Análise de dados mostra que objetivos da Agenda 2030 estão distantes do Brasil de Bolsonaro, sobretudo no que diz respeito à igualdade de gênero.
Há três meses, Silvana*, de 43 anos, chegou em casa após uma entrevista de emprego e se deparou com o vazio. A televisão da sala havia sumido, assim como a do quarto. Também se foram a fritadeira elétrica, o micro-ondas, a chapinha e o secador de cabelo comprados com muito suor. Um pouco zonza, ela perguntou ao companheiro onde estavam suas coisas e foi respondida sem meias voltas. “Eu vendi”, ele disse. “Você não vinha pra casa, eu estava sem dinheiro e levei na boca.”
Quando não encontrou suas antigas máquinas de tatuagem, souvenirs de uma carreira de tatuadora precocemente interrompida, ela finalmente gritou. Os equipamentos permaneceram guardados em uma maleta durante as últimas duas décadas, lembrando-a de uma juventude bem vivida, e agora não se sabe onde estão. “Foi quando ele me pegou pelos cabelos e me jogou no chão. Eu bati a cabeça, mas ele não se importou. Subiu em cima de mim e começou a me socar”, relembra.
Silvana tentou se defender, mas não teve chance. Ela é uma mulher de 1,54m e 50 quilos. Seu agressor é um homem de 1,80m e tem quase o dobro do peso. “Eu ouvi a vizinha gritando que tinha chamado a polícia, então ele saiu de cima de mim, foi até o meu quarto e derrubou o guarda-roupas na penteadeira. Depois, correu para a copa e quebrou o buffet que era da minha avó. Por último, deu um soco no espelho da sala e arrancou um painel de mais de dois metros da parede.”
Quando a viatura chegou, ele já tinha ido embora. Os policiais colheram o depoimento da vítima, mas ao saberem que ela se relacionava com um usuário de drogas havia quatro anos, não levaram em conta as nuances do abuso psicológico sofrido e deram a entender que a culpa era dela. Após o registro do boletim de ocorrência, não foram mobilizados grandes esforços para encontrar o autor do crime, de modo que ele segue foragido.
“Eu fiquei tão machucada que levei o mês de setembro todo para sair de casa. Perdi o meu aniversário. O meu olho não abria de tão inchado que estava”, lamenta Silvana. “No hospital eles me disseram que tive uma costela quebrada e que se ele me batesse mais um pouco, teria perfurado o meu pulmão.” Olhando em retrospectiva, ela ainda se culpa, mas reconhece que recebeu tantas ameaças ao longo dos anos que o medo de denunciá-lo e acabar morta sempre falava mais alto.
Agora ela faz terapia, fortaleceu sua rede de apoio e sabe que não está sozinha. No último ano, em média, 17 milhões de mulheres sofreram violência de gênero no Brasil, ou seja, 24,4% das meninas e mulheres brasileiras acima de 16 anos. Quem menciona os números levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto de Pesquisas Datafolha é a Coordenadora da Área de Gênero, Raça e Diversidade da Artigo 19 Brasil e América do Sul, Ana Gabriela Ferreira. “Isso representa uma em cada quatro mulheres brasileiras”, estima.
Desinvestimento
Durante a confecção da Plataforma de Dados do GT da Sociedade Civil para a Agenda 2030, que será lançada oficialmente em 13 de dezembro, Gabriela integrou a equipe da Artigo 19, responsável por revisar os dados relacionados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 e 16, que reúnem metas direcionadas aos temas “igualdade de gênero” e “paz, justiça e instituições eficazes”, respectivamente.
O objetivo da ferramenta é disponibilizar fontes de informação diversas para pesquisadoras/es e jornalistas, já que o governo federal vem implementando o que ela chama de “política de apagamento progressiva”. As bases mapeadas dialogam com as metas da Agenda 2030 – plano de ações sustentáveis idealizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) que vincula o Estado brasileiro. “A gente percebeu que não teria como mapear tudo o que se precisa, mas poderia contribuir com as fontes de dados que são indicadas pelo Relatório Luz”, sinaliza a entrevistada.
Ao longo do percurso, ela também se deparou com o descaso do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), liderado por Damares Alves desde 2019. “A pasta deixou de executar 38,7% do orçamento autorizado para 2020”, cita, resgatando um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). “Ela chegou a ter R$582,5 milhões de orçamento disponível, mas não executou nem 50% do gasto efetivo. Do que estava disponível para políticas para mulheres, empenhou R$117,4 milhões´, mas só executou R$35,4 milhões. Dentro desse valor existe um montante de quase R$6 milhões que era de restos de pagamentos dos anos anteriores. Ou seja: o percentual de aplicação real é ainda menor.”
