e não ter medo. Eu gosto de entrar nos lugares e me sentir representada. Quando não nos sentimos representadas é horrível… sabe? Nós sempre fomos repreendidas. Sempre fomos educadas para ser aquilo que os homens determinaram. E deu. Hoje, já avançamos na luta das mulheres, mas precisamos avançar mais. 

A questão da violência contra as mulheres, nós temos que abrir para a sociedade o mais rápido possível. Todas as horas têm mulheres violentadas, mulheres sendo mortas pelos seus parceiros ou outros. Como trabalhar isso com a nossa sociedade? São políticas públicas que temos que levar para as comunidades, isso tem que estar dentro do orçamento, esse pensar a educação dentro da comunidade. Enquanto não olharmos a educação, vamos ter que trabalhar no paliativo. É disso que o capitalismo gosta. A intenção deles não é transformar pela educação, enquanto a nossa é. Vou continuar lutando sempre pela educação, que é o princípio de tudo. Se tivermos educação, não vamos precisar de presídio, não vamos ver os nossos jovens serem encarcerados em massa, nem envolvidos em narcotráfico. Vamos ter uma sociedade mais saudável, e tem que começar pelas nossas periferias. Na Beira-Mar não temos bala perdida, temos no morro. Sabemos que, se um branco da Beira-Mar subir um morro e descer com uma peteca de maconha ou cocaína, que a gente sabe que eles usam, se a polícia pará-lo e ele disser que é para o seu próprio consumo, ele vai ser mandado embora. Se for um menino negro ou eu, uma mulher preta, vou presa como traficante. Para essa diferença nós temos que fazer a sociedade olhar. É revoltante quando você conversa sobre encarceramento em massa e escuta: “É negão, é vagabundo, tem que estar preso mesmo.” Dói. Para a gente que é mãe, dói muito. Se os nossos estão presos foi por falta de oportunidade, de investimento na educação, de saúde, de políticas públicas naquela comunidade. Se eles estão encarcerados em massa é porque somos a maioria e menos favorecidos. Aonde menos chega informações e políticas públicas. E porque temos um sistema podre, nojento, racista, preconceituoso. E eu quero, pelo menos, fazer com que as pessoas me escutem desta forma, para levar outra visão sobre a comunidade periférica, sobre o encarceramento, sobre os reformatórios para menores infratores. As pessoas têm que olhar isso, porque é um problema delas também. Por que não lutar para conseguir mudar isso? Qual o nosso papel? 

Quais são suas referências, em que você se inspira politicamente?

Eu me inspiro dentro da minha casa, na minha própria família. Ninguém da minha família é político, mas a minha mãe olhava muito para as pessoas. Meu pai fazia a mesma coisa. Era nisso que eu prestava atenção. Eles nunca tiveram formação política nenhuma, nem foram filiados a partido. Nunca fui com eles a comícios, mas me levavam para a Macumba, para o Carnaval, para essa formação comunitária, de rua, dentro da escola. Ensinaram a olhar para dentro da nossa escola estadual e saber que haviam pessoas que não tinham condições nem de estudar. São as formações que eu tive na vida. Eu digo que é formação de asfalto, de estar e sentir as pessoas. Tu entrar dentro de uma comunidade, como eu entro, dormir dois/três dias nessa comunidade para evitar o despejo de famílias como foi em Vila Aparecida, Santa Rosa. Dormi na barraca no meio da rua para a Polícia não subir e não despejar ninguém. Enfrentei a Polícia. Ali foi a minha formação. Subir o morro, ver a mãe em desespero, dizendo que mataram o filho dela ou dizendo que o filho foi preso. Não tem creche, não tem educação, não tem saúde. Os filhos doentes dentro de casa, a desnutrição das nossas crianças. Se eu pensar, foi assim que eu me formei e me encontrei. Mas eu continuo perguntando, para que a gente veio? O que a gente faz? Como resolver todas essas questões? Eu me pergunto todos os dias, e permanecerei me perguntando dentro da Câmara Municipal, porque o que eu não quero, eu já sei, eu vivo isso todos os dias. Vim para dizer aquilo que eu quero e aquilo que as comunidades mais precisam.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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