Buscar meios de fiscalizar a atuação dos órgãos públicos é importante porque negligências como essa têm efeitos práticos na vida das mulheres brasileiras. Se o governo federal tivesse investido mais em campanhas contra a violência doméstica, se tivesse investido mais na formação de policiais sensíveis para as questões de gênero, se tivesse investido mais na proteção às denunciantes da Lei Maria da Penha, a história de Silvana poderia ter sido diferente. Em outras palavras, ela foi vítima da omissão do Estado, que deveria atuar para protegê-la.
“Analisando os dados, tivemos a percepção cristalina de que o governo contribui para a violência de gênero porque não só dialoga com a violência como deixou de aplicar fundos de combate e de realização das ações básicas para a manutenção dos programas que hoje existem”, avalia Gabriela, fazendo menção ao público mais vulnerabilizado pelo desinvestimento: as mulheres negras.
O Relatório Luz 2020 destacou 21 metas da agenda 2030 que tiveram seu progresso afetado pelo corte orçamentário, desvio de finalidade e investimento não proporcional à demanda de recursos. Em 2021, houve aumento: 29 temas tiveram a análise comprometida por questões orçamentárias. Entre eles, despesas públicas e violência sexual.
“Orçamentos não implementados são a cara desse governo. São muito definidores de como ele opera politicamente”, sintetiza a cientista política Flávia Biroli, que atua como professora associada do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). “Desfinanciar as políticas públicas é uma das maneiras de legá-las a uma desimportância sem precisar suspendê-las. Não existe política pública sem financiamento compatível com a sua implementação.”
Apagão de dados e desigualdades
O diagnóstico de Gabriela está ancorado nas fontes disponíveis para consulta, mas ao fazer uma rápida busca dentro da Plataforma de Dados do GT da Sociedade Civil para a Agenda 2030, é possível visualizar outro problema que afeta a criação de políticas públicas e sua fiscalização: o apagão de dados. Em 2020, o Relatório Luz mostrou que 23 metas foram classificadas como “sem dados”, ou seja, 13,6%. Em 2021, foram 15, número que representa 8,9% do total.
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Por exemplo: das 42 bases de informação que subsidiam os temas relacionados ao ODS 3, ligado à saúde, 23 estão atualizadas, dez estão desatualizadas e oito registram apagão de dados. Fontes como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), DataSUS e o próprio site ODS Brasil, alimentado pelo governo federal, deixaram de divulgar dados importantes. Não à toa, no fim do mês passado, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) lançou uma moção em defesa da qualidade e disponibilidade das bases de dados de interesse para a saúde.
Aos 74 anos, a sanitarista e epidemiologista Ligia Cardieri, coordenadora-executiva da Rede Feminista de Saúde, tem muita experiência para compartilhar. Ela começou a atuar no Sistema Único de Saúde (SUS) na década de 1980 e assegura que nunca viu tamanho desmonte na saúde, começando pela desqualificação da área técnica, que reverbera na precariedade da produção de dados. “O Ministério da Saúde costumava ter uma área técnica de saúde da mulher que produzia dados para alimentar o controle social, mas agora é tudo muito mais difícil de acessar”, expõe.
A feminista relembra o começo da pandemia, quando a área técnica responsável estabeleceu que o atendimento à mulher era de alta relevância e, portanto, serviço essencial. “Eles não inventaram nada de novo, apenas estavam acatando as orientações da Organização Mundial da Saúde, mas a portaria foi cassada e a equipe inteira foi demitida”, conta. “O Ministério da Saúde perdeu dinheiro, perdeu quadros técnicos, perdeu seriedade e se tornou brutalmente omisso. Quando Luiz Henrique Mandetta foi demitido, isso ficou escancarado, caso alguém ainda não tivesse enxergado.”
Outro indício de autoritarismo comentado por Lígia é o silenciamento dos conselhos. “Todos os outros governos mantiveram funcionando os conselhos, que são importantes na fiscalização das ações dos órgãos públicos, inclusive porque poderiam ser penalizados se não o fizessem. O governo Bolsonaro deu uma banana pra todo mundo e desqualificou todas as instituições. É um caminho de ditadura. Podemos desmascarar e fazer o desgaste político de outros governos que não cumprem a legislação, mas o bolsonarismo criou um universo paralelo.”
Flávia também frisa a ameaça que os apagões representam para a democracia, pois a limitação da transparência do Estado é uma das características dos processos de autocratização.
“O que o governo está contando para a população sobre suas políticas, suas decisões e seus efeitos? Cadê a prestação de contas? Estamos diante de um processo de fechamento do Estado ao interesse público. Esta é uma forma de controlar, de maneira não democrática, recursos estatais.”
Um segundo aspecto listado pela cientista política é a negação das desigualdades. “Há uma visão neoconservadora que nega a relevância de se lidar com as violências que constituem a sociedade brasileira, como as desigualdades raciais e de gênero. Uma coisa complementa a outra: tira-se o problema de vista e ao mesmo tempo nega-se a importância das agendas. Na outra ponta vem a visão econômica do neoliberalismo que nega desafios coletivos e desconstrói políticas públicas.”
Gabriela corrobora as falas das colegas. “Há um ocultamento de violências que existem e não estão sendo combatidas por interesses políticos. O governo deixa de produzir dados e sustenta que aquilo não está acontecendo. Tem também uma disputa de narrativas sobre direitos que precisam ser assegurados pelo Estado. O Estado não oferta e oculta os meios de comprovar sua ausência.”
É por isso que a pesquisadora classifica o apagão de dados como um projeto político bolsonarista. “No meio ambiente o governo desmontou o sistema de fiscalização e as pesquisas que estavam mostrando quais eram as áreas que precisavam de maior proteção e os riscos iminentes. Nas políticas de gênero, o governo desarticulou as redes de mapeamento e proteção, as campanhas de combate à violência doméstica e o sistema de saúde para impedir que as pessoas tivessem acesso a cuidados básicos, afetando especialmente os grupos genderizados e racializados”, cita.
“Toda a destruição de fontes de dados, de pesquisa e de produção de saber tem a ver com a narrativa negacionista que vem do governo em todas as suas esferas”, acrescenta.
Ainda dá tempo?
A situação do ODS 5, relacionado às questões de gênero, é alarmante: todas as metas receberam classificações ruins, tanto no Relatório Luz 2020 quanto no levantamento realizado em 2021. Apenas uma apresentou progresso insuficiente, pelo tímido aumento de ocupantes de cargos políticos nas eleições de 2020, se compararmos com o pleito de 2016.
Em geral, houve aumento da violência e acentuação do trabalho doméstico não remunerado durante a pandemia. Também houve crescimento nas taxas de estupros, falta de educação sexual nas escolas e abundância de aborto inseguros. As ausências de demarcação de terras indígenas e regularização fundiária intensificaram os conflitos no campo e a violência contra a mulher.
A análise dos ODS 6, 13, 14 e 15, ligados às questões ambientais, também desanima: 57,5% das fontes que subsidiam a avaliação dos temas relacionados estavam desatualizadas ou em situação de apagão de dados. Houve avanço muito aquém do necessário na promoção de saneamento básico e de acesso à água potável e uma política de enfrentamento às mudanças climáticas praticamente inexistente, só para citar alguns dos muitos problemas que ameaçam a vida na Terra.
Para Flávia, a mensagem é evidente: há uma recusa à agenda dos direitos humanos por parte do governo federal. “O presidente Jair Bolsonaro vetou todas as menções aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do Plano Plurianual 2021-2024 e justificou dizendo que era uma agenda estrangeira que promoveria a ideologia de gênero. Existe uma vontade política expressa.”
Embora tenhamos uma década pela frente, a cientista política se mostra pessimista. “A gente vinha caminhando de maneira lenta, mas havia a implementação de políticas orientadas para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Agora, há um desmonte de políticas e de regulamentação que seriam necessárias. Então, não, eu não penso que ainda temos tempo. Haverá retrocesso.”
Lançamento
Na próxima segunda-feira (13), às 19h, a Artigo 19, em parceria com o Portal Catarinas, lança a Plataforma de Dados do GT da Sociedade Civil para Agenda 2030. O diálogo “Apagão de dados e desigualdades” terá participação de Lígia Cardieri da Rede Feminista de Saúde; Ana Paula Valdiones do Instituto Centro de Vida – ICV; e Jacques Iatchuk do Observatório de Desigualdades de Franca, com mediação de Débora Lima da Artigo 19.
O evento será transmitido simultaneamente no Youtube e página do Facebook do Portal Catarinas.
*Nome fictício. A identidade real da vítima foi preservada para evitar revitimização.
**Essa matéria foi realizada por meio do apoio financeiro da organização Artigo 19.
Atualizada às 14h34 de 9 de dezembro.